Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

Artigos

Os Kaimbés

                                              por José Plínio de Oliveira*
             
              Os últimos episódios lamentáveis de violências ocorridos contra vidas humanas indígenas, agora perpetradas por alguns indivíduos com livre trânsito nos espaços da sociedade indígena Kaimbé e contra os próprios Kaimbés, o que muito tem afligido a Aldeia de Massacará, situada no município baiano de Euclides da Cunha, em pleno contexto geográfico central do imenso Sertão de Canudos, tendem a suscitar um amplo debate sobre as realidades concretas dos povos indígenas deste sertão da Bahia, a saber, os povos nativos Kaimbés, Kiriris, Tuxás e Tambalalás. Todos, povos irmãos. Considerando ainda que esses povos nativos representam o que há de mais genuíno, de mais relevante e de maior dimensão antropológica e cultural na grande narrativa da formação da civilização brasileira. Portanto, pensar o índio neste contexto do sertão do Estado da Bahia implica refletir sobre a gênese do povo brasileiro, partindo da pessoa humana do índio como a pedra angular também da nossa constituição ontológica. Dessa forma, se o índio perder o seu profundo significado ôntico e mítico – profundamente mítico – toda a nossa civilização tende a sucumbir nas profundezas abismais da nulidade, assim como um objeto atirado nas crateras grotescas do Buraco do Vento, em Tucano.
              É oportuno rememorar que a nulidade, isto é, a anulação do índio enquanto ser nos primórdios da colonização desta parte da América Latina, do ponto de vista da história, causou danos alarmantes à textura da hegemonia humana da presença – pensando o índio mediante outra leitura de Heidegger – mas trazendo-a para este contexto do Sertão de Canudos em que os Kaimbés, entre outros povos, foram os mais penalizados do ponto de vista da colonização pela colonização. Logo inicialmente porque a cobiça insaciável de Garcia D’Ávila fê-lo avançar para as regiões de Jeremoabo. E, pouco tempo depois, as próximas a serem invadidas foram as terras de Massacará, de forma voraz. Por ele, o colonizador, a antiga aldeia indígena foi literalmente invadida, ludibriada e dilacerada. Dessa forma, ainda hoje a Memória Kaimbé preserva da ancestralidade remota uma narrativa que dá conta de que o mandatário da Casa da Torre ao adentrar as terras indígenas deu fé dos mananciais de água potável, preservados pelos índios Kaimbés para as suas necessidades do cotidiano, com toda uma reverência mítica que fazia daquelas fontes um espaço sagrado. Porém, a pecuária de Garcia D’Ávila estava em franca expansão pelos sertões adentro o que justificava a sua busca de água a qualquer custo para saciar os rebanhos bovinos, apascentados pelas caatingas afora. Isso fez com que se procurasse alguma forma de aproximação com os índios, visando ao interesse do pecuarista. Naquela perspectiva de usurpação, conta-se que as primeiras negociações foram iniciadas com um único índio que havia apreendido alguns rudimentos da língua do colonizador; àquele índio Garcia D’Ávila prometeu dar sete cabeças de gado à tribo como forma de pagamento pelo monopólio das fontes, sem prejuízo dos suprimentos das necessidades básicas da aldeia.
              O índio interlocutor teria levado a proposta do criador de gado às lideranças da tribo. E como naquela era os Kaimbés que já vinham observando os remanejamentos dos rebanhos pelas terras do Itapicuru de Baixo e muito apreciavam a espécie, manifestaram o desejo de também desenvolver o seu criatório. Portanto, depois de algumas negociações, os índios decidiram aceitar a oferta de Garcia D’Ávila em troca dos mananciais d’água, fechando o compromisso. Dessa forma, poucos dias após passaram a chegar portadores à Aldeia trazendo uma cabeça de boi abatido de cada vez. Os Kaimbés pensaram tratar-se de alguma forma do criador presentear a tribo pelos resultados da negociação bem sucedida, enviando depois os animais prometidos. Entretanto, tendo completado as entregas das sete cabeças de bois abatidos, os homens brancos não voltaram mais à Aldeia de Massacará; então a liderança maior enviou o interlocutor da tribo a Garcia D’Ávila para lembrar o compromisso assumido e aquele recebeu como resposta que as sete cabeças de bois já haviam sido entregues; não havia mais nada a tratar. Por isso, as fontes passavam a ser propriedade do colonizador, ficando implícitas as formas de violências que assolariam a nação indígena caso resistisse à trapaça leviana. Assim é que a memória da violência em Massacará foi germinada em demanda do caráter trapaceiro, troglodita e leviano demonstrado logo no início pelo homem europeu que invadiu este Sertão Indígena.
              Essa memória ainda permanece vivíssima entre os Índios Kaimbés e é transmitida de geração para geração como um dos primeiros testemunhos da falta de dignidade e de caráter manifestados por parte do colonizador. Também é uma demonstração da violência construída que a partir daquela época será intensificada contra os povos indígenas. Portanto, nesta perspectiva de estudo, logo depois da usurpação dos mananciais de água potável, Garcia D’Ávila apropriou-se das terras de Massacará e mandou atear fogo nas moradias indígenas, para estabelecer na antiga Aldeia Kaimbé uma das principais bases de colonização e dominação destes sertões imensos, conforme trata Euclides da Cunha,
Perto se erigia, também vetusta, a missão de Massacará, onde, em 1687, tinha   o opulento Garcia D’Ávila uma companhia do seu regimento. Mais para o sul     avultavam outras: Natuba, também bastante antiga aldeia, erecta pelos jesuítas;  Inhambupe, que no elevar-se a paróquia originou larga controvérsia entre os   padres e o rico sesmeiro precitado; Itapicuru (1639) fundada pelos franciscanos. (CUNHA, 1979, p. 73 -74).
                Ora, reconhecido e respeitado a boca-pequena como filho bastardo do governador geral, “o opulento Garcia D’Ávila”, como pretende Euclides da Cunha, extrapolou para muito além das suas prerrogativas de “filho do rei” e instalou uma base do aparelho repressivo do Estado em Massacará, “uma companhia do seu regimento” para ser empregada em ações de violências de todas as formas nestas plagas sertanejas. Isto é, a máquina pública estava nas mãos de um pecuarista que cumulativamente com o aparelho repressivo do Estado, também estabeleceu uma missão capuchinha em Massacará que – em que pesem algumas controvérsias – teve um papel significativo na proteção ao índio, tendo como principal exemplo o frade capuchinho italiano Apolônio de Todi que, entre outros sacerdotes devotados à causa indígena, foi sem sombra de dúvidas um dos missionários que esparramou por este sertão o mais elevado espírito de caridade e de fraternidade. Da “vetusta missão de Massacará” partiram naquele contexto histórico as principais demandas de catequese e colonização. Dali é que o Frei Apolônio de Todi vai erigir a Santa Cruz de Monte Santo, passando por terras da atual cidade de Euclides da Cunha, antiga Cumbe, também subtraídas dos territórios do povo Kaimbé. E mais adiante virá em socorro dos povos nativos despojados de suas de terras, o grande Padre Jesuíta Gabriel Malagrida, também de origem italiana a exemplo de Apolônio de Todi.
               Nascido em Menaggio na Itália, Malagrida veio para o Brasil ainda moço onde trabalhou de 1720 a 1760; tendo desembarcado em São Luís do Maranhão de onde embrenhou-se pela Amazônia, depois desceu pelo Nordeste trazendo na bagagem respeitável cultura erudita. Além de sacerdote católico, foi teatrólogo, poeta, filósofo, místico e professor. Também taumaturgo e semeador da Paz. Tendo dedicado a sua vida principalmente aos povos indígenas desde o Amazonas e o Pará até o Nordeste. Mais adiante, desceu a pé do Maranhão à Bahia, de onde tempos depois realizou também a pé a viajem de volta. Nessas andanças pelas terras indígenas, foram mais de dez anos de peregrinação, apreendendo várias línguas e culturas silvícolas. Dessa forma, a peregrinação do Padre Malagrida por entre os povos indígenas do sertão da Bahia no século XVIII; resguardadas as devidas proporções; lembra as caminhadas de Antônio Conselheiro por estes mesmos sertões no século XIX. Tal como o Padre Malagrida, convivendo com o caráter pacífico e sociável dos índios e remanescentes de origem africana no Nordeste do Brasil. Ambos, Malagrida e Conselheiro foram radicalmente contrários a qualquer forma de violência contra os povos dos sertões. Malagrida foi um grande protetor dos índios e resolutamente contrário à escravidão, assim como o fundador do Belo Monte. Aqui no sertão da Bahia o Padre Malagrida trabalhou muito, principalmente na Missão de Água Fria, de onde alcançou Inhambupe e Tucano.
               A presença do Padre Malagrida em Tucano foi providencial porque ele encontrou-se com os povos Kaimbés e Kiriris, dentre outros, conhecendo as suas necessidades e atuando em suas defesas; pois que muito reconhecia o que agora denominamos identidades e alteridades. Além desses dons especiais, também sendo um grande taumaturgo, Malagrida foi reconhecido como um grande Pajé e entrou para as graças dos índios com enorme veneração. Por aquele tempo ele alcançou as terras do que veio a ser o antigo Cumbe, atual Euclides da Cunha; percorrendo imensas áreas de caatingas dos sertões da Bahia. De sorte que a peregrinação do Padre Gabriel Malagrida por essas terras inaugurou uma Cultura da Paz Indígena que carece de ser pensada com espírito de veneração. É uma urgência pensá-la, senão uma tomada de consciência que nos deve movimentar para uma profunda reflexão sobre o índio no curso da nossa história ou então do conhecimento cultural que a história suscita. Pois, nesta perspectiva de construção do conhecimento, como pensar os povos indígenas deste Sertão de Canudos no contexto cultural e histórico do município de Euclides da Cunha sob os ônus da violência? Como refletir sobre a violência que assolou a Reserva Indígena de Massacará nos últimos dias? Como aceitar o discurso histórico fabricado pelo Estado de que a violência é um atributo do índio? Para responder a essas interrogações é imprescindível mergulhar agora nos discursos científicos sobre os nossos povos nativos. Pois então, vejamos:
               Todo o discurso cultural e histórico de qualquer ordem sobre violência indígena, sem as pressões truculentas do colonizador nesta parte do Sertão de Canudos e em qualquer contexto de município, carece de amplo debate. Se as culturas míticas, rituais de passagens, conflitos tribais e rivalidades de conotações espirituais forem arguidas como práticas violentas entre os povos nativos desta parte do sertão baiano serão sempre falsas. É sabido que nos âmbitos das culturas autóctones, até pelas próprias relações entre a natureza ambiental e essas culturas míticas, os rituais indígenas jamais foram praticados sob a égide da violência, mas por forças de crenças e saberes espirituais que somente os índios têm autonomia cultural para interpretá-las. Neste sentido, as instituições municipais contemporâneas encontrarão barreiras intransponíveis para o entendimento dessas demandas culturais sem uma negociação fraternal com esses povos nativos. Eu diria que é uma negociação nos espaços da Educação mesmo. Porque cultura indígena no seu âmago espiritual é de um mistério inacessível ao não-índio mais desinformado. Portanto, a violência cruel que se abateu sobre uma família indígena da Reserva de Massacará pode ter atingido no cerne o patrimônio espiritual da tribo, mas também na interpretação do seu mérito institucional a imagem do Estado foi dilacerada pela omissão. Há muito tempo que o Estado devia estar mais próximo das sociedades indígenas, alertando-as para as contingências do nosso tempo, trabalhando junto com as lideranças indígenas para aprofundar o debate sobre a inclusão de indivíduos estranhos ao universo cultural da tribo, e a sua permanência no meio indígena. Também para debater os problemas causados pelo alcoolismo, pelas drogas e por outras demandas da contemporaneidade que vêm causando sérios danos às populações periféricas do Sertão de Canudos. Portanto, o Estado tem responsabilidades nas incidências dos feitos violentos que aterrorizam as populações menos favorecidas deste sertão.  Além disso, é preciso trazer a lume que o Estado só teve condições de instituir-se como tal nesta parte do mundo com o apoio do índio. Mesmo soterrando as línguas indígenas, erodindo as identidades dos índios, maculando os seus mitos, ameaçando os seus ritos e impondo-lhes outras superestruturas, através da violência implacável, o Estado brasileiro é filho do índio.
               O discurso histórico fabricado pelo Brasil para atribuir ao índio a mácula da violência é uma leviandade. Esse discurso é inaceitável. Ainda que se interrogue os aspectos culturais do ritualismo interno da sociedade tribal, uma coisa é cultura outra coisa é crueldade. Portanto, submetido o discurso construído pelo Estado à crítica científica contemporânea, a esquadra de Pedro Álvares Cabral não teria aportado em terras do Sul da Bahia. A superioridade tática dos nativos era muitíssimo superior às armas e aos barões assinalados. De dentro das matas, os silvícolas poderiam ter deflagrado dardos incendiários sobre as naus ou envenenado a partir da nascente a água do riacho de que se serviram os navegantes, e a expedição de Cabral teria sido um fiasco. Além disso, os índios dispunham de outros recursos estratégicos para rechaçar e dizimar os invasores, mas não o fizeram. Porque,
A gênese do homem branco nas mitologias indígenas difere em geral da    gênese de outros “estrangeiros” ou inimigos porque introduz, além da simples   alteridade, o tema de desigualdade no poder e na tecnologia. O homem branco é  muitas vezes, no mito, um mutante indígena, alguém que surgiu do grupo. Frequentemente também, a desigualdade tecnológica, o monopólio de machados, espingardas e objetos manufaturados em geral, que foi dado aos brancos, deriva, no mito, de uma escolha que foi dada aos índios. Eles poderiam ter escolhido ou se   apropropriado desses recursos, mas fizeram uma escolha equivocada. Os Krahô e os Canela, por exemplo, quando lhes foi dada a opção, preferiram o arco e a cuia,  à espingarda e ao prato.         
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Para os Kawahiwa, os brancos são os que aceitaram se banhar na panela fervente de Bahira: permaneceram índios os que recusaram. (CUNHA, 1992, p. 18 – 19).
                  É pena que os colonizadores não tenham percebido os valores do patrimônio cultural dos nossos povos nativos, principalmente o seu patrimônio mítico, para que ao invés de salteadores, usurpadores e escravagistas os homens brancos, de fato, tivessem feito jus ao banho “na panela fervente de Bahira”. Poucos o fizeram a exemplo de Apolônio de Todi e Malagrida. O domínio dos recursos tecnológicos por parte do homem branco, “machados, espingardas e objetos manufaturados em geral” não veio a significar, perante o índio, garantia de superioridade do homem branco. Este degenerou-se ao longo da história e, mais adiante, fez com que os povos indígenas tivessem que adotar comportamentos de resistência face às atrocidades praticadas pelos Europeus. Talvez, no âmago da sabedoria indígena, o mito tenha sido questionado. Portanto, quando um machado e outros equipamentos tecnológicos foram utilizados nos últimos dias na Aldeia de Massacará para assassinar uma criança de dois anos de idade e ferir gravemente os seus familiares, a violência tem que ser debatida e erradicada no Sertão Indígena.


                                                                       Serrinha, 02/03/2014.


*PROFESSOR DE LITERATURA NO CAMPUS XXII DA UNEB EM EUCLIDES DA CUNHA

                                                                                                                                                                               
            
REFERÊNCIAS

CAMÕES. Luís de . Os lusíadas . São Paulo: Nova Cultural, 2003.
CASTRO, Silvio . A carta de Pero Vaz de Caminha . Porto Alegre: L&PM, 1996.
CÔRTES, Clelia Neri (Coord.) . De tempos em tempos: nossas histórias Kaimbé . Salvador: EDUFBA, 2010.
CUNHA, Euclides da . Os sertões . São Paulo: Nova Cultural, 2002.
_____ . Os sertões . 29. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.



CIRANDA DA PROSTITUTA
                                          por José Plínio de Oliveira
                                            
              Em meados do ano de 1980, o jornal O Serrinhense publicou um texto que me foi extraviado, mas as suas ideias centrais ainda permanecem vivas em meu coração:
              Um antigo vaqueiro estava a falecer no Sertão de Canudos, cercado de filhos e de filhas de cabelos brancos, netos e netas de cabelos grisalhos, bisnetos, tetranetos, amigos, afilhados, discípulos e velhos companheiros de labutas pelas caatingas remotas desse Sertão imenso.
              Na casa da fazenda que ele havia construído como o seu cabedal mais precioso, agora tão repleto de gente compungida, silenciosa e meditativa somente mais altos se ouviam os rumores periódicos das ânsias do moribundo, que entre passamentos (idas e vindas) resistia em abdicar deste mundo, mas era assistido por mulheres sábias e rezadeiras do povo que suplicavam ao irmão que partisse em paz, perdoando alguma mágoa ou ofensa que lhe tenha sido feita por alguém desta Terra. Entretanto, aquela agonia morosa, aquele resfolegar tão sofrido já chegava a torturar espiritualmente e a afligir o povo. Antes partir para sempre do que ficar naquele vai-não-vai, causando tanta angústia com aquela sofreguidão agoniada.
               – Ave Maria! Esse home não se despacha...
               Uma santa mulher mais idosa tirou brasas do fogão, encheu um aribé e nele salpicou folhas secas de alecrim do tabuleiro, e saiu a circular pela casa, inundando-a com um aroma leve, gostoso, inebriante e balbuciando termos de orações em Latim incensou levemente o agonizante e o benzeu por três vezes. O terreiro da fazenda já estando repleto de cavaleiros e gente de pé, ia acolhendo outras visitas que chegavam a todo instante, enchendo cada vez mais aquele oceano de silêncio respeitoso e perfumado de fumaça de alecrim, cadenciado pelas ondas intermitentes do ansiar profundo do velho mago das caatingas. De vez quando – ao longe – incidiam o latido de um cão, o mugido de uma rês a caminho do açude, o balido de uma ovelha protegendo a vida da cria, o coaxar de uma rã entre a fileira de porrões abastecidos de água até à boca. Todas as onomatopeias iam sendo afinadas com a sinfonia da morte, quando foram chegando as “meninas”. Então começaram os risos, os dichotes, as pilhérias; numa ciranda de fazer gosto. Nesse momento, o agonizante retornava de um passamento sombrio quando escutou os risos; voltou a fronte para um filho prostrado à cabeceira do leito de morte e arguiu:
               – É Mulé Dama?
               – Sim, meu pai, é...
               Então o vaqueiro velho abriu-se num sorriso esplêndido, como o de um menino do campo que ganha um potro de presente do pai. E com aquela expressão de alegria contagiante, de beleza e de felicidade expirou, e partiu para a eternidade deixando a todos imersos naquele ambiente de profunda Alegria e de Felicidade extasiante. Nunca, jamais, em toda História da Humanidade, a Alegria e a Felicidade atingiram a níveis tão elevados em face daquela Ciranda. Com pouco, as Carpideiras deram início à Sentinela e aos preparativos para o sepultamento, com o corpo já estendido sobre a grande mesa de baraúna da sala principal, forrada com um grande lençol de cambraia. A mesma sala em que se guardavam os arreios do cavalo de campo, o chapéu-de-couro, o gibão, o jaleque, a perneira, o guarda-peito, a borracha, o laço e a guiada. No entanto, jamais se ouviu dizer em todo o Sertão de Canudos – tão explorado e trucidado pelaIndústria da Seca, pelo Crime Organizado Oficial, pelo flagelo construído, pela sanha hedionda da barbárie capitalista, e pela politicagem provinciana e medíocre – que uma carpideira, ao invés de verter lágrimas, tivesse que rir às ilhargas durante as exéquias de um defunto que partiu como que deitando o olhar sobre ela. Como se o fizesse a uma prostituta do sertão, dizendo:

“Eu sei muito bem que tu me conduzes para a morte,
para o lugar onde todos os seres vivos se encontram”.

(Jó 30, 23)
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               A Mulé Dama, a figura humana da prostituta sertaneja, tem um papel preponderante na memória do catolicismo popular de Canudos e nas demandas culturais do sertão, enquanto expoente da cultura clássica, representada nas grandes narrativas da Bíblia Sagrada. É justamente no capítulo 38 do Livro do Gênesis, o primeiro livro da Bíblia, que aparece a surpreendente história da prostituição nas origens da civilização judaico-cristã, através da pessoa de um criador de gado; a rigor; um vaqueiro chamado Judá que deixou a sua parentela e foi viver na região de Odolam. Neste lugar, Judá conheceu uma jovem filha de um homem daquela parte do sertão da Palestina e passou a viver com ela. Aparentemente uma relação natural, muito típica da sociedade sertaneja. Do relacionamento nasceram três filhos, e quando o primogênito atingiu a idade de casar-se, Judá deu-lhe por esposa uma jovem chamada Tamar. Parece que por esse tempo ele exercia certa liderança naquele contexto social. Logo depois de casado, o rapaz veio a óbito, deixando Tamar em estado de viuvez, mas como o sogro possuía ainda dois filhos, pela Lei ela tinha direito a ser desposada pelo cunhado mais velho chamado Onã, a que o pai determinou:
“Case com a viúva de seu irmão; cumpra a sua obrigação de cunhado, e dê uma descendência para seu irmão. Onã, porém, sabia que a descendência não seria sua e, cada vez que se unia à mulher do seu irmão, derramava o sêmen por terra, para não dar descendência ao irmão. O que ele fazia desagradava a Javé,  que
o fez  morrer também. Então Judá disse à sua nora Tamar: ‘Viva como viúva na casa de seu pai e espere que cresça meu filho Sela’. Dizia isso pensando: ‘Não convém que ele morra como seus irmãos’. Tamar, então, voltou para a casa do seu pai”. (Gn 38, 8 – 11).

  
                 Mais adiante, o Capítulo 38 do Gênesis ainda alude que o patriarca Judá havia perdido dois filhos dados em casamento a Tamar, embora os moços tenham morrido em consequência de transgressões da norma instituída; contudo, o pai havia de ser cauteloso para com o terceiro filho que poderia vir a falecer também, casando-se com a viúva Tamar. Por isso Judá foi astuto e encontrou a solução mais plausível: a nora ficando na casa paterna tinha a sua viuvez preservada, enquanto o terceiro candidato à sucessão viesse a atingir a idade legal para contrair matrimônio. Mas ocorre que Judá temia perder o único filho que lhe restou, e foi protelando o direito da viúva que tinha precedência sobre o moço.
                 Com o andar da história, a esposa de Judá veio a falecer e ele ficou viúvo a exemplo da nora Tamar. Dessa forma, a situação ficou ainda mais difícil para ele, porque somente contava agora com o filho mais novo – ainda assim – estava prometido em casamento a Tamar.
                 Certo dia, depois que passou o luto, “Judá subiu para Tamna, junto com Hira, seu amigo de Odolam, para tosquiar o rebanho” (v. 12). Ora, para chegar ao destino, eles teriam que passar por Enaim – lugar onde vivia Tamar na casa paterna. Tendo sabido da viagem do sogro e vendo que Sela, com quem havia de casar-se já era adulto, ela despiu-se da indumentária da viuvez, vestiu-se com um traje de prostituta ou de Mulher Dama e foi assentar-se na beira do caminho por onde haviam de passar os dois homens. Naquela era, a prostituição tinha direito a uniforme e remuneração garantida. E ainda cobria-se com véu; o que conferia ao sexo uma aura de mistério. Portanto, o mistério do dom da sexualidade humana, elevada à mais plena dimensão existencial.
                 Quando Judá passou por Enaim, Tamar se achava literalmente sentada à beira do caminho. Então ele lhe fez uma proposta: “Deixe-me ir com você” (v. 16). Ele não presumia tratar-se de sua nora. Ela o interrogou: “O que você me dará para ir comigo?” (idem). Ele comprometeu-se a mandar-lhe “um cabrito do rebanho” (v.17). Aí ela aceitou a proposta, mas exigiu como garantia “o anel de selo com o cordão e o cajado” (v. 18). Ele concordou e os deixou como garantia do pagamento. Neste ponto, convém lembrar que tanto a indumentária de prostituta quanto o anel, o cordão e o cajado, desde aquele tempo constituíam signos identitários. O cajado ou falo ainda mais pela identidade masculina, e o véu e a indumentária pela identidade da mulher.
                  Chegando à fazenda, Judá mandou o amigo levar o cabrito para pagar à prostituta, mas no povoado de Enaim Hira foi informado de não haver mulher prostituta naquele lugar. Tamar já havia retomado o traje de viúva. Então, o portador retornou para Judá levando o cabrito.
                  Passados três meses, Judá foi informado de que a nora estava grávida. Sabendo do fato, enquanto sogro de Tamar e líder daquele povo, ele ordenou: “Tragam-na para fora e seja queimada viva” (v. 24). Ao ser presa para o suplício, ela exibiu os objetos dados como garantia de pagamento pela relação sexual e afirmou estar grávida do homem a que pertenciam o anel, o selo e o cajado. Reconhecendo-os, Judá declarou: “Ela é mais honesta do que eu, pois não lhe dei meu filho Sela” (v. 26). Dessa forma, a vida de Tamar foi poupada. Não se casou com o último cunhado, ficou sob a proteção do sogro, porém, nunca mais ele voltou a ter relações sexuais com ela. Não obstante, no momento em que o velho líder reconheceu a paternidade do filho que a nora trazia no ventre, legou à humanidade o mais elevado senso de Justiça que um mortal pode alcançar. O texto bíblico não afirma que Tamar tenha sido impedida de relacionar-se com outro parceiro, depois da concepção, somente proclama que ela foi poupada da morte e teve a sua dignidade de mulher plenamente respeitada; mesmo tendo-se-lhe atribuído a marca da prostituta ou da Mulher Dama, como pretendem os sertanejos da região de Canudos.   
                 Bem a propósito da história de Judá e Tamar, conta-se que em fins da década de 70 do século passado uma moça israelense exercia a prostituição em seu país quando ficou grávida. No estado mais adiantado da gestação, impossibilitada de trabalhar, requereu à previdência social do seu governo o auxílio maternidade, e na parte do formulário referente à profissão inseriu: Prostituta. Todavia, quando o pleito foi apreciado um funcionário do primeiro escalão negou o pedido sob a alegação de profissão não regulamentada. A requerente impetrou recurso junto ao ministro da área social que exarou o seguinte despacho: “Atenda-se à requerente, porque a prostituição é a profissão mais antiga do mundo”.
                 Em grande parte teve razão o Senhor Ministro. No entanto, é oportuno considerar que são duas as profissões mais antigas do mundo: a da prostituta e a do vaqueiro. Judá estava indo “tosquiar o rebanho” quando encontrou a prostituta na beira da estrada.
                 É surpreendente como o povo hebreu não omite de sua história a efetiva participação dos indivíduos não-nobres que até figuram como heróis em muitas circunstâncias. É como se a construção da memória dos judeus se efetivasse através de vários fragmentos da realidade humana que assim articulados resultam na grande narrativa dos filhos de Abrão. É um grande texto construído de mosaicos a forma bíblica dessa construção tão sólida. De sorte que os judeus têm o grande mérito de erigir a sua identidade – principalmente religiosa – marcada por contribuições tão diversas, e até mesmo aparentemente contraditórias à radicalidade da Lei de Moisés. É nesse sentido que algumas mulheres prostitutas figuram no texto bíblico:
                Raab, prostituta, citada no Capítulo 2 do Livro de Josué, ocupa uma posição privilegiada na conquista da Terra Prometida. Ela vivia em Jericó quando recebeu, hospedou e ocultou dois espiões hebreus que foram realizar uma avaliação da terra que o exército de Josué iria invadir (v. 1 a 5). Data vênia, Raab entrou no discurso sobre o povo de Moisés com os hóspedes. Tratando-se de uma mulher sábia, politizada e, portanto, atenta à realidade do mundo – inclusive às questões políticas e religiosas do seu tempo – Raab vinha acompanhando as notícias sobre a trajetória do povo hebreu desde o início da Diáspora, e discutiu isso com os espiões, reconhecendo o poder inquestionável de Javé, Deus de Israel (v. 8 – 11). Nessa perspectiva de estudo, Raab deixa o leitor contemporâneo perplexo em face do que é revelado sobre o caráter da prostituta na antiguidade bíblica. Dessa forma, ficam muito evidentes a argúcia, a inteligência, a visão crítica do mundo, a dignidade da mulher levada às últimas consequências e a elevada capacidade de levar avante uma negociação política, demonstradas pela prostituta de Jericó. Por isso, ela selou um acordo que garantia a preservação da sua vida e das vidas dos membros da sua família em troca do apoio prestado aos emissários de Josué. O acordo foi aceito. Portanto, quando o exército sitiou a cidade de Jericó para o grande holocausto, o comandante determinou a preservação da vida de Raab, juntamente com toda a sua parentela (Js 6, 15 a 17). Mais adiante, o próprio comandante determina aos espiões que haviam estado com Raab o seu resgate com todos os membros de sua família, incluindo-os no âmbito do povo de Israel (Js 6, 22 – 25). Assim é que ela foi desposada pelo judeu Salmon e com ele gerou e concebeu a Booz, importante personalidade da sociedade judaica daquela era, que casou-se com Rute e gerou a Jobed, pai de Jessé e avô do Rei Davi (Mt 1, 1 – 6). Logo, Jesus Cristo é descendente da prostituta Raab. Isto é, na raiz do tronco Jessé, encontra-se a prostitua de Jericó.
                   Depois do estudo sobre Raab, surge um episódio envolvendo um outro seu descendente – o Rei Salomão, filho de um relacionamento adúltero entre o Rei Davi e a esposa do general Urias – no julgamento da causa de duas prostitutas, narrado no Capítulo 3 do Primeiro Livro dos Reis. Assim é que as duas mulheres apresentaram-se diante do rei para uma audiência, porque haviam dado à luz com um intervalo de três dias entre um e outro parto, tendo ocorrido o óbito de uma das crianças. O fato é que certa manhã uma das crianças amanheceu morta e as mulheres passaram a disputar a maternidade da criança que ficou viva. Por isso, a disputa ficou tão acirrada que o rei propôs repartir a criança com uma espada, dando uma parte do corpo a cada uma delas. A que não era mãe concordou logo, mas a verdadeira mãe pediu que a criança permanecesse viva e que fosse dada à que concordava que a criança fosse cortada ao meio. Foi dessa forma que o Rei Salomão identificou o verdadeiro sentimento de maternidade, através da manifestação da subjetividade (v. 16 – 28). Sem contar com os recursos de DNA, Certidão de Nascimento, Atestado de Batismo e demais aparatos do Estado com que contam a justiça contemporânea.
                   Um caso raro na história da jurisprudência em que a subjetividade serve de prova suficiente em juízo, para garantia do direito líquido e certo, atribuído à cidadania. Convém lembrar que aquele episódio consagrou a Salomão como o rei e o julgador mais sábio do mundo, perante o povo de Israel e outros povos da terra. Por isso, a sabedoria de Salomão ganhou uma repercussão extraordinária e lhe conferiu um grau de importância superior em todo o Oriente. Aliás, agora no Terceiro Milênio Ocidental da Era Cristã é que temos maior consciência do valor da Justiça de Salomão, porque vivemos sob a égide de uma justiça adúltera. Jamais se teve notícias de que em toda a história da humanidade dita civilizada um magistrado – em qualquer instância – tenha proferido uma sentença que; pelo menos; se aproxime daquela proclamada pelo Rei Salomão, reconhecendo a subjetividade humana como elemento irrefutável de prova em juízo. Porque a justiça do Estado contemporâneo tem necessidades de outras materialidades periciais, produzidas pelo próprio aparelho burocrático do Estado, visando a favorecer às elites dominantes e a corromper a lei do próprio Estado dito de Direito. Sob a alegação de adequar-se às exigências dos tempos modernos ou pós-modernos, ou talvez à modernidade tardia, o aparelho judiciário doMundo Globalizado tende a declinar para estados ínfimos de degradação absoluta; de depravação mesmo.

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                   A Justiça do atual Mundo Globalizado tornou-se uma puta rameira inqualificável e muitíssimo abaixo das prostitutas que se apresentaram ao Rei Salomão para disputar uma criança. A Justiça do Estado Globalizado é capaz de cair de quatro diante do capitalismo, promovendo casamentos entre pessoas do mesmo sexo, negando às crianças o Direito à Vida para satisfazer às taras da Indústria do Aborto, e fabricando jovens marginalizados para atender aos interesses escusos da Indústria Carcerária. Vale lembrar que a mãe de Salomão, até pelas circunstâncias da época, correu todos os riscos. Inclusive o de ser apedrejada até à morte. Mas não abortou, nem permitiu que o filho fosse entregue nem ao homossexualismo, nem ao crime. Fazendo-o, teria negado à humanidade a maior inteligência que habitou o mundo. Mesmo quando viveu os seus maiores momentos de paixão por uma rainha estrangeira, o Rei Salomão foi exageradamente sábio.   
                    E saber que o reconhecimento daquela sabedoria extraordinária foi alcançado em face da demanda de duas prostitutas, pela disputa de um corpo. E é nessa perspectiva de leitura, que elas nos conduzem agora ao encontro de Maria Madalena, a prostituta do Evangelho.
                   Maria Madalena é, sem dúvida, uma das mais atraentes figuras femininas da Bíblia Sagrada. Ela disputou o corpo de Jesus com o jardineiro que guardava o sepulcro, sem saber que ele já havia ressuscitado (Jo 20, 10 – 18). Nesse caso, o Juiz foi o próprio Jesus que lhe atribuiu a missão mais importante da práxis cristã: “... vá dizer aos meus irmãos: ‘Subo para junto do meu Pai, que é o Pai de vocês, do meu Deus, que é o Deus de vocês.’ Então Maria Madalena foi e anunciou aos discípulos” (v. 17 – 18). Ela tem uma representação considerável na história do cristianismo, e foi levada à presença de Jesus pela primeira vez numa situação aflitiva. Porque havia sido pilhada em pleno ato de adultério, por alguns membros do partido dos fariseus que queriam por à prova o pensamento do Cristo, insistindo que ele concordasse com o apedrejamento da mulher, segundo a Lei de Moisés (Jo 8, 3 – 6). Daí veio a máxima que ainda desafia o mundo: “Quem de vocês não tiver pecado, atire nela a primeira pedra”. Dito isto, Jesus inclinou-se e pôs-se a escrever no chão em que por muito se deteve. Os homens foram saindo um após outro, esquecendo-se da mulher adúltera e ela ficou só com Jesus.
                    Fosse no Brasil, Maria Madalena teria sido trucidada pelos seus algozes muito mais adúlteros do que ela, mas Israel no cerne da sua identidade moral, mesmo farisaica, tem um caráter inabalável. Mesmo nas situações de fragilidades extremas, Israel prima pela grandeza do seu caráter. O Cristo sabia disso, portanto, quando ergueu as vistas deparou-se com Maria:

 “Jesus então se levantou e perguntou: ‘Mulher, onde estão os outros? Ninguém condenou você?’ Ela respondeu: ‘Ninguém, Senhor.’ Então Jesus disse: ‘Eu também não a condeno. Pode ir, e não peque mais’”. (Jo 8, 10 – 11).

                   Maria Madalena deve ter se afastado por muito pouco tempo, porque logo depois passou a integrar o séquito de Jesus de Nazaré, assim como no sertão da Bahia muitas “Madalenas” integraram o séquito do Conselheiro, libertando-se da cruz do pecado. Pena que ainda não se tenha estudado o trabalho de combate efetivo a todas as formas de explorações e violências contra mulheres, desenvolvido por Antonio Conselheiro e ainda testemunhado pela tradição oral sertaneja. Por isso, Maria Madalena inspirou por muito tempo o respeito pela Mulher Dama nas plagas remotas deste imenso Sertão de Canudos.               
                   Pode-se dizer que a Mulé Dama sertaneja carregou a grande cruz do pecado e da fome, mas também a imensa alegria da salvação que a Maria Madalena da cultura bíblica inspira. Por isso, ela ganha um espaço considerável no catolicismo popular, quando aponta para o povo sertanejo, resgatado do flagelo social e moral para a dignidade da vida, através das ações apostólicas de Antonio Conselheiro, desde as suas peregrinações por sua terra natal. Também no plano da cultura popular, por exemplo, nutricional, existiu na Bahia um peixe seco muito salgado, procedente do Alto São Francisco e distribuído em fardos para o comércio a varejo, denominadoPercata de Mulé Dama, isto é, Alpercata de Mulher Dama que por muitos anos, consumido com feijão e farinha de mandioca, foi a única e exclusiva fonte de nutrição da população pobre do sertão. Portanto, a metáfora da Mulé Dama sempre esteve presente na religiosidade popular, no imaginário, na cama, na mesa pobre do povo sertanejo e no leito de morte do vaqueiro. 
               Mas, acima de tudo convém lembrar que incontáveis Marias Madalenas ou Mulheres Damas, no plano humano, encontraram a dignidade da vida, inclusive o pão da mesa com fartura, pelas mãos compassivas de Antonio Conselheiro. Ele próprio no início da sua peregrinação teria sido seduzido por uma delas. Depois de um casamento mal sucedido, teria tido um relacionamento íntimo com a artesã e mulher solteira Maria Imaginária; ainda quando se encontrava peregrinando por terras do Ceará, seu torrão natal. Ela ganhou o nome de Imagináriaporque esculpia imagens de santos e de santas da devoção popular, para vendê-las nas feiras-livres do sertão. E é justamente em outra parte do Nordeste que Antonio Vicente Mendes Maciel – o Bom Jesus Conselheiro – veio a resgatar da exploração deplorável centenas de Madalenaspobres e prostituídas, além de mulheres honradas, mas submetidas à opressão implacável, para de mãos dadas construir o Império do Belo Monte. Canudos jamais teria alcançado importância histórico-cultural que ocupa sem a efetiva participação da mulher. Ainda que resgatada de situações muito difíceis, assim como muitos homens também. A propósito, o próprio Conselheiro em um momento de prédica vaticinou,

Quando Jesus Nosso Senhor andou pela terra foi acompanhado de cinco mil pessoas. No meio delas havia gente mais detestada do que boa. Ao lado do Bom Jesus já tem o mesmo número de pessoas. (MACEDO, 1983, p 70).      
                                                                                           
               De fato, é inegável que o Bom Jesus Conselheiro reuniu em torno de si uma grei apostólica numerosa e ordeira, até ser vítima da truculência do aparelho repressivo do Estado. Também naquele contexto de peregrinação e repressão muitas mulheres da vida, incorporadas e convertidas ao movimento de Antonio Conselheiro destacaram-se no estabelecimento do Império do Belo Monte em 1893. Dessa forma, é muito provável que entre a mais gente detestada do que boa; além de egressos da escravidão, foragidos da polícia e da justiça, trabalhadores explorados por latifundiários e outros perseguidos, muitas mulheres desvalidas incorporaram-se à seara conselheirista em que fizeram história. O que é fato é que elas tiveram um papel relevante naSociedade de Canudos. Nesse contexto, o oposto da prostituição era a aplicação ao trabalho honrado. Por isso, é que tratando da organização de Canudos, Honório Vilanova – sobrevivente da Guerra de Canudos em 1897 – relata ao jornalista cearense Nertan Macedo,

Recordações, moço? Grande era o Canudos do meu tempo. Quem tinha roça tratava de roça, na beira do rio. Quem tinha gado tratava do gado. Quem tinha mulher e filhos tratava da mulher e dos filhos. Quem gostava de reza ia rezar. De tudo se tratava porque a nenhum pertencia e era de todos, pequenos e grandes, na regra ensinada pelo Peregrino.
Eu e compadre Antônio tínhamos a nossa loja, mesmo defronte ao santuário. Era um formigueiro de gente, zelosa e ordeira nos seus bons costumes, onde não  havia uma só mulher prostituta. (Idem, p. 67).  
               Os irmãos Antonio e Honório Vilanova eram do Ceará, portanto, conterrâneos de Antonio Conselheiro. Vieram para a Bahia com alguns familiares, batidos por uma grande estiagem no ano de 1877. Fixaram-se na Vila Nova da Rainha de que ganharam o sobrenome arranjado – a atual cidade de Senhor do Bonfim.
               Antonio, mais velho do que Honório, e com um tino comercial admirável logo passou amascatear pelas feiras da região. Chegou a Canudos do Conselheiro via Uauá. Como já conhecia o “Peregrino” de tempos remotos no Ceará, foi convidado por ele a estabelecer casa de comércio na cidadela, desde que praticando preços justos e combatendo a carestia, aceitou e foi buscar a esposa e o irmão Honório, casado com uma irmã daquela. Eram primos.
               Os Vila Nova trabalharam muito em Canudos, inclusive lutando na guerra em que Honório foi ferido. Saíram depois de avaliarem a derrota iminente quando a IV Expedição, comandada pelo general Artur Oscar, fechou o cerco em torno do arraial. Pediram autorização ao “Peregrino” que asseverou:
               – Vá sua viagem.       
              Foram acusados de sair de Canudos levando grandes quantias em dinheiro e ouro. Nada disso ficou comprovado. O que se sabe é que já chegaram ao Belo Monte com bons recursos financeiros, frutos do trabalho incansável e do excelente tino comercial de Antonio Vila Nova. O trabalho era tudo em Canudos. Daí talvez a afirmação de Honório a Nertan Macedo: “Não havia uma só mulher prostituta”. Todas eram trabalhadoras e rezadeiras, ainda que remanescentes de “gente mais detestada do que boa”. Porque em Canudos a dignidade da pessoa humana era resgatada em toda a sua plenitude.
              A plena concepção de uma leitura profunda sobre a história de Canudos passa necessariamente pelo entendimento dessas relações internas. Entretanto, o discurso oficial projetou a guerra para a vanguarda da história da Primeira República, ignorando ou fingindo ignorar o trabalho social do Conselheiro. Dessa forma, o Estado Republicano aproveitou-se da hecatombe que promoveu em Canudos, deixando soterradas as narrativas internas; de dentro do objeto; para esculpir imagens de hereges, jagunços, bandidos, fanáticos, inimigos da República e etc., quando na verdade eram trabalhadores do campo e do meio rural, organizados em sociedade e em torno da figura apostólica do Bom Jesus Conselheiro: “gente zelosa e ordeira nos seus bons costumes”. Por isto, é óbvio que a Sociedade de Canudos carece de ser estudada para muito além do estigma da violência construída. Muito embora a guerra seja um fato histórico inegável. Mas, como foi possível construir uma sociedade inclusiva, próspera e solidária em pleno sertão da Bahia e em condições tão adversas? Em que bases Antonio Conselheiro pensou a divisão do trabalho e a distribuição dos recursos de subsistência? Como pensar o Catolicismo Popular em face daquela cultura de sustentabilidade tão bem sucedida antes do Holocausto perpetrado pelo Estado? Como pensar a mulher baiana naquele contexto do século XIX, vítima da opressão, do flagelo material, moral e social sem a acolhida fraterna de Antonio Conselheiro? Sendo que muitas delas foram atraídas para a grei conselheirista, abandonando prostíbulos miseráveis em pequenas cidades, povoados e feiras-livres do sertão. Muitas vezes, padecendo dedoenças do mundo, assistidas pelo raizeiro Manuel Quadrado, hábil manipulador da farmacopeia da caatinga, eram incorporadas às Zeladoras do Povo e por ele exercendo funções importantes no ministério do Peregrino. Canudos, sob certos aspectos ainda é um grande enigma a ser desvendado.
               Na adolescência ouvi muitas vezes de minha mãe, que conheceu pessoalmente testemunhas honradas e fidedignas dos tempos de Antonio Conselheiro, o seguinte relato:
               O Bom Jesus Conselheiro, como também era reverenciado pelos crentes de nossa gente, costumava passar pelo então povoado da Manga – atual cidade de Biritinga, no Estado Bahia – ao longo de suas peregrinações. O antigo povoado era cortado pela Estrada Real, ligando Alagoinhas a Monte Santo. O que fazia da Manga pouso de tropeiros, vaqueiros, missionários, beatos e peregrinos; também por ser um sítio aprazível e de água potável abundante. Dessa forma, tornou-se lugar de passagem do Conselheiro e seu séquito, em demanda do litoral para o sertão. Em uma dessas passagens, o Peregrino encontrou a igreja da atual cidade de Biritinga em fase de edificação. Portanto, como havia necessidade de pedras para a estrutura do templo, o povo do Conselheiro passou a auxiliar, carregando pedras na cabeça e em procissão; de um ponto distante, denominado Pelo Sinal, para a área da construção. Nessa área, o Conselheiro ia supervisionando os materiais – segundo relatavam as testemunhas – tocando-os com o seu inseparável cajado; numa jornada que se prolongava até à tarde. A propósito, conta-se que um dos membros da grei conselheirista, fustigado por uma pedra posta sobre a cabeça, ainda no Pelo Sinal, teria feito xingamentos. Logo, ao depositá-la junto do Bom Jesus, a pedra foi tocada por ele com o bastão e declarada imprestável para a obra. Esse fato, tratado por alguns estudiosos – inclusive Euclides da Cunha, em Os Sertões – teria ocorrido em Biritinga.
               Finda cada jornada diária, já no início da noite, o Conselheiro reunia o povo para as obrigações espirituais, também para as suas prédicas e para a adoração à Santa Cruz. Um dos momentos mais solenes daquela forma de devoção popular.
               Bem diante da atual Matriz de Nossa Senhora de Belém de Biritinga, o povo da localidade unia-se ao do Conselheiro, para as obrigações religiosas. Então, depois da prática, uma mulher negra, uma Zeladora do Povo, trazia uma grande cruz de madeira, a Santa Cruz, e os crentes se punham a adorar a Cruz até mais tarde. Todavia, o fato de que uma mulher negra – talvez africana ou afrodescendente – sustentasse uma cruz para ser adorada, teria causado certo grau de estranhamento para “o povo da Manga”, segundo as testemunhas da terra. Porque, de certa forma, a mulher negra confundia-se com a própria Santa Cruz, diante de que o povo se prostrava, e, assim também, persignava-se.
       Nesse sentido, é preciso considerar que o povo sertanejo, inclusive “o povo da Manga”, foi catequisado segundo uma cultura religiosa que propugnava em favor de ícones, símbolos e imagens de feições europeias. Portanto, as formas possantes de condicionamentos impossibilitavam outras demandas de leituras. Com isso, é importante reconhecer que a mulher conselheirista naquelas circunstâncias em nenhum momento foi hostilizada e nem o povo da atual Biritinga deixou de adorar à Cruz pelo fato da mulher que a sustentava ser uma negra. A figura carismática do Bom Jesus Conselheiro, que era um afrodescendente, impunha muito respeito por onde quer que peregrinasse. Embora, às vezes provocasse alguma surpresa perante o grande público. Porém, o fato de ter resgatado a figura do negro com as mãos postas à cruz, principalmente em Biritinga, tem um significado ímpar na história do cristianismo. Talvez o maior milagre feito pelo Conselheiro em nossa terra; muito maior do que o milagre da pedra expurgada; tenha sido o daquela mulher empunhando a Cruz. E esse fato histórico é muito significativo porque também nos leva a outras leituras. Por exemplo: o Profeta Moisés, nascido na África de pais hebreus, quando liderou a diáspora do povo de Israel para a Terra Prometida, depois de ter atravessado o Mar Vermelho, deixou a primeira esposa com quem tinha dois filhos, Gerson e Eliezer e casou-se com uma mulher negra, cuchita ou cusita (Nm 12), conforme a tradução. É o primeiro divórcio e novo casamento registrado na história da humanidade judaico-cristã. Mais adiante, aquela mulher africana, desposada por Moisés, irá vê-lo erigir uma haste de madeira, prefigurando uma cruz que sustenta uma serpente de bronze, para que todo o povo olhe para ela e fique curado (Nm 21, 6 – 9). É muito interessante essa passagem bíblica, porque a serpente de bronze crucificada vem prefigurar aquela serpente da narrativa sobre Adão e Eva. Agora formatada em metal e consumada na cruz, a serpente anuncia o Redentor da Humanidade e aparta Moisés do veneno da maçã, o que lhe assegura o direito de Amar com a mais absoluta convicção. Portanto, aquela mulher africana tem um peso extraordinário na Economia da Salvação. É pena que pouco ou quase nada se tenha escrito sobre ela. Porque justamente ela vai nos ajudar a encontrar outras personalidades negras na Bíblia Sagrada.
                Jesus vai percorrendo as ruas de Jerusalém, carregando a Cruz rumo ao Calvário. Naquele momento, a serpente do Império Romano está cravada nela para corromper, vilipendiar e torturar a humanidade, mas Jesus vai derrota-la no Gólgota, para assumir o espaço redentor que lhe cabe. Então, sob o peso da Cruz e sob o ódio da serpente, sob os ônus da coroa de espinhos, das chicotadas, das torturas e demais flagelações. Ele cansa fisicamente exausto. Neste momento, vem passando Simão – um africano da cidade de Cirene, situada na atual Líbia – ele residia em Jerusalém e possuía um campo nos arredores da cidade. Pode ter sido um vaqueiro. No momento em que Jesus vai para o Gólgota, Simão vem do trabalho no campo quando é abordado pelos soldados romanos, para carregar a Cruz do Cristo. E quando a África toma a cruz pelas mãos de Simão o mundo não se dá conta da mulher cuchita que muito antes da Economia do Calvário viu outro signo semelhante, erigido no deserto.
               Há um grande deserto agora palmilhado por um hebreu e um africano,

Quando saíram, encontraram um homem chamado Simão, da cidade de Cirene, e o obrigaram a carregar a cruz de Jesus. E chegaram a um lugar chamado Gólgota, que quer dizer “lugar da Caveira”. (Mt 27, 32 a 33).
                 A “caveira”, que no texto bíblico também pode remeter para os integrantes das caravanas da África e da Arábia que pereciam de sede pelas plagas dos desertos, lembra aqui os flagelados da seca e as itinerâncias dos vaqueiros, labutando pela vida através dos imensos desertos do sertão baiano. Portanto, “lugar da caveira” lembra muito esta terra, lembra os cadáveres de Canudos, lembra a luta vitoriosa de Antonio Conselheiro, lembra  dizer que ele deu à Bahia a outra Bahia que os olhos do mundo sabem, mas insistem em ignorar. E que o riso daMulé Dama deu ao velho vaqueiro agonizante uma outra dimensão do mistério da existência humana nas bordas da fronteira que delimita o infinito.

                                        
                                                                          Serrinha, 16 de fevereiro de 2013.


REFERÊNCIAS

BÍBLIA SAGRADA . São Paulo: Paulus, 1990.

BOAVENTURA, Eurico Alves . Fidalgos e vaqueiros . Salvador: UFBA, 1989.

CONSELHEIRO, Antonio . O pacificador . Franca: Farol das Três Colinas, 2004.

CUNHA, Euclides da . Os sertões . São Paulo: Nova Cultural, 2003.

HALL, Stuart . Da diáspora: identidades e mediações culturais . Belo Horizonte: UFMG, 2003.

MACEDO, Nertan . Memorial de Vilanova . 2. ed. Rio de Janeiro: Renes, 1983.

RODRIGUES, Matias . Vida do padre Gabriel Malagrida . Belém do Pará: Centro de Cultura e Formação Cristã, 2010.

SAMPAIO, Consuelo Novais . Canudos: cartas para o barão . São Paulo: EdUSP, 1999.

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