MENINO LOIRO NAS NOITES DE PORTO ALEGRE
MENINO LOIRO NAS
NOITES DE PORTO ALEGRE
por José Plínio de Oliveira*
NAQUELE FINAL DE TARDE, Robson
despertou na maloca em que se homiziava sob um grande viaduto da cidade, com
outros jovens também moradores de rua e infratores. Ainda sentindo o corpo
oneroso pelo consumo de drogas ao longo do dia, lembrou-se do compromisso
assumido com um comerciante de telefones celulares estabelecido no Bourbon,
receptador de aparelhos roubados e fornecedor de drogas. Robson sentia o corpo
doer como se tivesse sido atropelado por uma carreta. Ergueu-se, cuidou-se na toilette improvisada, trajou-se na moda
e saiu para observar algumas vitrines no Centro Comercial. A noite vinha
caindo.
Parado em frente a uma loja de
departamentos, o jovem observava os celulares de última geração, para
“trabalhar” e atender as expectativas do receptador, quando teve a sua atenção
voltada para uma tela de TV, exibindo imagens de Paulo Guedes reunido com
parlamentares no Congresso Nacional, tentado impor uma Reforma da Previdência
Social capaz de levar para o Narcotráfico, para as Milícias e para o Terrorismo
milhões de jovens brasileiros despojados do Direito à Vida, à Educação e ao
Trabalho digno nas atuais e próximas gerações. Em dado momento, o Ministro da
Economia passou a discutir com um deputado federal:
– Puta safada é a tua mãe...
– É a tua ladrão descarado!
O episódio envolvendo um
Ministro de Estado e um parlamentar federal causou uma lesão profunda na
subjetividade do Menino Loiro, mas também abriu-lhe um devir de insight. Então ele foi tomado por uma
reflexão pesada, quedou a fronte e
foi andando pela calçada quando deparou-se com uns guris especializados em
roubar relógios de luxo. Como o Robson roubava celulares sofisticados, os guris
não eram concorrentes, mas grandes amigos. Todos a serviço de receptadores
poderosos e acima de qualquer suspeita.
– Não veio hoje? Quis saber um dos amigos.
– Bah! Viajou para os Estados
Unidos com a família; foi para Orlando.
– Vai ter um show da Adriana no
Opinião, a gente se cruza por lá.
Avião sem asa
Fogueira sem brasa
Sou eu assim, sem você
Futebol sem bola
Piu-Piu sem Frajola
Sou eu assim, sem você
Por que é que tem que ser assim?
Se o meu desejo não tem fim
Eu te quero a todo instante
Nem mil auto-falantes
Vão poder falar por mim
Eu não existo longe de você
E a solidão é meu pior castigo
Eu conto as horas pra poder te ver
Mas o relógio tá de mal comigo...
Robson Friedrich Merkel foi levado
pelos pais de Vacaria para Porto Alegre aos seis anos de idade. A mamãe foi
para a capital gaúcha em busca de tratamento médico, amparada pelo esposo
devotado e consolada pelo filho caçula amoroso; deixando parte da prole com os
avós maternos. Depois de exaustivas peregrinações por centros médicos do
governo que sempre adiavam o tratamento; ela veio a óbito na sala de recepção
do pronto-socorro de um hospital público. O viúvo não conseguiu suportar a
ausência da companheira de muitos anos, foi acometido pela doença do alcoolismo
e pouco tempo depois morreu atropelado em uma via pública. E Robson foi
acolhido por um grupo de crianças de rua que o iniciaram nos mistérios das
noites, cometendo pequenos furtos e aprendendo a escapar da polícia. Logo, passou
a dominar uma gama considerável de saberes, tornando-se exímio batedor de carteiras aos oito anos de
idade. Aos dez anos passou a liderar uma importante facção de jovens infratores,
foi apreendido e internado em um Centro de Recuperação do Estado onde apreendeu
sofisticadas técnicas e estratégias delituosas de elevadíssimas complexidades.
Passou do consumo de cola ao uso de cocaína, do roubo de carteiras ao
assalto-à-mão-armada. No contexto escolar daquela instituição, observou como os
menores infratores são objetos de manipulações por parte Estado e da Sociedade,
inclusive explorados como meliantes mirins e impedidos de alcançar a cidadania
plena, para favorecer a interesses escusos e promíscuos das elites dominantes,
inclusive sexuais. E pensou mais: as Políticas Públicas são conspurcadas pelo
Estado de Direito para fabricar jovens delinquentes oriundos da pobreza,
transformando-os em corpos dóceis e bodes expiatórios das potestades
aristocráticas. Indignou-se, posto em liberdade prosseguiu de forma mais
radical na vida do crime. Passou a “trabalhar” com assaltos a Bancos,
carros-fortes, sequestros, tráficos de armas e ingressou no Narcotráfico Organizado,
nele conhecendo um menino muito rico de tradicional família gaúcha e detentor
de traços femininos acentuados de Arthur Rimbaud, a quem passou a fornecer
drogas; depois estabelecendo com ele um relacionamento homo afetivo que os
propiciava encontros apaixonados quase todas as noites.
Chegando à adolescência, o
Menino Loiro era conhecido de toda a polícia gaúcha e preso com muita
frequência. Então, o Juizado de Menores teve a ideia de enviá-lo para a terra
natal, a fim de ser custodiado por parentes próximos e responsáveis.
Entretanto, as autoridades de Vacaria tiveram conhecimento de que todos os
familiares de Robson haviam-se mudado para Roraima em busca de melhores
condições de vida, não deixando na cidade o mais tênue vestígio de endereço. O
Menino voltou para as ruas da capital, retomando afetos e culturas sociais.
Mas, naquela noite em que caminhava para o show de Calcanhoto, a dor da
ausência dos entes queridos tornara-se insuportável: da mamãe que morreu de
câncer, do papai assassinado pelo alcoolismo, dos parentes que migraram para
Roraima, do companheiro tão querido e tão distante naquela noite de extrema
solidão. E ia Robson caminhando cabisbaixo e pensativo por uma cidade
agitadíssima de gentes, luzes e automóveis como se peregrinasse por um imenso
deserto. Um deserto sem oásis, sem dunas, sem Sol, sem tempestades de areia, sem
falésias, sem miragens... Sem que ele percebesse, seguia-o um veículo
descaracterizado da Brigada Militar, ocupado por agentes do serviço de
inteligência e um atirador de elite. Um conluio entre o presidente do Tribunal
de Justiça e o comandante-geral da força policial determinou que todos os
líderes de facções de periferias sociais fossem mortos para que o Estado
pudesse dar satisfações à sociedade, reduzindo os índices de violência no Rio
Grande do Sul.
Enquanto caminhava para a casa noturna,
ia refletindo o Menino Loiro: “Por que é que tem que ser assim? Por que o meu
desejo não tem fim e o meu maior castigo tem que ser uma solidão caustica? Por
que a noite não me abre braços de ternura e me acolhe com afeto devotado a um
filho, ainda que pródigo? Por que um raio de Luz não invade as trevas da minha
noite e faz nascer o dia?” Pensando assim, Robson foi-se aproximando da
Bilheteria da casa de shows, convicto de decisões radicais: não mais roubar,
assaltar, sequestrar, traficar e consumir drogas. Parou no meio do grande
público perplexo de si mesmo. Naquele momento, os agentes públicos da Brigada
Militar que o haviam perdido de vista entre as massas, vislumbraram-no.
– O guri, tchê...
– Qual?
– Porra! o Menino Loiro...
O atirador de elite efetuou o
disparo, mas errou o alvo e atingiu a uma senhora acompanhada por familiares
que aguardavam entrar no Opinião. Assim, o Menino Loiro esgueirou-se pelo
tumulto do público alarmado e avançou pela noite de trevas como presa ameaçada,
escapando de predadores. Logo as trevas dissiparam-se e no fundo da noite ele
viu um ponto de luz que ia aumentando na proporção em que avançava-lhe ao
encontro. Adentrou correndo pelo interior da Grande Esfera Luminosa.
Serrinha, 19 de
abril de 2019.
*PROFESSOR
DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPERTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS –
CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.
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