Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

Contos

QUEIMADA DO RASO
                                                                                                  Por José Plínio de Oliveira


                 – Apois! Agora eu vou virar é sapatona, vou morar em Nordestina e vou pedir a Jacaré para me botar no Time de Futebol Feminino.
               Casados há cinco anos, vivendo no povoado da Queimada do Raso e trabalhando muito era a terceira vez que o casal Michele e Januário divergia por questões de negócios. Embora jamais tivessem sequer insinuado qualquer sintoma de agressões físicas, as discussões iam-se tornando acirradas. Naquele dia, principalmente, os desentendimentos chegaram ao ápice.
               – Não dá mais pra eu viver com você!
               – Nem pra mim também.
               Michele e Januário haviam construído um patrimônio considerável, juntos haviam superado vários obstáculos para “vencer na vida”. Ainda bem jovens iniciaram uma pequena Indústria de Fundo de Quintal, fabricando peças de motos para atender às grandes demandas da região do Sertão de Canudos. Depois, os produtos foram atraindo cada vez mais aos consumidores de outras regiões do sertão da Bahia e de outros estados. Logo, surgiu a necessidade de construir uma fábrica, estruturar a logística e expandir a produção. Os negócios iam muito bem quando o casamento entrou em crise. A briga daquele dia pôs fim a uma convivência de mais de oito anos entre namoro e casamento, deitando por terra um empreendimento tão bem sucedido.
               No dia seguinte pela manhã, chegaram o caminhão de mudanças para transportar os bens pessoais de Michele e o advogado para já ir tratando dos interesses da parte. O relacionamento conjugal de fato estava desfeito, agora restava dividir o patrimônio construído em comum. Essa demanda durou alguns meses; por fim cada demandante recebeu a parte que lhe coube e Januário, Janu, como era mais conhecido na Queimada do Raso, homem devotado ao trabalho desde a infância, mesmo sozinho lutou desesperadamente para manter a pequena empresa funcionando. Porém, não foi bem sucedido na administração dos negócios e, na iminência de falir, saiu em busca de orientação e financiamento setorial, empreendendo verdadeira peregrinação pelas instituições da área.
               Na área do governo, Januário andou por agências, ministérios, secretarias, gerências, escritórios, superintendências e etc. Mas não obtinha o atendimento pretendido. Mesmo explicando a função social do seu empreendimento bem sucedido e pioneiro na região do Sertão de Canudos, empregando recursos humanos locais e oferecendo treinamento a jovens e adultos, todas as portas se fechavam para o moço empresário. Até que um dia, no Balcão de Pequenos Empreendimentos de um órgão do governo na cidade de Tucano, um burocrata protocolou o seu pedido, mas fez tantas exigências de outros documentos, atendidos com tamanhas dificuldades que o processo foi sendo emperrado e empurrado com a barriga. Já na iminência do pedido ser arquivado, o homem do governo exigiu em última instância um atestado de virgindade da tetravó de Napoleão Gramacedo; uma antiga prostituta da feira livre de Ribeira do Pombal onde exerceu o ofício por mais de quatro décadas; e um fio de pentelho de Afrodite, ainda negro e reluzente. Tudo em um prazo de dez dias. Aí o projeto naufragou e Januário entrou em depressão.
               Deprimido, humilhado, desanimado, desmotivado, inerte, Janu foi despertado em uma manhã de quinta-feira por um carro de som, anunciando um show com a Banda Cadelas Depravadas em plena Noite do Natal do Ano de 2008. O carro de som vociferava com todo o volume: “Você não poder perder”! A essa forma de determinação no imperativo, o baiano não consegue resistir. Se estiver agonizando para morrer, ergue-se do leito como num passo de mágica, cai na gandaia e depois retorna para as ânsias da morte, a fim de expirar o último gemido. Além do mais, quem em sã consciência no sertão da Bahia atreve-se a não comparecer a uma apresentação das Cadelas Depravadas? Somente o público de elevada convicção evangélica pode fazê-lo. Portanto, na sua real condição de vulnerabilidade, Januário não teve alternativa outra senão erguer-se do leito de deprimido e ir rebolar ao som da banda naquela festiva Noite de Natal.
               Jamais em algum lugar do mundo pode-se escutar linguagens tão abjetas, tão depravadas, tão repulsivas e tão levianas quanto às pulverizadas por algumas ditas “bandas musicais” da Bahia sobre o corpo da mulher ou – o que é mais deplorável – sobre o sexo da mulher. Jamais a pessoa humana da mulher pode vir a ser tão aviltada, tão execrada, tão vilipendiada e tão degradada pelas linguagens ridículas e promíscuas, vociferadas por algumas ditas “bandas” – constituídas principalmente por mulheres no sertão da Bahia. É surpreendente e, ao mesmo tempo constrangedor, assistir a mulheres jovens em trajes ridículos e em palcos armados em praças públicas, literalmente, deplorarem a figura feminina até as últimas consequências. Insinuando orgias sexuais repugnantes, desregramentos nefandos e outras tantas encenações degradantes sobre o corpo da mulher, para agradar ao grande público. E o curioso é que o grande público que assiste a esses “espetáculos” é constituído por maioria feminina. É muito estranho. Porque nessas festas públicas as mulheres riem, aplaudem entusiasticamente todas as ofensas que lhes são atribuídas, sob o disfarce óbvio da sublimação da ludicidade. Muitas vezes neste sertão da Bahia, o escárnio mordaz e ignóbil proferido contra a mulher é aceito como discurso lúdico, brincadeira, diversão. Daí o grande sucesso dessas “bandas” vulgares que infestam o grande sertão baiano. É muito difícil entender esta Cultura Baiana que vem; inclusive; nos últimos tempos, tornando repugnante a sexualidade feminina, contra o que é imprescindível lutar agora, enquanto é tempo. Porque a pulverização intensiva desses discursos levianos fossiliza o convencimento de que ter relações sexuais com mulher é demasiado repugnante. E algumas mulheres riem desses discursos, considerando-os divertimentos.  É óbvio que algumas poucas mulheres conscientes dos seus valores vêm lutando muito pela afirmação da dignidade feminina, mas o peso da Indústria Cultura é muito denso e termina por silenciar a voz da mulher.
               O reconhecimento humano do valor da mulher na área de influência direta do Sertão de Canudos carece de ser aprofundado até às consequências últimas. O que não se deve é permitir que as incidências de linguagens erosivas continuem a deplorar e a trucidar a pessoa humana da mulher. Principalmente discursos proferidos por mulheres, deplorando e repugnando o corpo da mulher, visando a agradar um público consumidor de linguagens banais e vulgares, sob enxurradas de aplausos histéricos e risos estridentes. Isso é muito perigoso, porque inclusive vem interferindo na atenção à saúde da mulher; por exemplo, em Feira de Santana e Serrinha algumas unidades de saúde de emergência vêm se recusando a prestar atendimentos a mulheres gestantes em trabalhos de parto, dado ao desrespeito a que tem chegado a figura feminina. O que passa a exigir uma luta sem tréguas em defesa da mulher. Essa luta no sentido da afirmação dos direitos da mulher no Sertão de Canudos já carece de ser enfrentada!     
               A luta de algumas mulheres conscientes neste sertão da Bahia em defesa da sua feminilidade é muito árdua e inglória. Essa luta vem se concentrando mais na defesa da expressão estética do corpo do que na elevação da alma feminina. É preciso manter viva a imagem da mulher em que pesem as linguagens erosivas da Indústria Cultural, em detrimento da figura feminina, da expressão de beleza da mulher. Portanto, jamais se viu tanta academia de tratamento estético e tanto salão de beleza como agora são vistos neste sertão remoto. O que sem dúvida é muito positivo para os cuidados com a beleza externa da mulher, mas, e a dimensão interior dela? Há povoados remotíssimos que não contam sequer com uma escola decente e um posto de saúde razoável, mas que têm pelo menos duas academias de ginásticas e dois salões de beleza, para atender ao público feminino. Essa necessidade premente de beleza e de expressão sensual do corpo denota que a alma feminina se restringe. Embora a mulher esteja conquistando espaços profissionais antes reservados tão somente ao homem, o espaço humano da mulher ainda está por ser por ser construído neste sertão. O próprio discurso sobre gênero – se levado ao extremismo de uma depravação sodomizante – pode ser prejudicial tanto para o homem quanto para a mulher. E é aí que o Estado concorre para a degradação sistemática da figura feminina, impondo-lhe como opção de lazer, por exemplo, o que há de mais abjeto, de mais repugnante, de mais vil e de mais deplorável. Portanto, é nesse contexto que as “bandas”, medíocres e depravadas vêm fazer o serviço do Estado, degradando e depravando a pessoa humana da Mulher na festa da praça pública.
               Naquela noite, a Cadelas Depravadas ia “fazer festa”, portanto, Januário chegou à praça muito antes do “show” ter início. Ele precisava tanto espairecer. E quando os “músicos” começaram a aquecer os teclados eletrônicos com os primeiros ruídos, já ele começou a dançar. Depois as “meninas da banca” subiram ao palco semidespidas, levando o grande público ao delírio, insinuando relações sexuais coletivas e outras nuances de extrema promiscuidade. Também vociferando palavras de ordem para incitar o grande público a imitar as suas demonstrações práticas de sexo explícito e a despir-se inteiramente, para facilitar as coisas; ainda consumindo bebidas alcoólicas e outras drogas, tornando a “festa” mais tchan. A palavra de ordem era a depravação absoluta.
               No meio da noite, Janu estava a todo vapor – literalmente fumando maconha e rebolando – ao som de uma linguagem que consistia única e exclusivamente nos significantes:Balance a bundinha pra lá, balance a bundinha pra cá! Com raríssimos intervalos para a banda tomar alguma coisa e trocar de roupa. Logo depois a linguagem se recompunha: Balance a bundinha pra lá, balance a bundinha pra cá! E então Janu passou a sentir uma espécie de sombra por trás de si a repetir-lhe de forma sincrônica os mesmos movimentos. Depois, a “sombra” foi gradativamente acoplando-se ao seu corpo; mais adiante, quando deu fé, os dois corpos formavam uma só estrutura. Então ele gostou...  Era Paulão que lhe vinha atraindo. Paulão era um indivíduo estranho ao universo sertanejo, mas que passou a vir da capital para as baladas sertanejas com o intuito de “pegar veado”.
          Findo o “show”, Paulão segurou a Januário pelo braço e foi logo conduzindo-o para o carro.
          – Você é doido? Eu ainda sou casado!
          – Eu também sou...
          – Pra onde você vai me levando?
          – Para o D’Lírios. A gente corta caminho pela Queimada do Raso e já vai sair entrando em Ribeira do Pombal.
          Passados três dias do programa com Paulão, Januário foi acometido de uma recaída depressiva, acompanhada de muita vergonha e muito remorso. Procurou remédios em casa para se acalmar e encontrou uma certa quantidade de barbitúricos prescritos para insônia; ingeriu tudo de uma vez, caiu na cama e desacordou. Quando veio a si, estava sendo transferido de uma UTI para uma enfermaria do Hospital Geral do Estado. Veio a obter alta dois meses depois, sendo encaminhado ao Serviço de Atenção Psicossocial do seu município de origem.
         No dia em que chegou à unidade de saúde para iniciar o tratamento, Janu foi encaminhado a uma terapeuta, especialista no assunto.
         – O que foi que te aconteceu? Precisamos conhecer o teu histórico.
         O moço passou a narrar toda a sua trajetória de vida, para uma autoridade médica atentíssima e muito atenciosa, até que chegou ao episódio do motel.
         – Mas como foi a tua infância?...
         – Normal!
         – Você se lembra de alguma vez ter brincado com boneca?
         – Sim... Eu tive algumas bonecas na infância!
         – Você cuidava das roupinhas da boneca, trocava, lavava, consertava, vestia a boneca?
         – Sim, Doutora, eu fazia tudo isso que a senhora me perguntou.
         – Você dava mamadeira para a boneca?
         – Sim, Doutora...
         – E quando a boneca punha aquele bocão depravado, mamando sofregamente insaciável aquela mamadeira?
         – Eu...
         – Já sei! Você sentia arrepios, laivos de delírios incontidos. Você mal conseguia controlar-se, entregar-se-ia a qualquer um que adentrasse ao quarto naquele momento. Você o faria sem a menor vergonha, sem o menor pudor, sem o menor escrúpulo, sem o mínimo remorso, sem o mais tênue sentimento de vergonha, sem o menor temor. Tudo sem limites... Diga-me uma coisa, você sentava na boneca?
         – Eu...
         – Ah!  Está explicado. Vou tratar do seu caso com o maior carinho!
         A terapeuta curvou-se sobre a escrivaninha e pôs-se a fazer anotações. Depois levantou-se eufórica, alvoroçada, alucinada e com o olhar esfuziante, fito na parede dos fundos da sala, passou a gritar no consultório em estado de alucinação absoluta, literalmente, aos berros:
         – Você não pode mais continuar escondendo o jogo. Solte a franga, saia do armário, transforme-se, vista saia, libere essa menina linda que há dentro de você! Você não pode continuar sendo um homicida assumido, assassinando essa linda menina por asfixia!
         – Eu...
         – Você vai sentar no colo de Pica de Ferro! Pica de Ferro vai dar um jeito na tua vida!
         Os loucos que se encontravam na ante-sala, aguardando a vez de serem atendidos, ouvindo a psiquiatra expressar-se naqueles termos, ficaram todos curados. E logo pensaram que a ciência invertera os papéis; doravante eles é que passariam a tratar de terapeutas.
         Logo, a médica voltou a assentar-se, preenchendo, carimbando e assinando formulários.
         – Vou te encaminhar para o cirurgião plástico te avaliar, quando passares pela recepção, deves pegar logo o Kit Bonequinha. Lingeries das melhores grifes do Planeta.  Precisas já estar trajada a rigor, iniciando o tratamento; o carro da saúde está à disposição para conduzir-te. Daqui por diante, ficarás morando em um SPA Salute em Lauro de Freitas. Tudo por conta do governo. Aqui está o telefone do Gabinete do Ministro da Saúde, qualquer dificuldade ou insatisfação com os atendimentos é só ligar diretamente – sem intermediários – para o Gabinete. Ah! Também vou deixar contigo os meus telefones e e-mails, para qualquer necessidade. E quando a transformação tiver sido concluída quero te convidar logo para passar uns dias conosco em uma casa que temos na Ilha, onde recebemos algumas amigas entendidas para relaxar e outras coisas mais.
         – Ah! Doutora, quando tudo tiver terminado, os primeiros momentos serão com o Paulão (suspiros). Ah! Doutora, aquele homem não existe. Aliás, Paulão não é um homem, é um cavalo; mas um cavalo dos pampas, domado pela elevada cultura, pela erudição, pela educação esmerada, pelo trato refinado de um homem muito culto... Paulão inventa, Paulão não existe, ele é um louco... (risos). Paulão é gaúcho, Doutora, mas um gaúcho macho que não tendo encontrado em Pelotas o que queria, veio para a Bahia introduzir aquela Bomba avantajada, férrea e muito erétil nas Cuias disponíveis e acessíveis por estes sertões afora, nelas deitando um líquido esbranquiçado e pegajoso, nutrido do mate afrodisíaco das plagas do Rio Grande. Por isso, ele costuma dizer: “Sê Deus fez o mundo em sete dias, seis dias foram gastos em fazer o Rio Grande do Sul e a sua natureza esplêndida, porém, daqueles seis dias cinco e meio foram gastos para fazer o mate”! É no mate que ele encontra toda a sua força sexual!
         Na manhã do outro dia, Januário foi recebido na sala do cirurgião plástico que lhe examinou detida e minuciosamente, prescrevendo uma bateria de exames, e logo depois passando a avaliar as formas estéticas desejadas. Diante do cliente, o médico abriu um programa de computador, abastecido com modelos de bundas e xoxotas para todos os gostos, e então passaram a discutir detalhes sobre as mais adequadas ao corpo do que passaria a ser mulher. O médico apontava partes que lhe pareciam mais sensuais e mais atraentes. Insistia até. Quando chegaram à seleção mais adequada de alguns modelos, o Doutor pediu a Janu para deitar-se na maca de barriga para baixo, passando a apalpar-lhe as nádegas. Então Janu teve um insight: aquela mão não lhe era estranha, mas fingiu de nada presumir. Logo, concluídos os exames preliminares, passaram à definição do tempo da cirurgia.
         – Demora muito para acontecer, Doutor?
         – Neste teu caso não! Tu escolhes a data e o Estado arca com todos os custos, tchê. Fosse uma pessoa cancerosa, diabética, cardíaca aí bota tempo nisso... Mas o teu caso tem prioridade e o SUS assume tudo imediatamente. Reparaste como estão os corredores?
         – Doutor, o que é aquilo?
         – Uma calamidade. Como estás vendo... Há uma senhora idosa cancerosa ali que virá a óbito porque a Secretaria de Saúde alega não ter vaga em um hospital especializado. E a paciente terá que submeter-se a um sistema de regulação, como se o câncer avisasse quando vai acometer a uma pessoa. Há uma outra paciente que eu iria operar, mas faltam dois pares de cateter que custam cinquenta reais cada. A farmácia do hospital não tem, a Secretaria mandaria fazer uma licitação para adquirir que levaria três meses, a família não pode comprar. Então a paciente vai morrer.
         – Doutor, e a minha cirurgia é feita aqui?
         – Claro que não! Senão seria considerado crime de homofobia. Aqui somente esta avaliação preliminar. O hospital da cirurgia tu é que escolhes se no Brasil ou no exterior, porque terá que ser um centro cirúrgico de excelência científica comprovada.
         – Doutor, por que será que eles estão fazendo tudo isto para a gente?
         – Eu penso que eles querem manter um estoque estratégico para quando deixarem o governo...
         – Então já posso escolher o hospital, a data e fica tudo acertado?
         – Sim! Também o teu nome que passa a ser Janaina. Mas tem também a questão social que eu não sei se a doutora que te encaminhou chegou a te explicar...
         – Não! Essa parte não.
         – Pois vamos lá! O governo criou a Bolsa Bofe para atender aos interesses de vocês. Vejamos como funciona: se você tiver um parceiro de preferência, ele deve ser matriculado no programa da Bolsa Bofe. Matriculado, ele ficará recebendo uma Bolsa equivalente a setenta e cinco por cento do teto do maior salário nacional. Ainda o “casal” terá direito a cartões coorporativos sem limites e sem obrigação de prestação de contas, passaportes diplomáticos, planos de saúde internacionais, compras de automóveis de qualquer origem com IPI zero, empréstimos bancários a fundo perdido sem taxas e sem juros, isenção absoluta de IOF ou outro qualquer tributo exigido pelo governo, inclusive o Imposto de Renda e outros encargos mais. E se um dia você quiser voltar a ser homem, o governo te dará um pênis novinho em folha do tamanho e do calibre que você quiser. Mais alguma dúvida?
         – Não, Doutor, está tudo esclarecido...
         – Então quando estiver tudo concluído quero que a primeira noite seja comigo.
         – Ah! Doutor, eu já disse para a Doutora que me atendeu antes que a primeira noite será com o Paulão...
         – Eu sou o Paulão!
         – Ah! Não!!! (atirando-se nos braços do médico).
         – Deixe que eu tiro as calcinhas...
         – Onde?
         – Aqui na maca mesmo.
         – Ah! Paulão, tinha que ser você...
         – Ponha-me na Bolsa Bofe. Eu vou abandonar a medicina para ficar contigo.
                                                                                     Serrinha, 27 de dezembro de 2012.
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PÉTALA DO LÁCIO
                                                                   por José Plínio de Oliveira

               Naquela manhã Helena sentiu uma vontade irresistível de caminhar pela cidade. Desde que se separou do marido e retornou de Salvador para a sua cidade natal que deixava em estado de desassossego as mulheres casadas e de relações estáveis. Uma mulher jovem, bonita, rica, elegante e sensual representava uma tentação para os homens comprometidos, mas vulneráveis aos apelos da carne.
              Há uma cultura arcaica na Bahia que incita a indivíduos que vivem na capital do Estado e que aspiram desesperadamente a ascenderem nas carreiras políticas ou nas hostes burocráticas do governo a procurarem casamentos “bem sucedidos” com moças do interior, filhas de famílias abastadas e de grande influência política nos negócios públicos do Estado. Nesse sentido, há uma forma de canonização das oligarquias dominantes do Sertão de Canudos, por exemplo, que abre uma espécie de abismo entre os poderosos canonizados e as massas oprimidas; o que enrijece as relações de Poder e Dominação ao longo das eras, também manipulando os negócios matrimoniais como forma de perpetuação do poder nas mãos dos poucos privilegiados. Mas, ainda assim, o casamento é a realização de um sonho, a conquista de um mundo de felicidades, a construção de uma família próspera e estável, para a grande maioria das moças de famílias nobres e tradicionais do universo sertanejo. Logo, há um cânion reduplicado que tanto privilegia as musas do sertão quanto os moços bem nascidos da capital. Cultos, educados, bem apessoados e candidatos a futuros muito promissores. Para esses moços, os consórcios matrimoniais canônicos muitas vezes representam as garantias das suas pretensões pessoais: ocupação de espaços privilegiados na sociedade, poder político e sucesso financeiro. Quer dizer, nessas circunstâncias, o casamento é um negócio bem sucedido em que os fins justificam os meios. Nesta perspectiva de interesse aristocrático, é muito comum a potestade declarar em pronunciamentos públicos: “Eu fui casado, agora sou divorciado, porém, a amizade com a ex-mulher é a mesma”. Como se a condição de divorciado seja uma qualificação especial para o exercício de poder na esfera pública oficial. Mas, também, há certa ostentação de prestígio e vaidade da parte das famílias nobres e tradicionais do sertão no sentido de que as suas filhas casem-se com moços de Salvador. Todavia, atendidas as expectativas de prosperidade do esposo, o casamento entra em crise e se desfaz. Então a divorciada – na maioria das vezes – volta a viver nas suas terras de origem, sob os ônus de grandes frustrações, decepções, recalques, angústias, depressões e outras mazelas decorrentes da difícil experiência da vida conjugal arquitetada por relações de interesses.
              Nas cidades do interior da Bahia não se busca desenvolver culturas literárias e de outras Artes, que produzam subjetividades e positividades elevadas, em um sentido simbólico, mas propiciando um estado de espírito capaz de harmonizar e sublimar as tensões do cotidiano, convertendo-as em materiais de agenciamentos de individuação perante clássicos da Literatura, da Música de qualidade, do Teatro, da Dança e das fontes primordiais em que a Alma Humana vai dessedentar-se e nutrir-se do que há de mais desejável e saudável, para uma mudança de textura confortável. Isso não quer dizer que as Artes tenham funções determinadas nos espaços concretos das sociedades humanas. Não. Não é isso. Entretanto, não se pode negar que a Arte é uma prática humana, e como tal, está presente no espaço concreto em que o homem também se faz presente e se produz enquanto ser.       
              – Rapaz, aquela mulher deve ser um fodâo! Menelau costumava dizer quando Helena saía de casa logo no início da manhã para a sua caminhada erótica, circulando pela Praça da Igreja em trajes exageradamente provocantes.
              Desde que a moça voltou a residir na cidade que os homens de melhor posição social passaram a deixar os seus aposentos muito mais cedo e vir para a praça pública a vê-la desfilar naquelas manhãs sertanejas, carregadas de beleza, encanto e sensualidade. Ela tinha plena consciência do fascínio que exercia sobre eles, mas portava-se com absoluta indiferença.
            Na manhã daquele dia, Helena despertou muito inquieta, cuidou da toilette, tomou o café da manhã, foi ao guarda-roupa, escolheu o short mais provocante, pegou por engano da pressa uma jaquetinha de última moda da filhinha quase adolescente, vestiu, passou pela garagem, deixou os automóveis e saiu a pé, alongando mais o percurso.
            – Você é gostosa! Você é gostosa! Você é gostosa...
            As vozes pareciam vir do interior da edificação do novo colégio municipal. Ela não deu importância e continuou a andar.
            Quando Helena foi passando pela calçada do edifício do Fórum, estavam: o nobre Doutor Ulisses, o candidato Apolônio – pretendente à Prefeitura Municipal – o vereador Aquiles, o moço Jaciel, Presidente da Câmara de Vereadores e um grupo de correligionários a aguardar o início do expediente, para tratarem de algumas pendências de deferimentos de candidaturas. Para isso, vinha da capital o nobre Doutor Ulisses, que, justamente, naquele momento explicava um preceito clássico da jurisprudência eleitoral:
            – Toda e qualquer lesão do direito é passível de tramitação pelo crivo do ofício judicante... Caramba!!! O que é aquilo?
            – Ora, uma mulher...
            – Não! Aquilo não é uma mulher. É uma obra de Arte... Aliás, uma das mais belas que os meus olhos já contemplaram... Aquilo é uma Obra canônica. E se já não se encontra lá; tem que ser elevada ao cânone...
            – Doutor, o que é o cânone?
            – O cânone é uma consagração absoluta de uma Obra de Arte. É a elevação, o reconhecimento de uma Obra de rara beleza, uma Arte que extasiante, atrai e fascina um público mais esclarecido, confunde a crítica, exaspera a teoria, dilacera o método, desestrutura as formas, arrebenta os conteúdos, funda, inaugura uma concepção de Belo...
            Enquanto ia dissertando, o Doutor Ulisses caminhava no sentido do Hotel do Conselheiro, absorto, inebriado, embevecido e como que embriagado e atraído por uma força misteriosa que o arrastava para o desvario, foi alcançado pelo vereador Jaciel quando Helena já adentrava ao espaço da imensa quadra de eventos.
            – Doutor Ulisses... Doutor Ulisses... Doutor Ulisses, o Juiz já chegou.
            – Hein!!!
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            Quando Helena pôs os pés no ângulo da quadra de eventos, o Sol projetou um raio de luz sobre um pé de algaroba e então as flores áureas da árvore esparramaram-se sobre a imensa laje, formando um tapete espraiado de pétalas reluzentes. Quem olhava da extremidade angular do hexágono que aponta para os lados de Aribicé, via como que um imenso tabuleiro revestido de estilhaços de estrelas por onde passeava a musa.
            – Você é gostosa! Você é gostosa! Você é gostosa...
            Então ela desconfiou de que era seguida discretamente por um moço tímido que tanto desejava aproximar-se dela, mas que temia uma negativa áspera ou talvez um xingamento, uma humilhação, uma reação inusitada. Entretanto, ela passou achar interessantes os elogios e até a idealizar a pessoa opaca que vinha sendo arrastada pelos seus encantos. Vários foram os pretendentes imaginados, até que lhe veio à mente a figura do jovem Páris, um técnico da EBDA que veio para a cidade trabalhar projetos de criações de caprinos e ovinos nas terras da Aldeia Indígena de Massacará.
            Há dias que Helena vinha notando – como se diz no Sertão de Canudos – as quedas de asa do moço. Até estava gostando, mas o rapaz não se decidia. Para encorajá-lo passou a dar voltas pela quadra. E aquele espaço salpicado de pétalas douradas instaurava um ambiente poético. Signos de poesia sobre que pisava com o rumor sublime de uma gazela sagrada dos prados de Apolo, naquela manhã de Primavera sertaneja. Foi então que ela passou a ouvir como que versos de um Soneto de Camões, sussurrados pelo vento: Amor é fogo que arde sem se ver... O sussurro leve que insistia em varrer o cântico apaixonado na língua do vate lusitano – a Flor do Lácio – compungia a alma da moça, tal como uma súplica devotada a uma deusa canonizada. No entanto, o moço não deu ar da graça e então Helena passou a refletir sobre o seu lugar no cânone e a imaginar que a canonização exagerada dificulta as coisas, as pessoas passam a ter receio ou medo de se aproximar delas. Como das literaturas clássicas, das obras elevadas ao inatingível. “Ah! O cânone não devia ser uma forma de distanciamento, mas um meio de aproximação. Devia ser ele um estímulo aos relacionamentos, aos encantamentos, aos enlevos todos que a vida oferece, às leituras todas de que o coração tem sede. Ah! O cânone não devia aprisionar as preciosidades no hexágono superior da Biblioteca de Babel, mas trazê-las para o mundo”... Pensou. Depois decidiu voltar para casa, e a voz continuou:
            – Você é gostosa! Você é gostosa! Você é gostosa...
            Entrou depressa na sala e atirou-se no sofá. Exausta. Pediu água, retirou a jaquetinha e atirou-a no chão. Então, caiu do bolso um aparelho celular, vociferando desesperado:
            – Você é gostosa! Você é gostosa! Você é gostosa...
           Era o da sua filhinha quase adolescente pelo que o amante septuagenário tentava marcar um encontro no São João de Quijingue.

                                                                     Serrinha, 20/09/2012

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ARIBICÉ
                                                                         por José Plínio de Oliveira*


– Rô, rô, rô. Rô, rô, rô. Rô, rô, rô. Esse cabra sou eu! Rô, rô, rô. Rô, rô, rô. Rô, rô, rô. Esse cabra sou eu...
José Kalisto cantava e limpava cuidadosamente a moto com o rádio ligado, aproveitando a sombra generosa que deitava no oitão da casa. Logo, interrompeu bruscamente o trabalho, correu à sala, apanhou o celular e saiu para o terreiro:
 – Galeguim, Galeguim! Aqui quem fala é Zé Kalisto, passe a música a frô do me barrio!
 – Você oferece a música para alguém?
 – Ofereço pra um alguém muito especial que mora em Aribicé...
                – Aí vai a música que você pediu, Zé Kalisto, que só toca pelas ondas sonoras da meia oito ponto cinco. Um grande abraço para a galera de Aribicé, para as galeras da Queimada, da Queimadinha, do Pau ferro, do Soares, do Cipó, da Nova Trindade, do Muriti... Galera de Kaimbé! Galera de Massacará... Alô Cacique Juvenal Kaimbé! Alô galera de Mirandela! Alô Cacique Lázaro Kiriri! Velho Guerreiro da Reconquista da Terra. Alô galera de Marcação! Aquele abraço! Genivaldo do Artesanato Indígena e toda a galera... Alô galera de Araçá! Índio do Forró... São João tá chegando, viu? Todo mundo ligado na meia oito ponto cinco, Rádio Caipora FM. A emissora mais ouvida no Norte, no Sul, Leste, Oeste, Sudeste, Nordeste, Noroeste, Sudoeste e Centro-Oeste do Brasil!...
                Nesse momento, Mãe das Dores retornava do cercadinho onde cultivava hortaliças, frutas e plantas para remédios, trazendo umas folhas de malva para um banho de mulher de resguardo, encontrando o filho na mais franca euforia com o ouvido colado no rádio.
                – José, meu filho, tu ainda anda com essas pabulage?
                – Oxi! Mãinha, deixa o Galeguim falá, deixa o Galeguim falá!

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               Há tempos que Dona Maria das Dores, Mãe das Dores, como era conhecida pelo povo, trazia no coração uma grande preocupação com o “menino”. E agora que ele havia comprado aquela moto não tinha mais sossego na vida. Era um subir e descer que não parava. Se estava em casa, era somente para zelar da moto com aquele bando de flanelas. Sacudindo-as, lavando-as, pondo-as ao sol. Às vezes, dava gosto ver aqueles cuidados quando voltava da Rua, lavando a moto, secando-a, procurando um fiapo de cisco onde quer que ele estivesse; polindo as peças cromadas que faiscavam como pérolas. Mas toda aquela latomia desmedida punha Mãe Dores a pensar.
               José Kalisto, caçula dos onze filhos de Dona Maria, segundo ela própria, era um “menino do coração mole, estava sempre encanfinfado com mulémas não dava sorte no amor”. Era um sofrimento vê-lo atrás de uma e de outra, levando chifre, sendo explorado, escorraçado como cachorro e desmoralizado “na boca da canalha”. Nos últimos tempos, havia se apaixonado por uma cigana de Banzaê, e para tirá-lo das garras da quenga, Mãe das Dores teve que mourejar na labuta dia e noite. Até que o Pagé lhe deu uma solução de muita valia. Como se não bastasse, há cerca de dois anos, trouxe para casa uma menina que arrumou em Adustina.
               A menina era viciada em drogas e José Kalisto não sabia, somente veio a dar fé quando ela passou a ter crises frequentes de abstinência. Foi um deus-nos-acuda. Ninguém sabia o que fazer quando ela caia pelo chão estraçalhando a roupa, arrancando os cabelos, correndo para o mato nuinha como havia nascido. E ele atrás como um doido para prestar socorro. Até que um dia procurou um curador, pensando que era um encosto. Até que o homem chegou a fazer alguns trabalhos, mas nada dava certo. Passados uns tempos ela confessou a verdade: Era de Salvador e tinha se envolvido com o narcotráfico desde criança. Andou pelo Conselho Tutelar, foi apreendida na Casa do Menor e do Adolescente, cumpriu medida disciplinar, foi devolvida aos pais, voltou ao crime e em já tendo atingido a maioridade foi parar no Presídio Feminino onde cumpriu pena. Posta em liberdade, veio parar no interior em casa de parentes.
              No dia em que a moça narrou a sua história, o coração indígena de Mãe das Dores encheu-se de compaixão. Então ela caminhou para Mirandela, tornou a conversar com o Pagé e trouxe o remédio. Com poucos dias, a menina estava curada e José não se continha de alegria. Até que apareceu uma firma da capital, trabalhando na construção de barragens e ela acompanhou um engenheiro.
               “Parece que a vida do meu filho é só de sofrimento”. Mãe das Dores falou para um pé de Jatobá que dava sombra para o curral.
               – Mãinha, eu vou na Rua...
               – Ô, Meu Filho, tu já vai nesse encegueramento?
               – Minha Mãe, eu vou fazê o quê, se o coração pede?
               – Meu Filho, tu tem razão! O coração da gente é mais dos outro do que nosso...
               A moto foi descambando pela estrada do povoado de Aribicé que passava pela extremidade da Baixa dos Caboco onde ficava a cancela grande, e a velha índia ficou olhando para aquele mundo como se estivesse a contemplá-lo pela primeira vez. Depois botou a mão na cabeça e falou em voz alta para os arvoredos próximos:
               – Meu Pai! Por que ainda não tinha pensado na Baixa?
               Com pouco avistou a moto serpenteando a curva do espinhaço da serra, deixando a fumaça branca a contornar a paisagem. Então Mãe das Dores foi descendo em direção à Baixa dos Caboco, pondo-se a refletir sobre a memória.
               Quando Francisco Garcia D’Ávila iniciou a expansão do criatório de gado bovino para as terras do Baixo Itapicuru, encontrou os povos nativos que ali viviam há milênios. Foi logo se aproximando deles, interessado em suas nascentes de água, porque naquele sertão dos séculos XVII e XVIII as áreas de pastagens nativas eram abundantes, mas nem tanto as águas de que somente os índios tinham conhecimento. Daquela forma, o pioneiro da pecuária na Bahia passou a envolver em um engodo fortuito alguns índios que se expressavam através de um dialeto articulado entre a língua nativa Kipeá e o idioma do colonizador, visando ao controle das fontes e nascentes que pertenciam aos povos indígenas. Por esse tempo, os nativos vinham sendo catequisados pelos missionários franciscanos, que fundaram a Missão de Nossa Senhora da Trindade de Massacará dos Índios Kaimbés, por volta de 1639. Depois, na segunda metade do século XVII foi erigida a Missão de Nossa Senhora da Ascensão do Saco dos Morcegos, dos Índios Kiriris. Entretanto, a Invasão Holandesa em 1654 interrompeu o trabalho missionário, somente retomado pelos jesuítas em 1679 que bem souberam reconhecer muitos dos valores da cultura indígena; principalmente os espaços sagrados da Mãe Terra.
               Ora, a Baixa dos Caboco, assim denominada pelos homens da Casa da Torre, além da sua importância mítica, era um sítio muito aprazível para os recreios do povo kiriri. Terra fértil e bem úmida, árvores altíssimas e robustas, vegetação muito verde e muito abundante – mesmo nos longos períodos de estiagens –, e também nascentes perenes de águas cristalinas de correnteza constante a irrigar terra-abaixo aqueles prados de baixios em que os homens apascentavam o gado e coletavam água para o consumo da tropa. Mais que um Éden, era um paraíso sagrado para os índios. Um Templo do Pai Tupã a céu aberto, em que na encosta da serra, protegida por densa vegetação, eles sepultavam os seus entes queridos em urnas de cerâmica. Portanto, quando as tropas de Garcia D’Ávila passaram a abrir Caiçaras pelo sertão adentro, para estabelecer currais e basear vaqueiros, tiveram que respeitar aquele sítio pelos mistérios que o envolviam. Nesse sentido, convém resgatar a memória missionária dos Padres João de Barros, impávido defensor dos índios, enfrentando a sanha de Garcia D’Ávila, e o Padre Eusébio Dias Lassos, militante defensor da vida indígena do sertão da Bahia. Graças a esses defensores da cultura indígena, o espaço sagrado do povo foi poupado. Mas, no correr dos dias, chegou um jovem vaqueiro para campear na região quando foi atraído pela beleza inebriante de uma jovem Kiriri. O moço apaixonou-se perdidamente por ela e foi correspondido, queria casar-se e, para tanto, recorreu à intercessão dos missionários que foram solidários para com o coração do moço, mas levaram-no a entender-se com o Cacique e com a família da moça. Todavia, a tribo estava muito magoada com o povo de Garcia D’Ávila por ele ter destruído moradias indígenas e as igrejas de Itapicuru, Jeremoabo e Massacará, e por todas as outras formas de violências bárbaras, perpetradas contra os índios. Portanto, mesmo respeitando os sentimentos do vaqueiro, o Povo Kiriri não podia aceitar aquele enlace. A indiazinha também sofreu muito.
               Alguns dias depois, inconsolável, o jovem vaqueiro embrenhou-se pelo mato, despiu-se da indumentária de labuta, deitou sobre um grande formigueiro e deixou as saúvas consumirem-lhe a carne. Somente os seus ossos foram achados depois de dias. E logo passados alguns momentos do achado trágico, a tribo foi surpreendida pelo desaparecimento da indiazinha Aribicé. Então os guerreiros puseram-se na busca da jovem, embrenhando-se pelas matas, escalando as serras e descendo pelas grotas inutilmente. Dias e noites de buscas e vigílias, até que passadas três luas, o corpo dela foi encontrado em um recanto quase inacessível da Baixa dos Caboco. Portanto, o seu corpo foi sepultado no mesmo lugar em que foi achado.
               A morte da virgem Aribicé comoveu a aldeia Kiriri. O povo sofreu muito a sua perda. Ela era tão jovem, tão bonita, sabia preparar a jurema para servir nas festas e cerimônias espirituais, dançava o toré, tirava imbira de pindoba para tecer as vestes e os adornos, recolhia o tauá para as mulheres idosas trabalharem a cerâmica, tecia redes de caroá, preparava o tapiti para espremer a massa da mandioca e imitava as músicas dos pássaros, e os gorjeios das multidões silvestres; em tudo o que fazia derramava uma abundância de bondade. Por isto, assim muito jovem, convém lembrar, além dos atributos que lhes foram peculiares, a indiazinha Aribicé teve um papel preponderante na afirmação do caráter da mulher indígena daquela era, em face dos discursos da catequese cristã; por isso os missionários jesuítas devotavam-lhe um grande respeito, pela defesa que levantava em favor da mulher índia. Ela foi a primeira mulher indígena do sertão da Bahia a apaixonar-se livremente por um não-índio; apesar dos graves conflitos étnicos de então. Também, ela foi a primeira mulher daquela nação a inundar de ternura o coração de um homem branco, desobrigada de qualquer matiz de coação. Somente o Amor foi forte o suficiente para curvá-la perante a dor.
                No lugar onde o corpo da indiazinha foi sepultado nasceu uma árvore de espécie ainda não existente naquelas plagas do sertão. O povo a batizou com o nome de Aribicé e ela veio a tornar-se a mais alta e frondosa da mata.
                Quando chegava o tempo da Primavera, Aribicé ficava coberta de flores encarnadas, de um vermelho muito forte. As flores tinham formas de pequenos corações e caíam sobre a mata, e esparramavam-se sobre o chão, formando um imenso tapete estendido para a bondade do mundo. Então, para o povo indígena, o nome Aribicé passou a significar Coração Bondoso. E assim foi venerado por algumas eras, tornando a Baixa dos Caboco um lugar mais sagrado ainda.
                O tempo foi caminhando sem pressa e por suas veredas passaram a invadir o sertão outras novidades do homem branco: o Serviço de Proteção aos Índios, depois a FUNAI, a escola, o posto médico, a vacina, o xarope, o comprimido, o automóvel, a energia elétrica, o rádio, a televisão, a geladeira, a cerveja, o trio elétrico, a moto, e etc. Com tantas novidades, alguns espaços míticos dos índios foram sendo esquecidos. E a árvore Aribicé foi sendo lentamente preterida. Mais adiante, o governo mandou perfurar poços artesianos, fazendo secar as fontes nativas e extinguir os brejos; com isto a drenagem pluvial passou a trazer enxurradas de areia muito alva, a espalhar-se como um imenso lençol de algodãozinho pelo interior da Baixa. A relva nativa foi soterrada pela areia que foi crescendo e subindo pelos troncos das árvores, a cada período de chuvas, e as macambiras, outrora tão viçosas, delas agora somente se viam fiapos de folhas espinhosas, tentando submergir para a glória da natureza. A Baixa dos Caboco foi relegada ao esquecimento; passava-se por ela em silêncio, somente como lugar de crença dos antepassados. Mas quando a moto de Zé Kalisto descambou para o outro lado da serra, Mãe das Dores olhou para a Baixa, recordou-se de Aribicé e caminhou para ela.
                O olhar de Mãe das Dores iluminou a memória do povo indígena e ela andou para a árvore como que atraída por uma força superior às suas:
                – Mãe Aribicé, a senhora viveu e morreu por amor; assim nos contavam os nossos antigos e os nossos mestres da Escola Indígena. O seu coração bondoso foi a glória do nosso povo. Por isso eu venho pedir ajuda à senhora, Mãe Aribicé. Salve o meu filho deste sofrimento amoroso. Tantas decepções, tantos enganos, tantas ilusões, tantas amarguras do coração, tanto querer bem sem ser correspondido. Mãe Aribicé! Eu te suplico... Tire o meu pobre filho desse cativeiro sentimental...
                Enquanto Mãe das Dores ia falando, a árvore foi salpicando sobre ela pétalas rubras semelhantes a pequeninos corações sangrando. Com pouco, a velha índia ficou envolta em uma nuvem densa deles. Então ela compreendeu a mensagem, reverenciou a árvore e retornou para casa com a noite caindo. Alta madrugada ouviu gritos:
                – Mãinha! Mãinha! Me acode, Mãinha.... Socorro!...
                Era José Kalisto que abandonou a moto na ribanceira da Baixa e correu para casabotando os bofes pela boca, como se diz no sertão. Entrou pela porta da sala como uma flecha e correu para o quarto onde tremia como um pé de juá açoitado por uma ventania. Aí Mãe das Dores fechou a porta e entendeu que tinha sido ouvida em sua prece.
                – Minino! Que é isto?
                – Ua mulé... Mãinha... Ua mulé... Lá na cancela da Baixa! Me socorra Mãinha...    
                – Deite aí que eu vou te trazer um chá de fedegoso com outras ervas... 
                Sorvido o último gole do chá, Zé Kalisto adormeceu e só veio a despertar à boca-da-noite. Não quis mais sair do quarto e por lá ficou durante sete dias. Então, Mãe das Dores mandou um recado para a Aldeia e o Pagé veio logo em socorro.
                – Vamicê bote sentido nele! Dentro de três dias ele vai sair pra caatinga. Deixe ele ir, mande me avisar e vá levando de comer e água pra ele. Mande me avisar!
               Dito e feito. Três dias depois, Zé Kalisto embrenhou-se no mato e lá ficou por seis luas. Quando chegaram as trovoadas, ele retornou para casa por espontânea vontade. E as chuvas caíram pesadas e as enxurradas cobriram a moto de areia, deixando de fora somente uma ponta do guidom.
                Quando Mãe das Dores deu por fé, Zé Kalisto foi desasnando, passou a andar pela casa, cuidar das coisas, sair na porta para ver o tempo das chuvas, sem jamais perguntar pela moto. Assim, passados alguns dias das chuvaradas constantes, apareceu um punhado de sol, acariciando a relva. O verde já tomava conta do mundo, as árvores da Baixa bailavam sob a luz do sol como em espetáculo de gala no palco do Teatro Bolshoi, e ao redor do curral espocavam touceiras de língua-de-vaca, e o maxixe, a melancia, o bredo, o tomate miúdo, o capim viçoso enchiam a vista. O melão de são caetano ia subindo pela cerca do quintal afora e a orquestra da saparia melodiava no açude dia e noite. O cheiro gostoso da caatinga invadia a casa como o aroma de moça solteira em Noite de São João. Então, José Kalisto saiu para o terreiro, andou ao redor da casa, subiu num lajedo alto para contemplar o açude sangrando. Ficou por um tempo absorto, inebriado diante daquele mundão de boniteza e de fartura... Com pouco voltou para casa e dirigiu-se para o quarto das ferramentas, abandonadas há tanto tempo, pegou o que precisava e foi saindo para o campo.
                – Mãinha, quando dé meio dia, me leve de cumê e uma cabaça d’água na chapada das baraúnas que eu vou botar um roçado.


                                                                              Serrinha, 28/04/2013

*PROFESSOR DE LITERATURA NO CAMPUS XIV E NO CAMPUS XXII DA UNEB, RESPECTIVAMENTE EM CONCEIÇÃO DO COITÉ E EUCLIDES DA CUNHA.

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