Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

PAJEÚ

PAJEÚ
                                                                por José Plínio de Oliveira*





                             Ele deve ter passado a integrar o séquito apostólico de Antonio Conselheiro alguns anos antes da fundação do Império do Belo Monte ainda nos tempos da Paz em Canudos. Portanto, antes de 1893. Logo, as narrativas populares sobre o conflito bélico descrevem o combatente Pajeú como um homem negro, moço, natural de Pajeú das Flores no Riacho do Navio, no sertão de Pernambuco e teria sido soldado desertor do Exército Brasileiro ou ex soldado de linha, conforme se pronunciava no sertão. Tendo participado do motim de Antonio Diretor em Baixa Verde e tendo sido acusado de vários crimes, foi barbaramente perseguido pela polícia do seu Estado natal, mas descambou no rumo da Bahia, transpôs o Rio São Francisco e passou a perambular por estas terras onde já atuava o grupo peregrino de Antônio Vicente Mendes Maciel – o Bom Jesus Conselheiro – homem de muita paz e acolhedor de pobres, flagelados, enfermos, marginalizados, trabalhadores do campo explorados por políticos, por fazendeiros e por grandes latifundiários. Assim também perseguidos pela polícia e pela justiça, egressos do sistema penal e escravos foragidos dos grilhões e das barbáries do cativeiro. Portanto, Pajeú abandonou a marginalidade e foi resgatado por Antonio Conselheiro e incluído na sua grei apostólica, nela integrando-se inicialmente como apóstolo. Ainda assim, raras são as informações históricas sobre a sua trajetória humana anterior a Canudos,

Dele ficou somente a alcunha. Jamais encontramos referência ao seu nome próprio ou de família. Sempre em evidência no noticiário da guerra, Pajeú era apontado como um dos apóstolos do Conselheiro. Critério de classificação da gente do litoral, certamente. Sem dúvida, porém, um eficiente chefe das guerrilhas. Talvez o mais astucioso dos guerrilheiros. (CALASANS, 1986,  p. 39).     
                                               
          O apóstolo, no contexto religioso do conselheirismo, denotava uma identidade construída à luz de uma conversão espiritual, de uma transformação radical que abolia o indivíduo de toda e qualquer conotação de “referência ao seu nome próprio ou de família”, para integrá-lo a um grupo de confissão religiosa um tanto mais próximo da sua origem cultural, da sua história, da sua busca por uma esperança de eternidade. Naquela perspectiva de fé conselheirista, havia portanto, a edificação de um homem novo guiado tão somente pela devoção espiritual, pela oração e pelos serviços caritativos prestados pelo Bom Jesus Conselheiro aos povos do sertão. Somente depois dos ataques e intrigas infligidos pelo aparelho repressivo do Estado ao povo de Canudos é que o apóstolo conselheirista é forçado a transformar-se em “eficiente chefe de guerrilhas”, por força das circunstâncias, e quando a necessidade da luta armada torna-se imperativa para assegurar a estabilidade da Paz no Belo Monte, o homem convertido lança-se à luta armada também como atributo da fé devotada ao Conselheiro e à sua grei apostólica.  
  
          A devoção consciente no seio do Povo de Antonio Conselheiro teve um caráter onímodo que propiciou a inclusão humana na extensão mais plena do espírito da fraternidade. Dessa forma, então, personalidades de destaque nas hostes da violência endêmica da Província da Bahia vieram a aderir ao Catolicismo Popular pregado por Antonio Conselheiro e a converter-se dos seus crimes macabros, para servir a uma causa justa. Por exemplo, o valente João Abade que se despojou de uma história de crimes bárbaros para converter-se em homem de oração e da confiança do Bom Jesus Conselheiro. Portanto, João Abade tornou-se o primeiro comandante da Guarda Católica, espécie de exército religioso instituído para a defesa de Canudos; depois que o séquito do Conselheiro foi atacado por um contingente de soldados do destacamento de Tucano na localidade de Masseté, hoje povoado integrante do atual município de Quijingue onde o Conselheiro de longo tempo era recebido pelos moradores para momentos de orações, prédicas, conselhos e ensinamentos. Também José Venâncio – o terror da Volta Grande – que teria atuado como jagunço nas Lavras Diamantinas, Pedrão – natural da Várzea da Ema – que comandou a resistência impávida à Coluna Savaget nas vertentes da Canabrava, na antiga Fazenda Cocorobó e somente saiu de Canudos pouco antes do fim da guerra com autorização do Conselheiro de quem era compadre e devotado seguidor. Finda a guerra, Pedrão retornou de outros sertões do Nordeste para ajudar a reconstruir o povoado de Canudos. Isto sem falar de tantos outros homens marcados por experiências de lutas cruentas na marginalidade, mas que encontraram junto ao Conselheiro o ambiente da paz acolhedora que lhes assegurava a fé, a fraternidade, a oração, a solidariedade e o trabalho. Dessa forma, sob o cajado do grande líder carismático foi edificado o templo católico do Mucambo, atual Chorrochó, e muitos outros espaços de devoção cristã foram recuperados e concluídos por mãos que antes se achavam a serviço do crime. Muitas barragens foram escavadas para garantia da segurança hídrica do povo sertanejo, cemitérios recuperados e construídos, a subida da Serra de Piquaraçá em Monte Santo pavimenta e amurada na parte mais íngreme. E tantas outras obras que ficaram notáveis na memória sertaneja, assim como o Santuário e o novo casario “de telha” em Canudos, edificado a partir de 1893. Tudo por mãos devotadas ao Conselheiro e a serviço da Fé em Jesus Cristo e em Maria Santíssima.

           Certamente que a fé conselheirista tem ainda grandes méritos neste Sertão de Canudos. Mas o que ainda surpreende é como tantos homens saídos das hostes do crime e tantas mulheres egressas da prostituição e da degradação absoluta converteram-se em almas restauradas, devotas, piedosas, laboriosas e pacíficas no Universo Religioso de Canudos. O que pode ter acontecido? Será que os condicionamentos impostos pela sociedade dominante são tão eficazes no sentido de manipular os sujeitos na vida do crime e da degradação moral, de tal maneira que eles não conseguem vislumbrar uma saída para exercer a vida humana com plena dignidade? Será que a religião orientada por princípios elevados é um caminho seguro para restaurar a dignidade em plenitude da pessoa humana fragmentada pelas mazelas da aristocracia delituosa?

            Se a pessoa humana nasce em estado de pureza absoluta e somente vai adquirindo linguagens ao longo do seu desenvolvimento. Então as linguagens dos vícios, das perversões, das violências, dos crimes e etc. vão sendo adquiridas aqui no Sertão de Canudos nas relações dos indivíduos em estado de pureza com a sociedade dominadora, escravagista e marginalizadora. Ora, sob esses ônus impostos pela sociedade é difícil para a criança insurgir-se contra os códigos dominantes; e como o indivíduo nesse estágio de desenvolvimento não consegue gritar para o mundo, então o seu corpo fica marcado, e essas marcas determinam o seu caráter. Talvez isso tenha acontecido com Pajeú e com tantas outras vítimas da opressão e do flagelo ao longo da existência fora do ambiente conselheirista, mas a experiência de Canudos veio a transformar a sua realidade mesma e de muitos outros do seu tempo e têmpera. Neste sentido, a religião praticada com seriedade, aqui no Sertão de Canudos, pode anular os condicionamentos sociais e restaurar plenamente a dignidade da pessoa humana com absoluta liberdade. Principalmente considerando que Antônio Conselheiro não impunha nada a ninguém no sentido estrito do termo, deixava os indivíduos plenamente livres para escolher o caminho. Todavia, a opção por viver em Canudos implicava trilhar sendas de Paz. Uma Paz que o indivíduo ia cultivando nas mesmas proporções em que palmilhava os contornos do Rio Vaza-Barris. Uma Paz que somente veio a ser perturbada pelas forças militares da República, mobilizadas contra Canudos.

            A República e a sua engrenagem repressiva, também, foram grandes flagelos na vida do moço Pajeú, antes de integrar a plêiade conselheirista, principalmente a sua passagem pela instituição militar foi uma grande desgraça! Porque desde os primórdios do século XIX no Brasil o aparelho militar passa a constituir uma instância de poder tão especializado e tão dominador que às ocultas, além de oprimir e reprimir com brutalidade o povo brasileiro, já ameaçava a estabilidade política do próprio chefe de Estado, o Imperador Pedro II, na mesma proporção em que oprimia de forma implacável as massas súditas e subalternas, visando ao enfraquecimento do poder imperial nas bases fragilizadas da sociedade. Além disso, aquela forma Poder Castrense, de um lado, fabricava uma oficialidade rigorosamente selecionada nos âmbitos das elites sociais aristocráticas e burguesas, brancas ou arianas e sempre anti-imperialistas – a que se oferecia formação em academias próprias, contando com toda a logística do Estado e a participação direta da escola militar francesa –. Portanto, naquelas academias militares do Brasil, que além de ministrar preparo técnico e tático, também os formadores franceses trabalhavam a instrução científica, erudita e filosófica, sem saber que insuflavam as armas do Brasil contra as pretensões soberanas do Conde D’Eu, nobre francês genro de Dom Pedro II, esposo da Princesa Isabel e inegável pensador ideológico do Império do Brasil. No entanto, para as elites militares brasileiras, a escola francesa trazia na bagagem, além da formação específica, o signo insubordinador da Revolução Francesa, o ateísmo idiota e o Positivismo de Auguste Comte. A Maçonaria também passa a ganhar espaço no Brasil naquela época. Embora essas demandas não figurassem como intenções claras daquela escola francesa. Logo, para entender aquela cultura de hegemonia militar no Brasil, de elevada sofisticação tecnológica (para a época), filosófica e ideológica para a elite capitalista dominante e privilegiada, basta somente lembrar, de um lado, entre outros expoentes de destaque as figuras eminentes de Benjamin Constant e Euclides da Cunha, do outro lado, a soldadesca provinha dos bolsões de pobreza extrema e da etnia negro-mestiça analfabeta, explorada, oprimida, execrada, marginalizada e oficialmente recém-abolida da escravidão; pelo que os negros mitificavam e veneravam a figura da Princesa Isabel.

             Naquele contexto histórico de figuras imperiais divinizadas e veneradas pelas massas ignorantes, e de um sentimento republicano cultuado nos moldes positivistas e maçônicos nos labirintos obscuros dos gabinetes dos quartéis, abria-se um abismo sepulcral entre a elite esclarecida do Poder Militar, a sua oficialidade, e a soldadesca ignorante e bronca. E as forças armadas conseguiam ridicularizar mais ainda essa cratera sepulcral contraditória, pavimentando a sua via para a República, sobre os escombros da argamassa da soldadesca infame que jazia na mais repugnante miséria. Entretanto, as elites militares ainda exorbitavam das suas ostentações de prepotências ridículas, proclamando nos pátios dos quartéis discursos escorreitos e tendenciosos, através das chamadas Ordens do Dia e Boletins Diários, para deleites ideológicos da aristocracia castrense intelectualizada e confusões, e distúrbios morais e mentais das tropas analfabetas, rudes, miseráveis, grotescas, brutalizadas e trogloditas. É nesta perspectiva histórica que o Pajeú de Canudos na Bahia, e não mais de Flores em Pernambuco, deve ser estudado.

             Na verdade, a fabricação do soldado escravizado e marginalizado pelo Crime Oficial é a prática mais hedionda que o Estado de Direito desenvolve, sob o pretexto estúpido, leviano e capcioso de zelar pela segurança da pátria, do interesse militar e da sociedade civil dita organizada; recrutando corpos dóceis, servis e submissos nos espaços humanos literalmente abandonados e explorados pelo próprio Estado. Não é verdade?

             A realidade da exploração e marginalização do soldado tornou-se ainda mais aviltante na Polícia Militar do antigo Distrito Federal, depois Estado da Guanabara e por último Estado do Rio de Janeiro em que os chamados superiores hierárquicos manipulam o Regulamento Disciplinar da corporação para achacar, explorar e extorquir a soldadesca, forjando transgressões da disciplina ou sobrecarregando a escala de serviço do subordinado, obrigando-o a pagar-lhes propinas, visando a atenuação das formas de extorsões financeiras, perseguições e retaliações ou então forçando o soldado PM a estabelecer relacionamentos com oficiais homossexuais, para obter desonerações das perseguições implacáveis que lhe são impostas sob a égide do Regulamento Disciplinar da Polícia Militar.

             As polícias militares do Brasil – principalmente a Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro – aviltam, degradam, deploram e promiscuem os princípios mais elevados daquilo que seria doutrina militar propriamente dita em países civilizados e em sua compleição mais intrínseca nos próprios ambientes dos quartéis. Dessa forma, a Instituição Militar enquanto austera e completa com os seus códigos imprescritíveis de honra, de moral e de patriotismo incólume é negada com veemência nos quartéis da polícia militar onde a corrupção, o crime, o banditismo, a pederastia e a promiscuidade marginal ocultam-se, acobertam-se sob o manto protetor da égide militar. É terrível isso! Por exemplo, além das demandas de corrupções e outros crimes, na minha época de serviço, o assédio e a prostituição homossexuais degradavam a própria feição institucional do Estado de Direito nos antros abjetos da caserna; utilizando-se a sua fachada legal, inclusive, para beneficiar e privilegiar comparsas de crimes e parceiros de alcova. Todavia, os soldados PM que não aceitavam submeter-se a relacionamentos homossexuais com as hostes oficiais da corporação policial militar, eram obrigados a achacar e a roubar membros da sociedade civil, motoristas infratores principalmente, e a explorar delinquentes comuns, traficantes e usuários de drogas, contraventores penais, contrabandistas, ladrões, assaltantes, batedores de carteiras, prostitutas e homossexuais da Central do Brasil, da Praça Tiradentes, da Lapa, da Cinelândia, do Passeio Público e etc., para atender as expectativas das demandas institucionais de pagamentos de propinas nos âmbitos administrativos dos quartéis e para não serem perseguidos, retaliados e presos. Naquela perspectiva de “Luta pela Sobrevivência”, os soldados PM ficavam impossibilitados de comprometer os soldos miseráveis que percebiam do Estado com as extorsões das Corrupções Castrenses e, portanto, lançavam-se às engrenagens do CRIME ORGANIZADO OFICIAL POLICIAL MILITAR, para suportar os ônus arbitrários, manipulados a partir do temido Regulamento Disciplinar da Polícia Militar. Aliás, a baixíssima remuneração atribuída ao soldado PM e as Culturas de Corrupções Castrenses comprometem e deploram sobremaneira as políticas de segurança do Estado de Direito Democrático e favorecem a escalada da violência endêmica. Além disso, os recursos orçamentários destinados pela Lei para segurança pública, saúde, educação, saneamento básico, preservação ambiental e construções de moradias populares devem ser desviados para contas bancárias de governadores, secretários de estado, parlamentares, demais autoridades constituídas e etc. Contas bancárias abertas em instituições financeiras do exterior para engolir as demandas financeiras exorbitantes pagas pelo contribuinte brasileiro.  
        
             Neste contexto secular da corrupção incontrolável no Brasil, o soldado foi, é e será ainda um (des)patrizado e, a rigor, (des)socializado, (des)humanizado; mais ainda desalmado e torturado pelo Estado de Direito. Talvez Pajeú tenha sido o primeiro soldado analfabeto e marginalizado, na História Militar do Brasil, a tomar consciência dessa realidade e a romper com ela. Aquele descendente de escravos africanos do sertão de Pernambuco que deu a vida pela defesa dos ideais de Antonio Conselheiro teria sido aguilhoado nas fileiras do Exército ainda criança, segundo a Narrativa da Memória Popular de Canudos. Depois, ainda jovem, tendo alcançado a proteção humana, social e espiritual do líder carismático Antonio Conselheiro vai experimentar pela primeira vez na vida a plenitude da Liberdade construída.

              Historicamente no Brasil do século XIX, as forças armadas incorporavam e exploravam crianças para transformá-las em soldados, a pretexto do serviço à pátria. O coronel Moreira César – comandante da 3ª Expedição contra Canudos – trouxe meninos pobres, explorados e transformados em soldados mirins do regimento que comandava no Rio de Janeiro, para combater o povo de Antonio Conselheiro. Crianças que mal conseguiam sopesar a mochila de campanha e o fuzil. Também a então Marinha de Guerra chegou a construir uma cultura de exploração de crianças em suas fileiras e chegou a insuflar pavor em crianças rebeldes, ameaçadas por pais ou parentes de serem enviadas para a Marinha, visando a submetê-las à ortopedia pisco-pedagógica aplicada pela Armada, através de torturas e castigos corporais inomináveis; previstos em legislação militar regulamentar; a horripilante Lei da Chibata. Milhares de crianças podem ter vindo a óbito sob os ônus das sevícias nefandas da Chibata. Talvez os seus corpos infantis tenham tido o mar como sepulcro histórico da barbárie submersa. As armas e os barões assinalados têm sacrificado vidas humanas ao extremo, na medula da História do Brasil.

             A História ainda recente encontra o soldado brasileiro muito alienado, torturado e brutalizado nos quartéis e, portanto, literalmente posto à margem da sociedade sob o pretexto de “combater o inimigo”. Nesta perspectiva, o soldado se torna um instrumento acéfalo e facilmente manipulado pelas linguagens hediondas da caserna. Até que se revolta e em muitos casos cai na marginalidade de alto risco. Dessa forma, é que ocorrem muitas revoltas, insubordinações, deserções e opções pela vida do crime. Por exemplo, essa realidade tem se tornado muito óbvia com grande parte do efetivo do aparelho policial militar, quase que exclusivamente constituído por indivíduos cooptados nos quadros de egressos das forças armadas; principalmente o aparelho policial militar do Estado do Rio de Janeiro; de que são cada vez mais frequentes as notícias de envolvimentos daqueles servidores militares do Estado com práticas de delitos das mais diversas modalidades, inclusive escândalos de envolvimentos com o narcotráfico, com explosões de cofres e caixas eletrônicos de instituições financeiras, com roubos de materiais bélicos nos quartéis, para serem vendidos a bandidos civis, além de envolvimentos com milícias e etc.

              O principal problema dos egressos militares das forças armadas, quer integrando os quadros das polícias do Estado, quer como membros da sociedade civil – e nestes espaços sendo marginalizados – é que muitos deles receberam adestramentos e condicionamentos táticos, técnicos e terroristas de altíssima periculosidade nos centros de treinamentos dos quartéis. Por exemplo, os chamados comandos, i.e., indivíduos condicionados e psicologicamente manipulados a executarem ações de atentados terroristas, sabotagens e demais hecatombes, agindo individualmente e sem levantar suspeitas, sendo capazes de operar atentados idênticos aos quadros da Al Qaeda e do Estado Islâmico. E a sociedade não aprofunda o debate sobre essa realidade! Ora, a imprensa tem noticiado que a elevada capacidade de enfrentamento bélico demonstrado pelo narcotráfico vem do apoio logístico assegurado por esses comandos egressos do sistema militar e incorporados pelas organizações criminosas. Nesta perspectiva de aprofundamento, para melhor compreender essa realidade inegável, basta considerar também as demandas assoladoras de egressos do serviço militar que não ingressando nos quadros das polícias, mas optando pela vida civil, nesta tornam-se bandidos perigosos, assassinos, assaltantes, ladrões, sequestradores e traficantes de drogas que nutrem um ódio mortal contra forças militares, combatendo-as com extrema ferocidade, inclusive abatendo aeronaves de órgãos da segurança pública. Tudo em consequência dos abismos sociais que lhes negaram para sempre a dignidade da vida humana, principalmente nos ambientes opressivos dos quartéis. Dir-se-ia os Pajeús do século XXI, obrigando o próprio Estado de Direito a inventar os Presídios de Segurança Máxima, que correspondem a outras formas de aquartelamentos constrangidos, para ofuscar as ações delituosas perpetradas pelo CRIME ORGANIZADO OFICIAL. Portanto, para entender os Pajeús do Terceiro Milênio convém retornar ao Pajeú do século XIX.

             Pajeú é uma personalidade atípica na historiografia castrense brasileira, que devia ser estudada meticulosamente e com absoluto rigor científico; o seu ódio irascível contra o Exército em que foi escravizado e brutalizado, abriu-lhe um abismo alongado com relação ao Estado e levou-o a extremismos brutais – principalmente – contra todo e qualquer discurso de conotação militar. Por exemplo, o seu ódio extremado induziu-o a assassinar todos os varões da antiga família Mota, de Canudos, pelo fato de ter sabido que eram parentes de um major da Força Policial da Bahia, que teria colaborado com a Expedição Pires Ferreira, a primeira contra Canudos. Também, esse abismo alongado no próprio Exército com relação ao Povo de Canudos – inclusive em termos de extrema crueldade –, favoreceu sobremaneira a exploração, a manipulação, o preconceito radical, o ódio, a truculência e a extrema crueldade contra o povo sertanejo. Milhares de pessoas foram covardemente degoladas em Canudos Pelo Poder Militar! Até aquelas pessoas que se renderam pacificamente, como foi o caso de Antonio Beatinho – acólito do Conselheiro – e de uma mulher combatente, assassinada pelos militares da forma mais covarde e hedionda.

              Os militares haviam se comprometido a não degolar mulheres nem crianças em Canudos. Entretanto, daqui do âmago do Sertão de Canudos, acreditamos principalmente que o ódio troglodita propugnado pelas elites militares contra o Povo de Antonio Conselheiro vinha daquela formação alicerçada em uma teorização de pretensa superioridade militar que nega ao outro o mais elementar reconhecimento humano, o que certamente levou os militares a perpetrarem covardias, sevícias, estupros, torturas e degolas na Guerra de Canudos. Não obstante, não se sabe como, foi no contexto militar que Pajeú apreendeu todas as dinâmicas bélicas, táticas, técnicas, e teóricas de guerra – tal como os traficantes de drogas dos dias de hoje apreendem durante o serviço militar obrigatório – empregando-as com reconhecida competência na defesa de Canudos, por ocasião do conflito armado; também atenuando de algum modo a escalada militar das degolas, torturas e sevícias em Canudos, enquanto foi humanamente possível. Ainda levando os melhores estrategistas do Exército Brasileiro naquela época a subestimar a inteligência do sertanejo e ao convencimento de que a Guarda Católica contava com assessoria militar oferecida pela realeza britânica, insatisfeita com a deposição do Imperador Pedro II, tanto pelas relações de amizade com a realeza brasileira quanto pelas similaridades reais que a República Militar do Brasil pretendia exterminar. 
                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                                               
            O Brasil ignorava que o grande estrategista que defendia Canudos com a intrepidez heroica de um bravo combatente era um homem negro que ele próprio havia formado nos âmbitos dos seus quartéis e que o tornou ainda mais preparado quando a Expedição Moreira César, derrotada no confronto do Vaza-Barris, abandonou pelas caatingas de Canudos acervo abundante de armas e munições importadas, e de última geração, e mais do que suficientes para garantir a resistência imbatível até o fim do conflito. É a partir daquele momento da derrota da Terceira Expedição Militar Contra Canudos que Pajeú ganha prestígio e se destaca porque dentre os homens mais experimentados da Guarda Católica ele era o único que sabia manejar com destreza aqueles equipamentos bélicos, além de dominar outros saberes como construções de trincheiras, camuflagens e manobras estratégicas eficientes; ao lado de seus companheiros de fé, devoção, trabalho e luta. A propósito de ter combatido, entre outros notáveis, especialmente ao lado do valente José Venâncio, escreve o autor de Os Sertões,

Ladeia-o o afoito Pajeú, rosto de bronze vincado de apófises duras, mal a prumado o arcabouço atlético. Estático, mãos postas, volve, como as suçuaranas em noite de luar, o olhar absorto para os céus. Logo após o ajudante-de-ordens inseparável, Lalau, queda-se igualmente humílimo, joelhos dobrados sobre o trabuco carregado. Chiquinho e João da Mota, dois irmãos aos quais estava entregue o comando dos piquetes vigilantes nas estradas de Cocorobó e Uauá, aparecem unidos, desfiando, crédulos, as contas do mesmo rosário. Pedrão, cafuz entroncado e bruto, que com trinta homens escolhidos guardava as vertentes da Canabrava, mal se distingue, afastado, próximo de um digno êmulo de tropelias. Estêvão, negro reforçado, disforme, corpo tatuado à bala e à faca, que lograra vingar centenas de conflitos graças à disvunerabilidade rara. Era o guarda do Cambaio (CUNHA, 1979, p. 135).

               Conforme se lê acima, Pajeú integrava o estado-maior do Conselheiro, ao lado dos mais destacados combatentes, empregando as mesmas disposições táticas e estratégicas de um exército regular. No dizer da Narrativa Contemporânea do Sertão de Canudos, não era o que ele pretendia quando abdicou da vida do crime e integrou-se ao regaço acolhedor da grei apostólica de Antonio Conselheiro. Tudo o que deseja era uma vida de plena Paz. Naquela perspectiva pacífica, se o governo do Brasil não houvesse massacrado Canudos, Pajeú teria chegado ao fim dos seus dias em Canudos, com as suas cãs alvas como a neve, debulhando o seu rosário-de-coco, recitando as suas Ave-Marias e repetindo as prédicas do Conselheiro para filhos de cabelos brancos, netos de cabelos grisalhos, e tetranetos de cabelos negros como frutos de quixaba. Mas Pajeú foi morto quase no fim da guerra, comandando a Guarda Católica e saltando de uma trincheira para outra, distribuindo suprimentos bélicos.          
                                                                                                                                     
                                                                            

                                                Serrinha, 24 de março de 2017
                                                                   

REFERÊNCIAS

CALASANS, José . Quase biografias de jagunços: o séquito de Antonio Conselheiro . Salvador: Centro de Estudos Baianos/UFBA, 1986.
CAMINHA, Adolfo . Bom-crioulo . 6. ed. São Paulo: Ática, 1998.
CAMÕES, Luís de . Os lusíadas . São Paulo: Nova Cultural, 2003.
CUNHA, Euclides da . Os sertões . 29. ed. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
DALAI-LAMA, Sua Santidade o . Minha terra e meu povo . Rio de Janeiro: Sextante, 2001.
FOUCUALT, Michel . Vigiar e punir . 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
HONWANA, Luís Bernardo . Nós matamos o cão-tinhoso . São Paulo: Ática, 1980.

*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA LOTADO NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.






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