Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

VÁRZEA DE EMA



VÁRZEA DE EMA  por José Plínio de Oliveira*


               A VÁRZEA DA EMA inundou o meu coração ainda no limiar da primeira infância quando o meu avô materno, Martiniano José Praxedes, se referia a uma viagem que teria durado mais de dois meses, acompanhando o seu genitor e meu bisavô Felisberto José Praxedes com destino à antiga Vila Bela, atual Serra Talhada no Estado de Pernambuco donde provinham as nossas raízes mais ancestrais da parte dos Praxedes que vieram a se fixar no Brejo do Tracupá em Tucano aqui na Bahia, onde nasceu Martiniano José Praxedes, mais conhecido por Dão Praxedes. O fato histórico é que pai e filho se deslocaram para Vila Bela por razões de negócios de inventário de um espólio deixado por um ancestral de Felisberto Praxedes que integrava a plêiade de herdeiros de maioria pernambucana. Dessa forma, em face da narrativa do meu avô; ou melhor; Papai Dão como o chamavam os seus primeiros netos, a viajem foi empreendida provavelmente na primeira década do ano de 1920 do século passado. Martiniano Praxedes nasceu em 1883, portanto, 14 anos antes do final trágico da guerra fraticida que dizimou a antiga cidadela de Canudos e grande parte do povo de Antônio Conselheiro.

A experiência de viajante passando pela Várzea da Ema marcou definitivamente a vida itinerante de Martiniano José Praxedes.Dessa forma, a Várzea da Ema figura como o entre lugar a partir do que ele veio a descortinar outras plagas na raiz da natureza Terra do imenso sertão da Bahia. Pois que ainda moço Praxedes dedicou-se à vida de negociante percorrendo o sertão baiano com a sua montaria e sua tropa de burros. De Tucano a Aramari – onde o velho pai mesmo radicado no Tracupá já dispunha de uma propriedade rural, vindo nela fixar-se como agricultor e criador de gado, também em Aramari Martiniano José Praxedes constituiu família casando-se com Dona Elvira Nery Praxedes, minha avó materna, descendente dos Nery de Cachoeira de São Félix. Todavia, mesmo tendo constituído família sedentária, Praxedes continuou com as suas atividades de comércio itinerante, trabalhando basicamente com gado,cereais, farinha de mandioca e couros curtidos. Naquela trajetória: de Inhambupe a Irará, de Natuba a Alagoinhas, do Cumbe ao Itapicuru, do Triunfo à Malhada da Pedra, de Serrinha a Ouriçangas, de Igreja Nova a Água Fria não ficou feira livre em que Praxedes não houvesse arriado as cargas das suas azêmolas, pondo-se à azáfama dos negócios de comércio. Trabalhador incansável e inquieto, passando pela Vila da Manga, atual Biritinga onde costumava pousar nos seus percursos de tropeiro, vaqueiro e boiadeiro, Praxedes adquiriu uma área de caatinga no Gameleiro, transformando-a em uma fazenda de gado onde também se plantava roças. Deitou âncoras até o fim da sua vida, mas não foram poucos os seus dissabores. O alcoolismo, embora domado com austeridade, talvez tenha sido o maior deles. As suas feridas narcísicas, as suas contrariedades e intempéries, mesmo atenuadas pelos fatos da Memória, não deixavam de ser perceptíveis. Lembro-me ainda de que, aproximando-se o final da sua vida, ele costumava dizer: “Fim de vida é mau bocado”! Provavelmente o pior “bocado” da sua velhice tenha sido e de não poder mais mandar selar a sua montaria preferida e aventurar-se entre Terra e Céu a campear pelos sertões adentro como outrora. 

               Os Fundamentos da Memória de Praxedes; Fundamentos eternamente presentes em si mesmos; eram venerados na Fazenda Gameleiro onde nasci, no âmbito de uma família da Sociedade dos Vaqueiros. Recordo-me agora do aroma gostoso do gado que a brisa da noite tangia do curral para dentro de casa em mo(vi)mentos de inextinguíveis esplendores, – esplendores que as trevas obliviais do Não-Ser não encobrem porque são o próprio ser divino, recolhidos por Memória.Recordo-me também de que Papai Dão ria muito da expressiva felicidade mítica; o que era raríssimo nele; quando relatava os fatos ligados àquela saga; principalmente a acolhida, a hospitalidade e os pousos na Várzea da Ema a que ele reputava um povo sertanejo muito generoso. Eram momentos muito felizes a memória daquela viajem narrada no Gameleiro, por isso guardei no coração a Felicidade na Várzea da Ema experimentada e agradecida pelos Praxedes que peregrinaram por aquele espaço. É tanto que quando a encontrei nos livros, principalmente em Os Sertões, de Euclides da Cunha, quando vivi no Rio de Janeiro, a emoção foi incontida. Sendo que naqueles momentos a Memória do sertão da Bahia emergia com uma força surpreendente.

               Respeitadas as narrativas domésticas sobre a Memória peculiar de um povo, penso-a como um desterrado, um (des)territorializado que,  no meu caso, um indivíduo que foi escorraçado do seu chão pela diáspora sertaneja inevitável indo viver em outras terras distantes, tornando-me de algum modo um ser itinerante que passou por São Paulo, Rio de Janeiro, Baixada Fluminense e etc. Naqueles espaços hostis para muitos migrantes nordestinos, a Memória é a única garantia de Ser numa totalidade remota esplendente, porque a possibilidade de retorno à terra natal torna-se muito obscura. Costumo pensar a Memória como uma sucessão de momentos imóveis em que o indivíduo pode ser inspirado a reconstituir saudades em movimentos dinâmicos. E se a saudade é uma palavra que só existe na Língua Portuguesa, com toda a sua densidade semântica, esta penaliza de maneira mais injusta o desterrado nordestino do que os outrora navegantes lusitanos, todos movimentados por circunstâncias históricas. E se a saudade é uma forma de sentimento nativista (não-chauvinista) o mais constrangedor é que na Diáspora ela é doloridamente fragmentária, estilhaçada... Fora da terra natal, o migrante tem necessidade de juntar fragmentos simbólicos para tentar costurar a saudade como um órgão esquartejado sob o flagelo da dor; mas, entretanto, os retalhos da saudade vão se tornando muito fluidos na proporção em que o ser diaspórico (ou o “Não-Ser” da Diáspora)tem que conviver com outras linguagens, outros discursos, outros mitos,outros ritos, outras culturas, outros hábitos, outras identidades. É em tais circunstâncias de linguagens líquidas de saudades ancilares que o brasileiro é um estrangeiro em sua própria terra e os nordestinos arrastados pela enxurrada da migração são corpos cujos órgãos estão no lugar nenhum de todos os lugares. Corpos cuja única essência é a de suas dinâmicas e intensidades ainda sem forma. (Santaella, 2007). E como dói! Ai de nós se nesses momentos não viesse a Memória em nosso socorro! Porque enquanto que a saudade é uma linguagem líquida fluida, fragmentária, difusa, quebradiça e que impõe ao indivíduo um juntar pedaços escorregadios e voláteis, Memória é integra, intrínseca, compacta, estável, inabalável, indestrutível. Memória é a Musa marmória do Pensamento inevitável. A sua força simultaneamente telúrica e celestial assegura a solidez da alma humana. Há na Memória uma potência de Deus. A propósito, no dizer do consagrado helenista Jaa Torrano,

                             Memória, filha da Terra e do Céu, está na raiz da natureza da Terra       e
                             do Céu, esses Fundamentos eternamente presentes em si mesmos, e  es-
                             tá na raiz de todos os entes e eventos com os quais se configura a Totali-
                             dade Cósmica, que já que esta totalidade se compõe de uma  simultânea
                             sucessão de momentos imóveis, um conjunto de séries a    cruzarem-se
                             de mo(vi)mentos de inextinguíveis esplendores, – esplendores que      as
                             trevas obliviais do Não-Ser não encobrem porque são o próprio ser    di-
                             vino, recolhidos por Memória e esplendentes ao serem nomeados  pelos
                             nomes-numes nascidos da Memória e de Zeus, as Musas.         (Hesíodo,
                             1992, p. 72).

A Várzea da Ema é a Musa do Sertão de Canudos. À primeira vista ela não atrai o visitante, a Estética da Aspereza domina as suas feições de espaço sertanejo de solo árido, empedrado e muito rústico. Entretanto, é aquele chão endurecido e enrugado por seixos geometrizados e simétricos como que fabricados em oficina divina que atraem e fascinam o leitor de paisagens. Quem a visita logo passa a Amá-la.

               Não muito distante do Rio São Francisco e do Rio Vaza-Barris, encastoada na área geográfica do atual município baiano de Chorrochó, inicialmente a Várzea da Ema entrou para a cartografia da catequese, também, por situar-se entre Massacará e Pambu, principais aldeias indígenas assistidas por missionários católicos no início da colonização. Naquela perspectiva de conquista do Sertão, ela oferecia pouso adequado aos viandantes e passou a ser habitada no regaço de uma várzea aprazível que lhe deu o nome. O tempo foi avançando e ela passou a ser referência também para caçadores de índios, bandeirantes, sertanistas e caçadores de esmeraldas. Belchior Dias Moréia, descendente direto da índia Catarina Paraguaçu e do português Diogo Álvares Correia, acariciou a Várzea da Ema como a um corpo sedutor. Mas a importância estratégica da Várzea da Ema veio a ter início na Idade do Couro quando a pecuária se espraiou pelo sertão e ela se tornou a Musa dos Vaqueiros. Evolui de caiçara para povoação.

               Povoada e reconhecida, a Glória da Várzea da Ema emergiu sobremaneira no século XIX com a chegada do peregrino cearense Antônio Vicente Mendes Maciel, Antônio Conselheiro. Inicialmente solitário, depois acompanhado pela sua grei apostólica, pode-se afirmar que a comunidade conselheirista de Canudos, o Império do Belo Monte, não teria existido sem o apoio sustentável da população da Várzea da Ema. A Ema, como é carinhosamente nomeada por seus filhos e suas filhas, foi de importância vital para a resistência impávida do Povo de Antônio Conselheiro. Na Ema, o Conselheiro conquistou os corações dos crentes e a fidelidade de colaboradores, simpatizantes e adeptos. O combatente Pedrão é o mais célebre desses; embora não tenha sido o único combatente varzense de grande valor; lutou bravamente em defesa de Canudos e foi o defensor imbatível e irredutível das Vertentes do Cocorobó no tempo da Guerra, quando a Várzea da Ema tornou-se a cidade satélite do Belo Monte, oferecendo-lhe homens valentes para a Guerra, víveres, orações, estímulos, lágrimas e até propiciando a entrada de armamentos e munições pelas suas veredas serpenteadas pelas Caatingas. Convém lembrar que a estrada de Canudos para a Várzea da Ema foi a última a ser interceptada quando a IV Expedição Militar sitiou o Belo Monte em setembro de 1897. O fim da Guerra de Canudos deixou a Ema envilecida. Mas se ela envileceu nos primeiros tempos do final da Guerra, ressurgiu como a Fênix indestrutível no Ciclo do Couro; logo nas primeiras décadas do século XX.

               Naquele tempo, o território de Uauá tornou-se o principal polo de desenvolvimento da caprinocultura. Então o comércio de couro curtido ganhou uma importância extraordinária naquela parte do Sertão de Canudos, principalmente quando o não menos ilustre cearense Delmiro Gouveia, pouquíssimo beato e muitíssimo industrial estabeleceu-se na localidade da Pedra, no Estado de Alagoas. Foi assim que se estabeleceu a rota Pedra-Uauá para dar conta do ritmo acelerado da economia gouveiana. E o vai-e-vem de tropeiros, carreiros, aguardenteiros e tangerinos transformou a Várzea da Ema numa espécie de Mediterrâneo Seco. E a Ema tornou-se pouso obrigatório de todas as demandas de viajantes naquela trajetória intensiva do Ciclo do Couro, chegando a ter estabelecimento de lenocínio para atender as expectativas das levas rufiônicas que circulavam por aqueles espaços. Conta-se que o próprio Delmiro Gouveia transitou por aquelas terras a negócios em suas incursões pelo sertão baiano. Mais adiante, por volta de 1928, o cangaceiro Lampião chegou à Várzea da Ema destroçado pelas forças policiais de Pernambuco, Paraíba e Ceará. Na Várzea da Ema readquiriu forças vindo a tornar-se Rei do Cangaço.

               O cangaço da Lampião agitou a Várzea da Ema. Naquele contexto e região ele recrutou a grande maioria dos cangaceiros de origem baiana, por exemplo de maior destaque, os irmãos Moita Brava e Carrasco assim como Azulão e outros quadros. Todos naturais da Ema. Na mesma região, Zé Sereno e seus parentes próximos da família dos Ingrácia de Chorrochó. Talvez o fato de que a maioria dos seus homens tenha sido recrutada naquele ambiente, tenha feito de Lampião um grande aliado da comunidade pobre e oprimida; para com as hostes dominantes ele foi duro. O que levou o Estado a articular um sistema repressivo de peso na Várzea da Ema, manipulando as ações trogloditas das Volantes e instalando uma estação telegráfica para transmitir informações sobre as andanças do cangaço pela região. Dessa forma, o pequeno povoado catingueiro da Várzea da Ema ingressou na era da ecologia cibernética e se tornou o primeiro ciberespaço nas plagas remotas do Sertão de Canudos. O que não impediu as ações de Lampião nem previu que alguns anos depois duas inundações iriam obrigar os moradores a transferir o povoado para a parte mais elevada e mais pedregosa do terreno: a atual Rua Nova. A parte antiga ficou sendo a Rua Velha tão laureada de histórias e lembranças que marcaram tantas vidas.
               Ainda naquela era do século XX a Várzea da Ema ganhou notória vitalidade a partir de dois eventos significativos: a passagem da Coluna Prestes e a inserção daquele lugar nos estudos científicos da Área de Influência da Cachoeira de Paulo Afonso. O eminente geógrafo brasileiro Ney Strauch esteve pessoalmente na Várzea da Ema com uma equipe de estudiosos do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro e ficou fascinado pela cultura local. Igualmente Lourenço Moreira Lima, cronista da Coluna, que não menos embevecido pelo contexto cultural registra para a posteridade a passagem das tropas comandadas por Luís Carlos Prestes pela Várzea da Ema.

               As populações do sertão da Bahia sabiam da Coluna Prestes como sendo “Os Revoltosos”, mas não tinham noções das questões ideológicas, políticas e revolucionárias que movimentavam a Coluna pelo território brasileiro. Circulavam relatos de várias atrocidades que os ditos “Revoltosos perpetravam pelo sertão; notadamente na região compreendida entre Monte Santo e Uauá. Cheguei a ouvir relatos de testemunhas da época que foram vítimas daquelas atrocidades, sendo que uma senhora bem idosa ainda tinha uma orelha partida por um dos “Revoltosos” que lhe arrancou um brinco de ouro à força; isso sem falar em assaltos, roubos, torturas, violências sexuais e tantas outras barbáries. Lembro-me do relato que me fez um trabalhador rural idoso, morador do povoado de São Paulinho, no município de Uauá, do dia em que foi aprisionado por integrantes da Coluna Prestes na roça em que trabalhava e levado para sua casa onde foi ameaçado de morte, caso no revelasse onde a família guardava as joias de ouro. As narrativas sobre a passagem da Coluna Prestes por aquele sertão remoto não diferem muito das que relatam os delitos praticados pelo cangaço de Lampião. Entretanto, a passagem da Coluna pela Várzea da Ema se deu de forma pacífica que Moreira Lima atribui à liderança de uma viúva “que aconselhara os moradores de Várzea da Ema a nos receber pacificamente, chama-se Maria Pêto e é conhecida por Senhoria, residindo na fazenda Perdidos”.

               Naquele ambiente de Paz, um dos muito raros por onde a Coluna Prestes passou aqui no Sertão da Bahia, um sargento dirigiu uma peça de Teatro que foi encenada por gente de Prestes em um final de tarde singular na Várzea da Ema.


Serrinha, 01/01/2016



*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB, EM EUCLIDES DA CUNHA.



REFERÊNCIAS


AGUIAR, Durval Vieira . Descrições práticas da Província da Bahia . 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979.
ARAUJO, Antônio Amaury Correia de . Lampião: as mulheres e o cangaço . São Paulo: Traço, 1985.
CUNHA, Euclides da . Os sertões . São Paulo: Nova Cultural, 2003.
HESÍODO . Teogonia: a origem dos deuses . 2.ed. São Paulo: Iluminuras, 1992.
LIMA, Lourenço Moreira . A coluna prestes: marchas e combates . 3. ed. São Paulo: Alfa-Omega, 1979.
NAXARA, Márcia Regina Capelari . Estrangeiro em sua própria terra: representações do brasileiro: 1870/1920 . São Paulo: Annablume, 1998.            SANTAELLA, Lucia . Linguagens líquidas na era da mobilidade . São Paulo: Paulus, 2007.


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