A CRUZ E O FUZIL
A CRUZ E O FUZIL
por José Plínio de Oliveira*
NO FINAL DO EXPEDIENTE daquela sexta-feira
treze, ia eu saindo às pressas do Palácio Duque de Caxias onde servia como
escrevente, para passar no armário alugado em um antigo casarão da Rua Marechal
Floriano que atendia a militares praças, para substituir a farda por trajes
civis e me deslocar para PUC onde estudava como bolsista. Os praças eram
proibidos de adentrar nos quartéis à paisana. Eu tinha muita pressa porque a
Universidade fica na Marquês de São Vicente, na Gávea, e eu me encontrava na
área da Central do Brasil. Ainda transitava pelo calçadão do quartel quando fui
abordado por gigantescos soldados recrutados no meio rural de Santa Catarina
para trabalharem no corpo da guarda.
– Sargenta, a generá qué chama...
Não conseguia entender aqueles
brutamontes. Em geral são soldados broncos, descendentes de alemães que não
conseguem exprimir-se de forma inteligível na Língua Nacional do Brasil. Logo
veio o comandante da guarda, um carioca, e explicou-me que o general determinou
que eu fosse conduzido ao seu gabinete, preso. Então fui levado sob a escolta
que empunhava fuzis engatilhados, e pela minha cabeça passaram a circular as
mais variadas inquietações. O fato de ser militar e estudante universitário
levou-me à presunção de ter sido apontado como membro de algum movimento
subversivo.
O medo abateu-se sobre mim de
forma esmagadora, logo me vi no pau-de-arara,
tomando choques elétricos nos órgãos genitais, apanhando sob porretes de
borracha, tendo as unhas arrancadas com alicate, sendo sufocado com afogamentos
em um tanque de água podre ou com saco plástico. Senti que não era mais eu que
andava, o medo andava em mim para a morte.
A escolta introduziu-me no gabinete
e continuou guardando-me como a um bandido de altíssima periculosidade. Todo o
estado-maior do quartel general do I Exército achava-se na sala. O general
estava transtornado, inconsolável, vermelho como uma barra de aço ardendo em
forno siderúrgico, irritadíssimo, incontrolável, berrava como uma besta fera;
gritava e vociferava como o dragão do Apocalipse. Lançou-me a acusação em face
com o dedo em riste, como se pretendesse perfurar a minha garganta: estava ele
à janela quando observou que eu passei diante do Pavilhão Nacional sem prestar continência. Aí me dei conta de que o
meu “crime” era muitíssimo mais grave do que se tivesse ajudado a Carlos
Lamarca a retirar armas do quartel de Quitaúna para emprega-las na luta armada ou
auxiliado a Carlos Marighela a organizar a resistência ao regime, ou favorecido
a Maurício Grabois a organizar a Guerrilha do Araguaia, ou ainda se tivesse
executado o atentado ao gasômetro no Rio de Janeiro. Pálido, trêmulo e com a
respiração entrecortada senti a acidez espasmódica da morte iminente.
Na vida militar, há duas
modalidades de crimes imperdoáveis e massacrados com as penas mais cruéis:
censurar atos superiores e deixar de prestar continência ao Pavilhão Nacional. Eu havia incorrido em
um do mais graves delitos militares. A escolta já estava a postos, aguardando
ordens do general para me conduzir ao quartel da Polícia do Exército em
Deodoro, onde eu seria torturado barbaramente e fuzilado naquela sexta-feira
treze. Vivíamos sob a égide dos Anos de
Chumbo.
O general lançou a mão contra mim
como se fosse esbofetear-me. A mão deslizou sobre a minha camisa e arrancou um
botão; então o homem viu a cruz que eu trago sempre ao peito. Na vida militar,
eu a ocultava cuidadosamente sob a peça do uniforme. Aí o general olhou
estarrecido para a cruz; de olhos esbugalhados; como se estivesse sendo
fulminado por um raio agudo de energia cósmica, passando a dobrar-se sob
convulsões, a contorcer-se, a gemer e a rugir com as mãos no ventre, caindo e
debatendo-se sobre o assoalho, tal como sob os ônus de um torpor epilético. Chamaram
às pressas o corpo médico, mas quando o general ia sendo colocado na maca fez
um sinal com a mão e deu ordens para que eu fosse libertado imediatamente e que
o incidente fosse esquecido para sempre. Foram suas últimas palavras. Dali ele
foi levado para a enfermaria, entrou em estado de coma; soube depois que veio a
óbito quinze dias depois no Hospital do Exército.
Livre, saí à rua, passei no
armário, troquei de roupa e desci pela Presidente Vargas rumo à Candelária. Em
lá chegando, prostrei-me em oração diante do Sacrário, apresentando-lhe a cruz.
Naquela tarde não fui à Universidade, mas, prostrado aos pés do Santíssimo
passei a entender melhor a Ciência da
Cruz, de Edith Stein.
Na segunda-feira seguinte voltei
ao trabalho normalmente com a cruz menos discreta, embora dentro do uniforme.
Fui percebendo que os indivíduos olhavam-me assustados, mas não me perseguiam
nem me importunavam. No Rancho, os colegas de graduação evitavam tomar as
refeições na mesma mesa que eu. Eu estava sempre sozinho; era tão bom! Os
superiores ordenaram-me a trabalhar em uma sala isolada, sob alegação de que me
proporcionavam melhor concentração no labor. Todavia, as suas atenções, quando ocorriam,
desviavam-se do lugar em que estava a cruz em mim.
Esta cruz de prata que ainda
guardo ao pescoço é uma herança de família que vem dos nossos mais antigos
ancestrais. Estes eram Povos Indígenas da Nação Coiqui, da imensa região de
Monte Santo na Bahia. Narrava-se entre nós que alguns dos nossos antigos
acompanharam Robério Dias, com quem eram aparentados, nas suas incursões
sertanistas em busca das Serras de
Esmeraldas. Mas quando o Frei Apolônio de Todi chegou à região do Monte
Piquaraçá, abandonaram as ilusões roberianas e passaram a se interessar pela
religião. Portanto, esta velha cruz foi um presente do missionário italiano ao
meu antepassado indígena mais remoto que se converteu à fé cristã e foi o
primeiro do nosso povo a ser batizado. Dessa forma, a cruz foi passando de
familiar a familiar, até vir parar nas mãos da minha bisavó materna, grande
devota da Santa Cruz de Monte Santo.
A propósito, conta-se que ela costumava empunhar a cruz e impô-la nas situações
adversas. Por exemplo: quando a Coluna
Prestes, que o nosso povo denominava de Os
Revoltosos, atravessou o território montessantense nele perpetrando muitas
atrocidades, alguns dos seus membros chegaram em nossa casa querendo dinheiro,
joias, ouro e provisão de boca. A velha matriarca saiu à porta empunhando a
cruz diante do focinho do assaltante que já se encontrava transpondo o batente
da porta; o facínora deu um salto gritando e tombou morto no terreiro, os
demais fugiram. Logo em seguida, Lourenço Moreira Lima veio pedir perdão ao meu
povo pelo ocorrido e determinou aos seus comandados que incinerassem o corpo do
assaltante em uma touceira de gravatás que ficava mais abaixo da casa. Doutra
feita, chegaram uns cangaceiros de Lampião, liderados por um sujeito loiro de
olhos verdes. Minha bisavó procedeu da mesma forma com que houvera para com os
assaltantes da Coluna; o cangaceiro
loiro sacou do parabelo, encostou o
cano acima do ouvido e detonou o próprio crânio, os comparsas fugiram
desesperados. Vieram os cães da Fazenda lamber o sangue do morto, e as galinhas
comerem os fragmentos da massa cefálica misturada à terra. Poucos dias depois
Lampião foi morto com parte do grupo.
Minha mãe herdou a cruz porque
grande parte da nossa família migrou para as religiões evangélicas que começaram
a chegar em Monte Santo. Quando vim para o Rio de Janeiro, ela a colocou no meu
pescoço e me abençoou. Depois do episódio com o general, continuei servindo ao
Exército, fui promovido a subtenente, e logo que conclui o curso na PUC pedi
baixa e vim construir nova carreira na vida civil.
Passados alguns anos, retornei a
Monte Santo e fiz questão de subir o Monte Piquaraçá. Lá do cume, diante da
capela da Santa Cruz pus-me a contemplar a terra em que viveram os meus
ancestrais indígenas. Então tomei a cruz e recitei deste jeito e de memória
versos de Castro Alves: Outras vezes/ No
eterno itinerário/ O Sol que vira um dia no Calvário de Cristo/ A Santa Cruz/
Enfiava de vir achar no Monte/ A mesma Cruz abrindo os braços grandes/ Aos
índios, rubros, nus.
Serrinha, 15/07/2018.
*PROFESSOR
DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS –
CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.
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