SEVILHA ANDANTE
SEVILHA ANDANTE
por José Plínio de Oliveira*
Nascido de um relacionamento fortuito
entre a bailarina sevilhana Dolores Albernaz Rodriguez Pozadas y Pozadas e o
cônsul de Portugal em Madri Dom Antônio Maria Sepúlveda Bacelar de Oliveira e
Castro, Juan Ignácio não foi tão infeliz quanto o destino poderia ter-lhe
acarretado. Ora, Dolores Albernaz em pleno fulgor da carreira artística entre
Madri, Barcelona, Sevilha, Paris, Lisboa, Roma, Genebra e outras cidades da
Europa foi apresentada em noite de espetáculo no Coliseu ao generalíssimo Franco,
de quem se tornou amante, amiga, confidente e cúmplice. Essa condição
privilegiada fez de Dolores uma das mulheres mais ricas daquele mundo de seu
tempo e de Juan Ignácio uma criança feliz, bem cuidada, muito protegida e
satisfeita em todos os seus desejos.
A Europa vivia períodos de guerra e o caudilho espanhol achava-se sobremaneira oprimido entre as pretensões de Hitler e os interesses de Mussolini quando encontrou em Dolores uma espécie de lenitivo para os seus momentos de ócios e sensualidades. Mas, ainda assim, aquela Dolores jovem de corpo esguio e talhado em primor de Velásquez; acobreada em tom andaluz, agraciada com aplausos frenéticos de platéias masculinas cativas e enlouquecidas passa a atormentar as noites de vigílias do feroz ditador. Então ele encarrega um de seus colaboradores mais próximos de empreender uma investigação minuciosa sobre a trajetória de vida da amante, movido por uma paixão voraz e submissa.
– Ela teve um relacionamento com um diplomata
português, de quem tem um filho. Eles ainda se falam!
O relato do espião transtornou o
pensamento de Franco.
– E você, o que sugere?
– Penso que ela pode viver em Madri e isso
trará efetiva tranqüilidade.
Logo depois, Dolores passa a viver em
palácio suntuoso, mui abastada em companhia de seu filho. Com luxo, requinte,
glamour, distinção e poder. Tudo sem limites – lhe assegurou o amante –, desde
que abandonasse o palco.
– Abdicar da vida sim, da Arte nunca!
O homem cedeu e na capital da Espanha
Dolores estreou em noite de gala e em longa temporada no Teatro Miguel de
Cervantes. A pretexto de suas relações amorosas prestou discreta homenagem ao
general, dançando Dulcinéia e o Cavaleiro.
Então, dado ao grande sucesso da musa – apesar da guerra – a plêiade de
assessores mais próximos do chefe de Estado encontrou no nome da bailarina
sevilhana o meio mais seguro para carrear dinheiro dos cofres espanhóis para
contas secretas na França e na Suíça. Assim que o caudilho passou a ser informado
acerca do plano, sorveu com extrema volúpia o cálice de Gerez que lhe puseram em face, deu um soco violentíssimo sobre a
mesa de trabajo e pontificou:
– Haja pronto!
Por essa época, os governos da
Alemanha e da Itália comissionaram o da Espanha para iniciar um trabalho
diplomático, visando a convencer o governo de Portugal a juntar-se àqueles na
perspectiva de construção de um bloco hegemônico, capaz de fazer frente à Inglaterra,
aos Estados Unidos da América e aos demais países aliados contra o nazi-facismo.
Isso porque se levava em conta a posição estratégica ocupada por aquela parte
extrema da Península Ibérica de frente para a África e a caminho do Oriente;
também, pelo fato de o governo português, liderado por Salazar, expressar
convicções ideológicas muito próximas daquelas defendidas por Hitler, Franco e
Mussolini. Assim avançavam as negociações com Portugal e iam sendo
aperfeiçoadas na medida em que lhe eram oferecidas oportunidades de comércio de
matérias-primas de suas colônias com os países daquele bloco; quando Dom
Antônio Maria Sepúlveda de Oliveira e Castro foi encontrado morto em um
balneário de Vigo em pleno inverno europeu. As primeiras investigações feitas
em conjunto pelas polícias espanhola e portuguesa concluíram que o cônsul de
Portugal em Madri foi assassinado em outro local e levado para aquela região
litorânea. Logo, o governo de Salazar solicitou das autoridades espanholas
imediata prisão e implacável punição dos responsáveis por aquele atentado
contra a Diplomacia Portuguesa; no que não foi prontamente atendido. Então
Portugal chamou de volta o seu embaixador na Espanha e declarou encerradas as
negociações.
Dom Antônio Maria descendia de linhagem
nobre e tinha entre seus ancestrais mais ilustres o escritor Pero Vaz de
Caminha, autor da Certidão de Nascimento do
Brasil. Portanto, a família de Dom Antônio sempre contou com as benesses do
Estado Patrimonial Português. Assim é que ele estudou no França, tornou-se
assíduo freqüentador dos espaços noturnos do Quartier Latin. Amigo de Valéry,
leitor de Rimbaud e crítico singular da obra de Racine, também, foi responsável
pela introdução em Paris das relações de amizade com José Régio. A sua figura
admirável causava feliz impressão e muito bom agrado nos meios intelectuais.
Espírito refinado, trato impecável, barba cerrada e cuidada com esmero, olhos
negros de uma tristeza profundamente lusitana; prefigurava uma espécie de
síntese das personalidades de Dom Dinis e Dom Sebastião. Por isso, o
assassinato de Antônio Maria emudeceu a Alma portuguesa, calando-lhe no que lhe
há de mais peculiar – o Fado – e, ainda mais, transtornou a vida de Dolores.
A bem da verdade, o caudilho espanhol
jamais conseguiu impor a Dolores Albernaz que rompesse definitivamente com o
pai do seu filho, enquanto ele viveu. Apesar de toda a espionagem articulada em
torno dela. Dolores era uma mulher pública, uma artista. E os artistas são pessoas
muito fluídas, de vida pessoal assaz intensa. Não era possível mantê-la estagnada
no palácio luxuoso em que vivia nem, tampouco, vigiá-la a todo o momento na
casa noturna em que se apresentava. Além disso, ela se apresentava em outras
partes do mundo, ia com freqüência a Paris a pretexto de renovar o guarda-roupa,
atualizar o toucador e assistir a outros eventos artísticos fora do seu
cotidiano e, principalmente, transtornada com a morte de Antônio Maria, em uma
daquelas oportunidades abriu o coração para a grande amiga e também grande
estrela da noite espanhola Sarita Montiel que, naquela época, realizava uma tournée pela França. Então, Sarita foi
decisiva:
– Transfira todo o dinheiro que o
Francisco depositou em bancos europeus em teu nome para um outro país!
– Mas como?
– Tu és a titular das contas. Os
valores estão no teu nome!...
– Mas para onde?
– Esta semana nós vamos a Londres e
providenciaremos isto.
– Sarita, eu fico tão preocupada com
o meu filho! Esta história é tão confusa...
– Mande-o para Lisboa; para a casa
dos parentes do pai dele!
– Menina, que Idéia! Eu não havia
pensado nesta possibilidade...
– Pois, então, haja com presteza!
Naquele tempo, o ditador Getúlio
Vargas havia colocado seis representações diplomáticas brasileiras na Europa à
disposição de Assis Chateaubriand, que se achava em Londres avaliando a
Embaixada do Brasil na Inglaterra, visando a escolher a que lhe convinha a assumir
o posto de embaixador. Sarita Montiel sabia disso e foi ao seu encontro em
companhia de Dolores:
– Não. A senhora não se avexe! Oh!
Ainda esta semana a senhora toma as providências, eu passo em Lisboa, apanho o
menino e levo comigo para São Paulo. Não se preocupe... Com Salazar eu me
entendo muito bem. Eu consigo me entender com Getúlio!...
– Agora, tem aquele outro negócio viu
Chatô...
– Dona Sarita. Olhe! As senhoras
podem encaminhar essa questão aqui mesmo na Inglaterra. Não precisa ir a
Genebra e muito menos voltar a Paris. Olhem! Vejam bem! As senhoras compareçam
ao Bank of London, procurem o
encarregado de negócios da carteira do Banco do Brasil, o senhor Evaristo Pessoa
que se encarregará das relações de transferências. Hoje mesmo a senhora já terá
o número de uma nova conta no Banco do Brasil e, daqui há sessenta dias esses
valores à vossa disposição lá! Depois é só curtir aquelas praias maravilhosas
do Rio de Janeiro e de São Vicente, e cantar pra gente no Casino da Urca, no
Tryanon, no Teatro Municipal...
– Monsieur!
– Madames...
– Chatô,
como tu és grande!
– As senhoras é que são maravilhosas!
Olhe, Dona Sarita, se a Yolanda não vivesse em minha cabeça e em meu coração;
como aquela Dulcinéia no Dom Quixote de vocês; eu ia fazer uma declaração de
amor para a senhora.
– Tu és demais!
– Ah! Um segredo diplomático que eu
quero compartilhar com estas belas senhoras: Salazar passou a financiar os Bascos, depois que assassinaram Dom Antônio
Maria. Os portugueses querem se vingar dos espanhóis. Depois, tem aquela
história de que em Portugal “b” soa “v”. Então pode ser que eles queiram ressuscitar
os seus Bascos das Gamas, matando o
franquismo.
Dolores e seu filho viveram em São Paulo por quase dez
anos, depois vieram para a Bahia viver junto da maior colônia espanhola no
Brasil. Ela foi envelhecendo com uma vida milionária, financiando a vida
noturna desregrada de Juan, que, aliás, fez muito bom jus à história do seu
onomástico. E por isso veio parar no município de Valente onde se tornou
próspero comerciante e chefe de prole abastada. Quando o general português Antônio
de Espíndola publicou a obra Portugal e o
Futuro, Dolores estava quase paralítica, mesmo assim, contra a vontade do
filho e dos netos, decidiu viajar para Lisboa a fim de revelar a história que Portugal desconhece; porém; morreu de
infarto fulminante em uma Sala Vip
do Aeroporto Dois de Julho em Salvador, minutos antes de embarcar para a
Europa.
Passados alguns anos, tendo muito
expandido os seus negócios pela Região Sisaleira, o empresário Juan Ignácio
recebeu uma comitiva de investidores sevilhanos, interessados em negócios de
caprinocultura no semiárido baiano, e quando erguia em brinde o cálice de vinho
pontificou:
– Eu quero que os senhores proclamem
na Espanha que no dia em que eu descer ao sepulcro levarei comigo a parte mais
oculta da História daquele país.
para
Mariana Carneiro, José Raimundo, Anselmo e Marilu
Serrinha, 19 de julho de 2005.
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