Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

SEVILHA ANDANTE

                                                     SEVILHA ANDANTE
                                                                       por José Plínio de Oliveira*
  
           
  
         DOM JUAN IGNÁCIO DE ALBERNAZ Y POZADAS foi sepultado no cemitério de Bandiaçu no dia 04 de junho de 2002. Há mais de duas décadas vinha ele se dedicando à criação de caprinos e ao comércio de exportação de fibras de sisal.

          Nascido de um relacionamento fortuito entre a bailarina sevilhana Dolores Albernaz Rodriguez Pozadas y Pozadas e o cônsul de Portugal em Madri Dom Antônio Maria Sepúlveda Bacelar de Oliveira e Castro, Juan Ignácio não foi tão infeliz quanto o destino poderia ter-lhe acarretado. Ora, Dolores Albernaz em pleno fulgor da carreira artística entre Madri, Barcelona, Sevilha, Paris, Lisboa, Roma, Genebra e outras cidades da Europa foi apresentada em noite de espetáculo no Coliseu ao generalíssimo Franco, de quem se tornou amante, amiga, confidente e cúmplice. Essa condição privilegiada fez de Dolores uma das mulheres mais ricas daquele mundo de seu tempo e de Juan Ignácio uma criança feliz, bem cuidada, muito protegida e satisfeita em todos os seus desejos.
          
A Europa vivia períodos de guerra e o caudilho espanhol achava-se sobremaneira oprimido entre as pretensões de Hitler e os interesses de Mussolini quando encontrou em Dolores uma espécie de lenitivo para os seus momentos de ócios e sensualidades. Mas, ainda assim, aquela Dolores jovem de corpo esguio e talhado em primor de Velásquez; acobreada em tom andaluz, agraciada com aplausos frenéticos de platéias masculinas cativas e enlouquecidas passa a atormentar as noites de vigílias do feroz ditador. Então ele encarrega um de seus colaboradores mais próximos de empreender uma investigação minuciosa sobre a trajetória de vida da amante, movido por uma paixão voraz e submissa.

          – Ela teve um relacionamento com um diplomata português, de quem tem um filho. Eles ainda se falam!
          O relato do espião transtornou o pensamento de Franco.
          – E você, o que sugere?
          – Penso que ela pode viver em Madri e isso trará efetiva tranqüilidade.
          Logo depois, Dolores passa a viver em palácio suntuoso, mui abastada em companhia de seu filho. Com luxo, requinte, glamour, distinção e poder. Tudo sem limites – lhe assegurou o amante –, desde que abandonasse o palco.
          – Abdicar da vida sim, da Arte nunca!

          O homem cedeu e na capital da Espanha Dolores estreou em noite de gala e em longa temporada no Teatro Miguel de Cervantes. A pretexto de suas relações amorosas prestou discreta homenagem ao general, dançando Dulcinéia e o Cavaleiro. Então, dado ao grande sucesso da musa – apesar da guerra – a plêiade de assessores mais próximos do chefe de Estado encontrou no nome da bailarina sevilhana o meio mais seguro para carrear dinheiro dos cofres espanhóis para contas secretas na França e na Suíça. Assim que o caudilho passou a ser informado acerca do plano, sorveu com extrema volúpia o cálice de Gerez que lhe puseram em face, deu um soco violentíssimo sobre a mesa de trabajo e pontificou:

          – Haja pronto!

          Por essa época, os governos da Alemanha e da Itália comissionaram o da Espanha para iniciar um trabalho diplomático, visando a convencer o governo de Portugal a juntar-se àqueles na perspectiva de construção de um bloco hegemônico, capaz de fazer frente à Inglaterra, aos Estados Unidos da América e aos demais países aliados contra o nazi-facismo. Isso porque se levava em conta a posição estratégica ocupada por aquela parte extrema da Península Ibérica de frente para a África e a caminho do Oriente; também, pelo fato de o governo português, liderado por Salazar, expressar convicções ideológicas muito próximas daquelas defendidas por Hitler, Franco e Mussolini. Assim avançavam as negociações com Portugal e iam sendo aperfeiçoadas na medida em que lhe eram oferecidas oportunidades de comércio de matérias-primas de suas colônias com os países daquele bloco; quando Dom Antônio Maria Sepúlveda de Oliveira e Castro foi encontrado morto em um balneário de Vigo em pleno inverno europeu. As primeiras investigações feitas em conjunto pelas polícias espanhola e portuguesa concluíram que o cônsul de Portugal em Madri foi assassinado em outro local e levado para aquela região litorânea. Logo, o governo de Salazar solicitou das autoridades espanholas imediata prisão e implacável punição dos responsáveis por aquele atentado contra a Diplomacia Portuguesa; no que não foi prontamente atendido. Então Portugal chamou de volta o seu embaixador na Espanha e declarou encerradas as negociações.

          Dom Antônio Maria descendia de linhagem nobre e tinha entre seus ancestrais mais ilustres o escritor Pero Vaz de Caminha, autor da Certidão de Nascimento do Brasil. Portanto, a família de Dom Antônio sempre contou com as benesses do Estado Patrimonial Português. Assim é que ele estudou no França, tornou-se assíduo freqüentador dos espaços noturnos do Quartier Latin. Amigo de Valéry, leitor de Rimbaud e crítico singular da obra de Racine, também, foi responsável pela introdução em Paris das relações de amizade com José Régio. A sua figura admirável causava feliz impressão e muito bom agrado nos meios intelectuais. Espírito refinado, trato impecável, barba cerrada e cuidada com esmero, olhos negros de uma tristeza profundamente lusitana; prefigurava uma espécie de síntese das personalidades de Dom Dinis e Dom Sebastião. Por isso, o assassinato de Antônio Maria emudeceu a Alma portuguesa, calando-lhe no que lhe há de mais peculiar – o Fado – e, ainda mais, transtornou a vida de Dolores.    
  
          A bem da verdade, o caudilho espanhol jamais conseguiu impor a Dolores Albernaz que rompesse definitivamente com o pai do seu filho, enquanto ele viveu. Apesar de toda a espionagem articulada em torno dela. Dolores era uma mulher pública, uma artista. E os artistas são pessoas muito fluídas, de vida pessoal assaz intensa. Não era possível mantê-la estagnada no palácio luxuoso em que vivia nem, tampouco, vigiá-la a todo o momento na casa noturna em que se apresentava. Além disso, ela se apresentava em outras partes do mundo, ia com freqüência a Paris a pretexto de renovar o guarda-roupa, atualizar o toucador e assistir a outros eventos artísticos fora do seu cotidiano e, principalmente, transtornada com a morte de Antônio Maria, em uma daquelas oportunidades abriu o coração para a grande amiga e também grande estrela da noite espanhola Sarita Montiel que, naquela época, realizava uma tournée pela França. Então, Sarita foi decisiva:

          – Transfira todo o dinheiro que o Francisco depositou em bancos europeus em teu nome para um outro país!
          – Mas como?
          – Tu és a titular das contas. Os valores estão no teu nome!...
          – Mas para onde?
          – Esta semana nós vamos a Londres e providenciaremos isto.
          – Sarita, eu fico tão preocupada com o meu filho! Esta história é tão confusa...
          – Mande-o para Lisboa; para a casa dos parentes do pai dele!
          – Menina, que Idéia! Eu não havia pensado nesta possibilidade...
          – Pois, então, haja com presteza!

          Naquele tempo, o ditador Getúlio Vargas havia colocado seis representações diplomáticas brasileiras na Europa à disposição de Assis Chateaubriand, que se achava em Londres avaliando a Embaixada do Brasil na Inglaterra, visando a escolher a que lhe convinha a assumir o posto de embaixador. Sarita Montiel sabia disso e foi ao seu encontro em companhia de Dolores: 

          – Não. A senhora não se avexe! Oh! Ainda esta semana a senhora toma as providências, eu passo em Lisboa, apanho o menino e levo comigo para São Paulo. Não se preocupe... Com Salazar eu me entendo muito bem. Eu consigo me entender com Getúlio!...
            – Agora, tem aquele outro negócio viu Chatô...
          – Dona Sarita. Olhe! As senhoras podem encaminhar essa questão aqui mesmo na Inglaterra. Não precisa ir a Genebra e muito menos voltar a Paris. Olhem! Vejam bem! As senhoras compareçam ao Bank of London, procurem o encarregado de negócios da carteira do Banco do Brasil, o senhor Evaristo Pessoa que se encarregará das relações de transferências. Hoje mesmo a senhora já terá o número de uma nova conta no Banco do Brasil e, daqui há sessenta dias esses valores à vossa disposição lá! Depois é só curtir aquelas praias maravilhosas do Rio de Janeiro e de São Vicente, e cantar pra gente no Casino da Urca, no Tryanon, no Teatro Municipal...
          – Monsieur!
          – Madames...
          – Chatô, como tu és grande!
          – As senhoras é que são maravilhosas! Olhe, Dona Sarita, se a Yolanda não vivesse em minha cabeça e em meu coração; como aquela Dulcinéia no Dom Quixote de vocês; eu ia fazer uma declaração de amor para a senhora.
          – Tu és demais! 
       – Ah! Um segredo diplomático que eu quero compartilhar com estas belas senhoras: Salazar passou a financiar os Bascos, depois que assassinaram Dom Antônio Maria. Os portugueses querem se vingar dos espanhóis. Depois, tem aquela história de que em Portugal “b” soa “v”. Então pode ser que eles queiram ressuscitar os seus Bascos das Gamas, matando o franquismo.

          Dolores e seu filho viveram em São Paulo por quase dez anos, depois vieram para a Bahia viver junto da maior colônia espanhola no Brasil. Ela foi envelhecendo com uma vida milionária, financiando a vida noturna desregrada de Juan, que, aliás, fez muito bom jus à história do seu onomástico. E por isso veio parar no município de Valente onde se tornou próspero comerciante e chefe de prole abastada. Quando o general português Antônio de Espíndola publicou a obra Portugal e o Futuro, Dolores estava quase paralítica, mesmo assim, contra a vontade do filho e dos netos, decidiu viajar para Lisboa a fim de revelar a história  que Portugal desconhece; porém; morreu de infarto fulminante em uma Sala Vip do Aeroporto Dois de Julho em Salvador, minutos antes de embarcar para a Europa.

          Passados alguns anos, tendo muito expandido os seus negócios pela Região Sisaleira, o empresário Juan Ignácio recebeu uma comitiva de investidores sevilhanos, interessados em negócios de caprinocultura no semiárido baiano, e quando erguia em brinde o cálice de vinho pontificou:

          – Eu quero que os senhores proclamem na Espanha que no dia em que eu descer ao sepulcro levarei comigo a parte mais oculta da História daquele país.


                                          para Mariana Carneiro, José Raimundo, Anselmo e Marilu


                                                       Serrinha, 19 de julho de 2005.


     *Professor de Literatura Brasileira no Departamento de Educação – CAMPUS XIV da Universidade do Estado da Bahia –        UNEB, em Conceição do Coité.

Nenhum comentário

Tecnologia do Blogger.