BOCAGE, O OVO E O SAL
BOCAGE, O OVO E
O SAL por José Plínio de Oliveira*
Compadre Jacciel Nascimento proseava
animadamente com o amigo do peito ao pé do balcão. Com pouco, ouviu-se ao
longe:
A chuva evém,
sabiá
A beira-mar,
sabiá.
Vai vê teu
ninho, sabiá
Pra chuva num
molhá, sabiá.
Balanceia,
balanceia, sabiá
Quero vê
balanceá, sabiá...
Compadre José
Vicente inclinou o chapéu de couro, apurou o ouvido e observou:
– É João de Inhozinho que vem tomá u’a.
Vaqueiro até a escuma do bofe, Compadre José Vicente sempre soube honrar o
nome da Sociedade Caatingueira do Sertão de Canudos como a uma instância
sagrada. Casado com a senhora Maria Pia da Anunciação do Senhor, professora da
única escola rural daquela parte do sertão da Bahia; esposo devotado e pai
exemplar; primava por uma conduta irrepreensível e também cuidava com tal
esmero da sua pequena fazenda e do seu gado que causava muita inveja aos
grandes fazendeiros da região. Com o seu jeito caatingueiro, ele chamava cada rês
por um nome, curando-lhes as bicheiras,
exterminando carrapatos, verificando de forma meticulosa algum sintoma de carbúnculo, de caroara ou de aftosa.
Assim, ele tangia o gado zelado do pasto para as vertentes e brejos do Raso longínquo onde a comida era farta e
a água abundante. Às vezes, passava o dia inteiro e à tardinha retornava para
casa.
Vai boiadeiro
que a noite já vem,
Pega o teu gado
E vai pra junto
do teu bem.
Saindo do Tabuleiro e avançando pelos corredores intermináveis era saudado
pelas mulheres que recuavam para os esconsos das cancelas e porteiras para dar
passagem ao gado, com filhos pequenos nos quartos
e balaios de feijão verde ou feixes de
lenha nas cabeças.
– Como vai, Compadre
José Vicente?
– Eu vou navegando... Erguendo o
chapéu de couro para manifestar cortesia e respeito.
E lá ia ele, montado no cavalo
Robalo, tendo ao lado o cachorro Tubarão. E navegava pela extensão das Metáforas Náuticas, agora pensadas por
Walnice Nogueira Galvão, rumando para a sua Ítaca qual um Ulisses saudoso de
uma Penélope sem pretendentes, mas ornamentada de predicados espirituais,
indispensáveis à mulher do vaqueiro no contexto daquela terra tão cheia de
mitos e mistérios, a envolver o homem do campo numa teia de desafios constantes
e conturbados. A vida do vaqueiro no campo era uma guerra a ser vencida a cada
dia.
Quando às vezes levantava-se nas
madrugadas ainda escuras como breu, para levar o gado para mais longe, vinha ao
alpendre a esposa dedicada em trajes de dormir, elevando nas mãos o candeeiro
para alumiar o marido já encourado, arreando o cavalo de campo e preparando os aviamentos para a longa e duradoura
jornada. Então, ela se punha em voz baixa a fazer-lhe as recomendações que ele
guardava no coração tais como as prédicas dos Capuchinhos da Piedade em suas
Missões pelo sertão.
De fato, a Mitologia Caatingueira
era carregada de mistérios: estruturas rochosas que se transformavam em cavalos
que deitavam aos lestrigões víboras das barrigas bojudas para atacar os
vaqueiros desprevenidos; o espírito colérico do Padre Encantado da Toca que repelia com violência todo aquele que
se aproximava do seu território; a cobra de uma légua e meia que morava dentro
da Serra de Massacará, e tantos outros entes no caminho.
Se o poeta Constantino Kavafis
tivesse estado em Canudos, teria vaticinado para o vaqueiro José Vicente:
Se partires um
dia rumo à Ítaca
Faz votos de que
o caminho seja longo
Repleto de
aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões,
nem ciclopes,
Nem o colérico
Posidon te intimidem!
Eles no teu
caminho jamais encontrarás
Se altivo for
teu pensamento
Se sutil emoção
o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões,
nem ciclopes
Nem o bravio
Posidon hás de ver
Se tu mesmo não
os levares dentro da alma
Se tua alma não
os puser dento de ti.
Cabra bom!
Cativo das obrigações
de vaqueiro e de pai de família, quase não lhe sobrava tempo para nada.
Entretanto, quando era possível, laçava sempre uma nesguinha de tempo para “dar
um salto” na venda.
Nas plagas das caatingas do
sertão da Bahia, a venda ou a bodega tem uma importância preponderante na vida
da sociedade camponesa. É na venda que as pessoas adquirem alguma “precisão”
que faltou das compras na feira, bebem alguma coisa e, principalmente, tomam
saberes dos últimos relatos da sua região e do entorno dela. Essa narrativa
bodegueira é riquíssima de invenções que o imaginário do homem do campo lavra
para encher a existência de subjetividades e positividades. Ela se espalha pelo
sertão com a ramagem do feijão de corda
que se planta nas trovoadas, formando uma teia interminável de signos e
símbolos resolutos da oralidade que vão angariando uma solidez verossímil
inquestionável. A verdade absoluta é o que se sabe na venda de A ou de B. Não
se discute o grau de veracidade do discurso que é proclamado na venda. Seja a
aparição de um Lobisomem testemunhada por narradores idôneos, um boi misterioso
que está assustando o povo pelas estradas, a fuga da filha de um fazendeiro com
um vaqueiro de confiança, o assassinato de um valente na feira de sábado por um
cabra mofino por que ninguém dava nada, uma vaca preta que pariu um bezerro com
cara de gente, uma cobra sucuri que apareceu no Vaza-Barris e engoliu um
marruá, deixando somente os chifres de fora para caírem quando podres. Tudo na
venda é de uma dimensão mítica e de uma poeticidade de surpreender a Homero.
Mas, naquela noite especialmente chegou um cabra amontado num jumento russo de arreios novos, trazendo um caçuá de novidades:
– Potâmio chegou da Bahia onde
foi avistar-se com o barão, levando alvíssaras do povo de Antônio Conselheiro;
disse-me ele que a carestia por lá vai alta; tudo pela hora da morte. Trouxe um
bando de jornais com muitas figuras. O coronel José Américo anda muito
insatisfeito, parece que vai bandear para o Seabrismo.
Logo em seguida:
– Bocage tá descambando sertão
abaixo e já anda aqui perto.
– Bocage???
– Naonde? Inquiriu Jacciel Nascimento,
mandando botar mais uma.
– Tá na medida?
– Passe a régua...
– Apois! Ele teve na feira do
Mucambo trernantonte.
– Bocage???
O amor é um
nervo duro
Arrodeado de
cabelo,
Embaixo tem dois
novelo
E a raiz nasce
do cú.
Jacciel ia tomando o copo de
aguardente de uma só vez quando João de Inhozinho aproximou-se:
– Vamicê deixa um bucadin pra
mim?
– Desafasta!
Logo Jacciel arrependeu-se por
ter sido ríspido com o pobre do alcoólatra, pediu desculpas e chamou o
vendeiro:
– Bote uma cachaça pra João!
Logo depois tomou o copo e foi
caminhando para a porta, mas aí voltou-se para o pobre:
– João, vá beber naquele canto
pra ninguém bulir com você...
– Inhô sim.
– Bocage???
– Bocage???
Nunca foi possível saber como
duas personalidades históricas do Reino de Portugal conquistaram definitivo status
mítico no imaginário popular do sertão baiano: o rei Dom Sebastião e o vate maior
do Arcadismo lusitano Manuel Maria Barbosa du Bocage. O primeiro morto na
batalha de Alcácer Quibir, no século XVI, encontra-se são e salvo no Sertão de
Canudos. O último que veio a óbito em Lisboa no início do século XIX reviveu
nas bordas das caatingas, nas estradas, nas veredas, nos caminhos, nas feiras e
mercados dos povoados e vilarejos do nosso sertão, e continua a fazer suas
peripécias.
Compadre Jacciel dirigiu-se a um banco em que
se encontrava o vaqueiro Zé Vicente:
– Compadre, é o que eu te
digo, se aquela praga está no Mucambo, dentro de no mais tardar três dias
estará aqui para desencaminhar o nosso povo.
– Oxi!
– Ladrão, trapaceiro, cabra safado...
Um homem mais velho protestou:
– Não. Não é bem assim. Ele só engana quem
quer enganar a ele. Traz alegria para o povo, enche o mundo de pabulage e, além
disso, ele tem a memória mais forte do sertão.
As últimas palavras entraram na
alma de José Vicente, “ele tem a memória mais forte do sertão”.
Dali em diante começaram na
venda os prós e os contras. José Vicente despediu-se e foi para casa com as
palavras esquipando no trote do cavalo. “Ele tem a memória mais forte do
sertão”.
– Menina, diz o povo que dentro
de três dias ele tá passando aqui...
– Tescunjuro junto com todos os
Anjos e todos os Santos. Fazendo o Sinal da Cruz.
– Ave Maria! Menina... Pois, Seu
Liodoro Cazuza disse lá na venda que Bocage tem a memória mais forte do sertão.
– A memória mais forte mais
forte do sertão?
Dona Maria Pia foi recolhendo a
louça do jantar com a ajuda das meninas, meditando sobre aquelas palavras: “tem
a memória mais forte do sertão”. Depois, abriu uma fresta da janela e viu a
chuva veloz varrendo o verde da copa do juazeiro onde as galinhas se
agasalhavam. Teve pena, se pudesse trazia tudo para dentro de casa. Pensando
assim, recolheu-se aos aposentos compungindo-se com a sinfonia extasiante dos
filetes das goteiras, semelhantes a tubos de órgãos de catedrais. A música sublime
das goteiras trouxe o sono bom e com ele o aconchego da alma sertaneja.
Corridos três dias e meio, ouviu-se
uma algaravia sem conta que se espalhava pelo corredor. Foguetórios, gritos,
risos, palmas, assobios e dichotes iam chegando mais perto. Quando Dona Maria
Pia deu fé, era Bocage. Ia passar pela estrada na sua porta. Do meio do povo,
alguém gritou:
– Bocage, ponde tu vai?
– Maria, que latomia é uma?
– Não é Bocage que tá passando?
– Naonde?
– Aqui na estrada, quase na
frente da cancela.
Dona Maria espiava pela fresta
da janela e Compadre José Vicente por uma nesga da porta. Bocage foi passando...
Quando já ia adiante, Dona Maria gritou:
– Bocage, o que é o melhor da
galinha?
– O ovo.
E seguiu viagem sem olhar para
trás.
Sete anos depois de haver
percorrido o Grande Sertão de Minas Gerais e de nele ter feito muitos
divertimentos para a gente da terra, Bocage retornava ao Sertão de Canudos a
passos cadenciados no mesmo ritmo de sua arte; parando de fazenda em fazenda,
de vila em vila, de povoado em povoado. A mariana no ombro, a viola no saco, a
rede nas costas, a cachorrinha do lado e o cajado na mão. Mas os rumores sobre
ele voavam terra adentro alvissarando todo o povo.
– Apois! Semana retrasada ele
teve na feira de Camisão.
– Oxente! Então de segunda em
diante ele tá passando aqui. Se vem seguindo no mesmo rumo...
As narrativas passaram a circular com maior
intensidade e a expectativa do povo foi aumentando. As pessoas trabalhavam na
roça com o ouvido atento aos rumores da estrada. Até que um dia foi dito que o
vate popular encontrava-se na Festa de Todos os Santos em Monte Santo. Compadre
José Vicente comentou com a esposa:
– Daqui pra sábado tá passando
aqui.
Dona Maria Pia passou a botar
sentido. Não deu outra, no sábado pela manhã o foguetório espocou. Ela deixou
um aribé com espigas de milho verde em cima da mesa e foi
para o canto da janela. Bocage ia passando com o povo acompanhando. Então, ela
gritou:
– Com quê?
Ele respondeu sem olhar para
trás:
– Com sal.
Serrinha, 06 de
julho de 2014.
*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO
DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DA BAHIA – UNEB EM EUCLIDES DA CUNHA.
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