Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

NAS MALHAS DA REDE

NAS MALHAS DA REDE  por José Plínio de Oliveira


MEU NOME é Pedro Ricardo, tenho a idade de 28 anos, vivo e trabalho em Feira de Santana; aliás; nasci em Feira de Santana, mas fui para a Europa na infância, somente  voltando aqui em ocasiões especiais. Estudei Ciências da Informatização na França e sou doutor em Administração de Sistema e Globalização, trabalho para uma grande rede bancária multinacional com sede em Tóquio. 
             
Sou um típico homem do Terceiro Milênio, produzido pelo capitalismo virtual para  aprimorar e gerir as suas relações com o mundo globalizado, assim tenho que  viajar sempre em razão do meu trabalho. Moro sozinho em uma espécie de flat de espaço muito amplo para os padrões convencionais; tendo aqui mesmo o espaço de trabalho. Todo informatizado e equipado com o que há de mais sofisticado em tecnologias avançadas. Portanto, lido com códigos de linguagens eletrônicas de elevada complexidade e de muito difícil tradução para outras áreas do conhecimento científico. Isto faz com que as minhas relações com a nossa Língua sejam cada vez mais limitadas. Eu quase não falo, eu quase não tenho amigos.
             Eu gosto de Feira de Santana!
                Sou o único brasileiro que exerce esse tipo de trabalho no Banco e coordeno todas as relações de negócios da empresa com grandes clientes da América Latina e de outros países do mundo, em geral, governos e grandes empreendimentos empresariais. Meu pai costuma di- zer que com esta profissão muito rentável eu poderia hoje viver muito folgadamente em qualquer grande cidade da Europa ou dos Estados Unidos da América.
              Mas eu amo muito Feira de Santana!
              
       O capitalismo oriental pensa este planeta como uma extensa rede de negócios; devendo ficar os gestores dela distribuídos pelas áreas de entrecruzamento da Terra. Por isso, Feira de Santana foi escolhida como um pólo desta rede. Há outros em todo o mundo.  Porque o pensamento oriental estuda questões de energias holísticas que colaboram para o sucesso  de seus grandes empreendimentos. Ora, como eu já trabalhava para o Banco e havia essa linha de reflexão, nada melhor do que ter um indivíduo do meio potencializando energias lucrativas   a partir deste meio. Na verdade eu funciono como uma ligadura essencial da malha dessa extensa rede. Daqui mesmo faço contato virtual com dimensões de imagens e discursos em tempo real com outros executivos do Banco em todo o mundo. Hoje, por exemplo, tomei parte em uma conferência com o presidente da empresa e um outro dirigente baseado no Nepal, visando ao aperfeiçoamento de um contrato a ser celebrado com o governo daquele país. Nesses assuntos, muitas vezes, a decisão final cabe a um executivo de outra ponta do mundo; foi o meu caso hoje.
              O presidente do Banco é um velhinho quase centenário, um homem de hábitos    simples que nas horas vagas cuida de hortas e pratica Bonsai. Um súdito prestimoso do imperador do Japão que sempre me passa a convicção de estar diante de um mestre do budismo. A sua  tradutora para a Língua Portuguesa é uma amiga nissei que conheci em São Paulo. Em nossos encontros de trabalho tanto presenciais quanto virtuais sinto que o velhinho tem consciência dos riscos que a rede impõe ao espírito humano. Ouvindo muito e falando o mínimo, ele deixa todas as questões decisivas a critério de seus executivos de elevada confiança, e demonstra cuidar da língua materna como se o fizesse com a sua própria alma. É um homem de grandes leituras. E se tem que definir alguma opinião, o faz sempre através de um oportuno preceito filosófico. Um jeito bem confuciano de dizer para o meu estilo bem brasileiro: “Não me comprometa”. Como se pretendesse insinuar do alto de uma sabedoria milenar o que o capitalismo deveria ser e não o que ele é. Em suma, é um líder contemporâneo de uma rede do capitalismo que pensa e preserva a sua própria integridade interior, ou melhor, espiritual. Foi o que senti, depois de ter passado a noite em sintonia com o fuso horário, diante de equipamentos cibernéticos, para dar conta do que me compete. Porque no encontro tivemos que definir as taxas de juros a serem praticadas no empréstimo concedido ao governo do Nepal. Muito elevadas  para aquela realidade. Ainda considerando uma relação estabelecida entre governos de uma mesma cultura religiosa. Então o presidente pontificou:
             
“Contemplai uma cerejeira quando coberta de densa camada de neve. Ela apresenta uma consistência pesada, cinzenta, imóvel, implacável. Logo depois vem o Sol... e ele vai a- quecendo e iluminando a terra, a flora, a neve e então a neve vai sendo diluída; transformada em água e a água vai se espalhando pelo solo, irrigando as raízes das cerejeiras, preparando-as para resistirem ao tempo da estiagem. Quando chegar a estação das flores, as cerejeiras hão de estar bem fortalecidas graças à neve que parecia tão pesada, e que sob a graça do Sol converteu-se em água, irrigou raízes, banhou a terra de flores e trouxe muitos frutos”.

              Pensando a metáfora da cerejeira, o capitalismo funcionaria como um sistema de ci- clos. Logo, os juros que engessam uma economia poderiam flexibilizar-se como a neve  diluída, irrigando as raízes produtivas desse sistema; de tal forma que o congelamento e a recessão não seriam possíveis em razão do movimento permanente, contrariando toda a lógica do  acúmulo. É simples: em lugar de inércia, movimento cíclico. E se o velhinho tiver razão? O fato é que coube a mim a decisão das taxas de juros impostas a Katmandu, sob a   justificativa de decisão técnica. Essa decisão tomada por um executivo ocidental do Banco é muito  mais  diplomática para nações orientais de culturas semelhantes. Daí outra vantagem dos códigos da rede. Depois fui dormir...     
              
No fim da tarde despertei, saí um pouco para o espaço externo da cobertura do  edifício em que moro na Avenida Getúlio Vargas e olhei na direção da BR 116 Sul; então vi uma cadeia de serras banhadas pelos últimos raios do sol da tarde, muito por detrás do bairro da Rua Nova, e comecei a pensar de forma mais clara a metáfora do Presidente do Banco.

              Ainda não sou um bom usuário da Língua Japonesa, mas a interação funcional constante com falantes desse idioma me permite compreender muita coisa; às vezes avanço mais que a tradutora e alcanço o cerne do discurso.     
              Agora, passo a entender melhor: para as culturas orientais – tais como se me apresentam – a Língua não somente se destina à comunicação. Ela é muito mais do que isso. A    Língua é uma conquista espiritual. Quando uma criança vai adquirindo a linguagem  também   vai  logo construindo um patrimônio espiritual e através dele exercitando as forças do pensamento. Por isto, é impossível elaborar um pensamento sem uma palavra que lhe dê revestimento. Olho para a Rua Nova, um bairro proletário, com as suas habitações inacabadas e  com    paredes despidas como ossos sem tecidos. Então penso: a Língua é o reboco das idéias. Não é possível ter uma ideia sem uma palavra anterior que lhe atribua revestimento. A cadeia de ser-  ras que me inspira nesta tarde não teria existência perante o meu olhar sem a palavra concretizadora. Aliás, eu próprio que contemplo as serras não teria existência sem a palavra que  me   faz pensar eu mesmo, moi-même. Eu só existo porque penso. Penso, logo existo.    
                 Tudo isso porque um velhinho japonês que cultiva as relações língua/pensamento co- mo se praticasse ikebana me pôs diante de um enigma. Que diferença faria olhar serras e pensar cerejeiras sem o poder espiritual de uma Língua?
              Certa feita, em uma das nossas reuniões em Tóquio, o velhinho narrou para um grupo de dirigentes da empresa – estando presentes muitos ocidentais – que em plena mocidade ele viu a bomba atômica explodir em Yroshima. Ele era de lá. Depois da explosão, a cidade ficou coberta de uma massa branca semelhante a gelo moído. Ele viu as pessoas correrem desesperadas, tentando salvar-se e salvar outras; muitos fugiam para o meio rural. Quando se aproximaram dos campos de arroz, avistaram um poeta que do alto de uma elevação lia em alta voz um poema para Yroshima. O poema exortava a cidade a repensar-se; e não deixar-se ver como flagelo, para isso recitava a sua Língua. Yroshima branca como uma noiva, como uma ce- rejeira coberta de neve. As palavras recitadas recriavam a esperança. Então as pessoas  que  conseguiam ficar de pé correram para junto do poeta e entoaram o Cântico de Yroshima. Foi aí que a cidade – tal como a Fênix – foi sendo elevada daquele estado cinzento,  tornando-se   depois a Pérola do Japão.
             
A maior riqueza de uma nação é o seu patrimônio lingüístico, a sua Língua. É ela que sustenta a cultura, a história, a memória, a identidade, o pensamento. Assim é que todas as grandes civilizações reconheceram a força espiritual do binômio língua/pensamento. E primaram por essa relação até como garantia de sobrevivência. Por ela Ravena resistiu aos  bárbaros e elevou o Pensamento ao mais alto grau na história do Classicismo.                                     
        Ravena é um belo exemplo! Dela se depreende que o desenvolvimento espiritual de um povo está na mesma proporção da evolução língua/pensamento. Minha Língua é minha al-
ma, minha alma é minha vida.
              O véu da noite cai neste instante sobre Feira de Santana. As serras desaparecem,  a  Rua Nova é somente um bailado de luzes e eu sou apenas a minha Língua.



                                                                                                 Serrinha, 05 de julho de 2009.

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