Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

BOCAGE, O OVO E O SAL

BOCAGE, O OVO E O SAL por José Plínio de Oliveira*


              
Compadre José Vicente tocou o gado para o curral, apartou os bezerros para tirar o leite na madrugada seguinte, desceu para o açude, tomou banho e cavalgou para a venda de Constantino Caboclo. Em lá chegando, amarrou o animal no mourão de sucupira, dirigiu-se ao balcão, pediu uma cachaça e saiu para cuspir no terreiro. Depois olhou demoradamente para o corredor porque caindo a tarde o Compadre Jacciel Nascimento também costumava descer para “tomar umas e outras”. Nessas ocasiões, costumavam tecer longas conversas sobre o cotidiano do Grande Sertão de Canudos. Compadre Jacciel Nascimento lavrador, criador de cabras, carreiro de carro-de-bois, arador de terras, sambador renomado, poeta de cordel, rezador e catimbozeiro tinha o hábito noturno de permanecer por muito tempo na venda, tomando o seu aperitivo e proseando com a canalha até mais tarde. Compadre José Vicente não. Ficava na venda o suficiente para saber das novidades, logo depois retornava ao recôndito sagrado e acolhedor do seu abençoado Lar Doce Lar. Mas, naquele dia de inverno rigoroso, Compadre Jacciel era aguardado com ansiedade porque a chuva não cessava e o vaqueiro Zé Vicente pretendia recolher-se ao lar no horário de costume. A propósito, para tranquilizar o vaqueiro, Constantino Caboclo costumava dizer que quando Jacciel Nascimento aproximava-se da Baixa do Brejo já as garrafas de aguardente começavam a trepidar nas prateleiras da venda; não somente por delas Jacciel apreciar os conteúdos, mas pelo fato do samba fervilhar em suas veias e envolver todos os dons e linguagens que lhe estivessem ao redor. Dito e feito, as garrafas passaram a estremecer enquanto os homens iam chegando – capitaneados por Jacciel – ensopados, com as pernas das calças e as bainhas dos facões Jacaré salpicadas da lama vermelha da terra fértil daquela parte promissora do Sertão de Canudos.
              
Bodes, cabras, ovelhas, porcos e jumentos já se haviam aboletado pelos cantos do extenso varandado enquanto a chuva caía abundante. Nessas ocasiões, os cães agasalhavam-se no borralho perto do forno e os gatos no recanto do fogão. Os homens adentravam ao imenso salão ladeado de bancos compridos de baraúna onde tomavam assento. Lá no fundo o balcão imenso, também de tábua compacta de baraúna; parte dele ocupado por gamelas de toicinho, carne-do-sertão, fumo-de-corda, peixe-de-fardo, ratoeiras e artigos do campo. Tudo misturado. No chão, os caixões de querosene e as latas de Formicida Tatu. Por trás do balcão, no centro das prateleiras, a mesa onde ficavam a balança, os pesos, os sacos já abertos de açúcar, sal, farinha, a barrica de bacalhau, os caixotes de rapadura e as resmas de papel pardo com que se embalavam mercadorias, retorcendo as bordas do papel com uma habilidade artística admirável.  
              
A venda era uma festa! E a cachaça ia correndo a rodo para matar o frio e animar os cabras para as labutas do dia seguinte, que se iniciavam desde as primeiras horas da madrugada. Portanto, naquele contexto sertanejo, a noite era uma criança ingênua embevecida com o cheiro bom da terra molhada, tal o aroma do seio generoso a oferecer a seiva da vida.
               Compadre Jacciel Nascimento proseava animadamente com o amigo do peito ao pé do balcão. Com pouco, ouviu-se ao longe:

A chuva evém, sabiá
A beira-mar, sabiá.
Vai vê teu ninho, sabiá
Pra chuva num molhá, sabiá.
Balanceia, balanceia, sabiá
Quero vê balanceá, sabiá...

               Compadre José Vicente inclinou o chapéu de couro, apurou o ouvido e observou:
                – É João de Inhozinho que vem tomá u’a.
               Vaqueiro até a escuma do bofe, Compadre José Vicente sempre soube honrar o nome da Sociedade Caatingueira do Sertão de Canudos como a uma instância sagrada. Casado com a senhora Maria Pia da Anunciação do Senhor, professora da única escola rural daquela parte do sertão da Bahia; esposo devotado e pai exemplar; primava por uma conduta irrepreensível e também cuidava com tal esmero da sua pequena fazenda e do seu gado que causava muita inveja aos grandes fazendeiros da região. Com o seu jeito caatingueiro, ele chamava cada rês por um nome, curando-lhes as bicheiras, exterminando carrapatos, verificando de forma meticulosa algum sintoma de carbúnculo, de caroara ou de aftosa. Assim, ele tangia o gado zelado do pasto para as vertentes e brejos do Raso longínquo onde a comida era farta e a água abundante. Às vezes, passava o dia inteiro e à tardinha retornava para casa.

Vai boiadeiro que a noite já vem,
Pega o teu gado
E vai pra junto do teu bem.
                                 
               Saindo do Tabuleiro e avançando pelos corredores intermináveis era saudado pelas mulheres que recuavam para os esconsos das cancelas e porteiras para dar passagem ao gado, com filhos pequenos nos quartos e balaios de feijão verde ou feixes de lenha nas cabeças.
               – Como vai, Compadre José Vicente?
               – Eu vou navegando... Erguendo o chapéu de couro para manifestar cortesia e respeito.
               E lá ia ele, montado no cavalo Robalo, tendo ao lado o cachorro Tubarão. E navegava pela extensão das Metáforas Náuticas, agora pensadas por Walnice Nogueira Galvão, rumando para a sua Ítaca qual um Ulisses saudoso de uma Penélope sem pretendentes, mas ornamentada de predicados espirituais, indispensáveis à mulher do vaqueiro no contexto daquela terra tão cheia de mitos e mistérios, a envolver o homem do campo numa teia de desafios constantes e conturbados. A vida do vaqueiro no campo era uma guerra a ser vencida a cada dia.
               Quando às vezes levantava-se nas madrugadas ainda escuras como breu, para levar o gado para mais longe, vinha ao alpendre a esposa dedicada em trajes de dormir, elevando nas mãos o candeeiro para alumiar o marido já encourado, arreando o cavalo de campo e preparando os aviamentos para a longa e duradoura jornada. Então, ela se punha em voz baixa a fazer-lhe as recomendações que ele guardava no coração tais como as prédicas dos Capuchinhos da Piedade em suas Missões pelo sertão.
              
– Você vigie que eu deitei na algibeira do gibão uma cabeça de alho roxo e um taco de fumo para a Caipora. Se acontecer de algum esquecimento e você se ver perdido no meio do mato; não se avexe; apeie do cavalo, tire a roupa, vire tudo pelo avesso e vista de novo. Logo você acha o caminho. Se ouvir o cantar da Cabocla da Cafurna, não tenha medo, reze logo um Credo e feche os ouvidos e os olhos para ela. Não deixe o cavalo pisar por cima de mandinga de caboclo, não tire o Rosário do pescoço nem deixe molhar o Santo Lenho. Guarde o teu pensamento sempre elevado a Nosso Senhor e a Nossa Senhora do Perpétuo Socorro. Não deixe entrar na tua alma nenhum pensamento ruim. Vai com Deus e de lá parte com ânimo no coração para tua casa!  Logo assim que bem saía o esposo para o campo, já Dona Maria Pia se cuidava e ia para o Quarto dos Santos, persignando-se diante do Oratório em preces por mais da metade do dia, intercalando com as obrigações do cotidiano. Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo!  
               De fato, a Mitologia Caatingueira era carregada de mistérios: estruturas rochosas que se transformavam em cavalos que deitavam aos lestrigões víboras das barrigas bojudas para atacar os vaqueiros desprevenidos; o espírito colérico do Padre Encantado da Toca que repelia com violência todo aquele que se aproximava do seu território; a cobra de uma légua e meia que morava dentro da Serra de Massacará, e tantos outros entes no caminho.      
               Se o poeta Constantino Kavafis tivesse estado em Canudos, teria vaticinado para o vaqueiro José Vicente:  

Se partires um dia rumo à Ítaca
Faz votos de que o caminho seja longo
Repleto de aventuras, repleto de saber.
Nem lestrigões, nem ciclopes,
Nem o colérico Posidon te intimidem!
Eles no teu caminho jamais encontrarás
Se altivo for teu pensamento
Se sutil emoção o teu corpo e o teu espírito tocar
Nem lestrigões, nem ciclopes
Nem o bravio Posidon hás de ver
Se tu mesmo não os levares dentro da alma
Se tua alma não os puser dento de ti.
                            
  
               Cabra bom!
               Cativo das obrigações de vaqueiro e de pai de família, quase não lhe sobrava tempo para nada. Entretanto, quando era possível, laçava sempre uma nesguinha de tempo para “dar um salto” na venda.    
               Nas plagas das caatingas do sertão da Bahia, a venda ou a bodega tem uma importância preponderante na vida da sociedade camponesa. É na venda que as pessoas adquirem alguma “precisão” que faltou das compras na feira, bebem alguma coisa e, principalmente, tomam saberes dos últimos relatos da sua região e do entorno dela. Essa narrativa bodegueira é riquíssima de invenções que o imaginário do homem do campo lavra para encher a existência de subjetividades e positividades. Ela se espalha pelo sertão com a ramagem do feijão de corda que se planta nas trovoadas, formando uma teia interminável de signos e símbolos resolutos da oralidade que vão angariando uma solidez verossímil inquestionável. A verdade absoluta é o que se sabe na venda de A ou de B. Não se discute o grau de veracidade do discurso que é proclamado na venda. Seja a aparição de um Lobisomem testemunhada por narradores idôneos, um boi misterioso que está assustando o povo pelas estradas, a fuga da filha de um fazendeiro com um vaqueiro de confiança, o assassinato de um valente na feira de sábado por um cabra mofino por que ninguém dava nada, uma vaca preta que pariu um bezerro com cara de gente, uma cobra sucuri que apareceu no Vaza-Barris e engoliu um marruá, deixando somente os chifres de fora para caírem quando podres. Tudo na venda é de uma dimensão mítica e de uma poeticidade de surpreender a Homero. Mas, naquela noite especialmente chegou um cabra amontado num jumento russo de arreios novos, trazendo um caçuá de novidades:
               – Potâmio chegou da Bahia onde foi avistar-se com o barão, levando alvíssaras do povo de Antônio Conselheiro; disse-me ele que a carestia por lá vai alta; tudo pela hora da morte. Trouxe um bando de jornais com muitas figuras. O coronel José Américo anda muito insatisfeito, parece que vai bandear para o Seabrismo.
               Logo em seguida:
               – Bocage tá descambando sertão abaixo e já anda aqui perto.
               – Bocage???
               – Naonde? Inquiriu Jacciel Nascimento, mandando botar mais uma.
               – Tá na medida?
               – Passe a régua...
               – Apois! Ele teve na feira do Mucambo trernantonte.
               – Bocage???
              
A chuva torrenciava lá fora e as memórias de Bocage chuviscavam com intensidade dentro da venda. “Bocage, o que é o amor?”
       
O amor é um nervo duro
Arrodeado de cabelo,
Embaixo tem dois novelo
E a raiz nasce do cú.

                Jacciel ia tomando o copo de aguardente de uma só vez quando João de Inhozinho aproximou-se:
                – Vamicê deixa um bucadin pra mim?
                – Desafasta!
                Logo Jacciel arrependeu-se por ter sido ríspido com o pobre do alcoólatra, pediu desculpas e chamou o vendeiro:
                – Bote uma cachaça pra João!
               Logo depois tomou o copo e foi caminhando para a porta, mas aí voltou-se para o pobre:
               – João, vá beber naquele canto pra ninguém bulir com você...
               – Inhô sim.
               – Bocage???
              
Compadre Jaciel guardava uma grande mágoa de Bocage, porque no ano de 1843 ele trapaceou com uns tropeiros seus ancestrais, vendendo-lhes uma falsa panela “encantada” que cozinhava sem fogo. O fato se deu em um pouso debaixo de um pé de quixabeira bem na entrada da rua do Cumbe.
               – Bocage???
               Nunca foi possível saber como duas personalidades históricas do Reino de Portugal conquistaram definitivo status mítico no imaginário popular do sertão baiano: o rei Dom Sebastião e o vate maior do Arcadismo lusitano Manuel Maria Barbosa du Bocage. O primeiro morto na batalha de Alcácer Quibir, no século XVI, encontra-se são e salvo no Sertão de Canudos. O último que veio a óbito em Lisboa no início do século XIX reviveu nas bordas das caatingas, nas estradas, nas veredas, nos caminhos, nas feiras e mercados dos povoados e vilarejos do nosso sertão, e continua a fazer suas peripécias.
               Compadre Jacciel dirigiu-se a um banco em que se encontrava o vaqueiro Zé Vicente:
               – Compadre, é o que eu te digo, se aquela praga está no Mucambo, dentro de no mais tardar três dias estará aqui para desencaminhar o nosso povo.
               – Oxi!
               – Ladrão, trapaceiro, cabra safado...
              Um homem mais velho protestou:
               – Não. Não é bem assim. Ele só engana quem quer enganar a ele. Traz alegria para o povo, enche o mundo de pabulage e, além disso, ele tem a memória mais forte do sertão.
               As últimas palavras entraram na alma de José Vicente, “ele tem a memória mais forte do sertão”.
               Dali em diante começaram na venda os prós e os contras. José Vicente despediu-se e foi para casa com as palavras esquipando no trote do cavalo. “Ele tem a memória mais forte do sertão”.
               – Menina, diz o povo que dentro de três dias ele tá passando aqui...
               – Tescunjuro junto com todos os Anjos e todos os Santos. Fazendo o Sinal da Cruz.
               – Ave Maria! Menina... Pois, Seu Liodoro Cazuza disse lá na venda que Bocage tem a memória mais forte do sertão.
               – A memória mais forte mais forte do sertão?
               Dona Maria Pia foi recolhendo a louça do jantar com a ajuda das meninas, meditando sobre aquelas palavras: “tem a memória mais forte do sertão”. Depois, abriu uma fresta da janela e viu a chuva veloz varrendo o verde da copa do juazeiro onde as galinhas se agasalhavam. Teve pena, se pudesse trazia tudo para dentro de casa. Pensando assim, recolheu-se aos aposentos compungindo-se com a sinfonia extasiante dos filetes das goteiras, semelhantes a tubos de órgãos de catedrais. A música sublime das goteiras trouxe o sono bom e com ele o aconchego da alma sertaneja.
               Corridos três dias e meio, ouviu-se uma algaravia sem conta que se espalhava pelo corredor. Foguetórios, gritos, risos, palmas, assobios e dichotes iam chegando mais perto. Quando Dona Maria Pia deu fé, era Bocage. Ia passar pela estrada na sua porta. Do meio do povo, alguém gritou:
               – Bocage, ponde tu vai?
              
– Eu vou de rota batida pra dendo do sertão de Minas. Vou prosear cas menina, tirá sossego de branco. Beber leite com chafé na fazenda do Reconco. Vou dormi com mulé dama na Zona de Montes Claros; dispois faço penitença na Capela do Caraça; como toicin com cachaça e desço pra André Quicé. No Mosteiro da Abadia quero deixá meus pecado, deixá toda dô de lado e cantá pra quem quisé...
               – Maria, que latomia é uma?
               – Não é Bocage que tá passando?
               – Naonde?
               – Aqui na estrada, quase na frente da cancela.
               Dona Maria espiava pela fresta da janela e Compadre José Vicente por uma nesga da porta. Bocage foi passando... Quando já ia adiante, Dona Maria gritou:
               – Bocage, o que é o melhor da galinha?
               – O ovo.
               E seguiu viagem sem olhar para trás.
               Sete anos depois de haver percorrido o Grande Sertão de Minas Gerais e de nele ter feito muitos divertimentos para a gente da terra, Bocage retornava ao Sertão de Canudos a passos cadenciados no mesmo ritmo de sua arte; parando de fazenda em fazenda, de vila em vila, de povoado em povoado. A mariana no ombro, a viola no saco, a rede nas costas, a cachorrinha do lado e o cajado na mão. Mas os rumores sobre ele voavam terra adentro alvissarando todo o povo.
               – Apois! Semana retrasada ele teve na feira de Camisão.
               – Oxente! Então de segunda em diante ele tá passando aqui. Se vem seguindo no mesmo rumo...
               As narrativas passaram a circular com maior intensidade e a expectativa do povo foi aumentando. As pessoas trabalhavam na roça com o ouvido atento aos rumores da estrada. Até que um dia foi dito que o vate popular encontrava-se na Festa de Todos os Santos em Monte Santo. Compadre José Vicente comentou com a esposa:
               – Daqui pra sábado tá passando aqui.
               Dona Maria Pia passou a botar sentido. Não deu outra, no sábado pela manhã o foguetório espocou. Ela deixou um aribé com espigas de milho verde em cima da mesa e foi para o canto da janela. Bocage ia passando com o povo acompanhando. Então, ela gritou:
               – Com quê?
               Ele respondeu sem olhar para trás:
               – Com sal.       

      
                   
                                           Serrinha, 06 de julho de 2014.



*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB EM EUCLIDES DA CUNHA.

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