Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

CORAÇÕES DE CRACK

CORAÇÕES DE CRACK por José Plínio de Oliveira*



 

               Nos últimos tempos, o noticiário jornalístico vem informando que a Egrégia Corte de Justiça da República Federativa do Brasil promulgou importante decisão no sentido de que pessoas sem antecedentes criminais, mas presas em flagrante de delito portando quantidades de drogas que poderiam incorrer em prática de narcotráfico não sejam mais criminalizadas. Essa importante promulgação do STF, além de aliviar os ônus jurídicos que incidem sobre grandes demandas de indivíduos que se envolvem involuntariamente com drogas por vários motivos – inclusive pelos condicionamentos impostos pela sociedade conservadora e reacionária –, também é um golpe mortal na Indústria de Flagrantes forjados por agentes policiais corruptos para praticar extorsões contra traficantes, vendedores de drogas, dependentes químicos e até familiares daquelas vítimas; muitas vezes apropriando-se de forma criminosa de armas e drogas apreendidas com meliantes, para repassá-las a facções rivais. Dessa forma, convém pensar, se a justiça brasileira vai beneficiar narcotraficantes primários, e deve ser muito justo fazê-lo, não seria o caso de – também – beneficiar agentes policiais que incorrem em práticas de corrupções em caráter de primariedade? Até serem devidamente reeducados pelo Estado? Porque em se tratando do Crime Oficial no Brasil, o buraco é mais embaixo:
               Considerando serem as práticas de corrupções e de crimes bárbaros, e covardes assaz corriqueiras na história policial do Brasil, conforme tive a infelicidade de comprovar in loco no exercício da função policial militar no Estado Rio de Janeiro, principalmente na região da Baixada Fluminense onde servi por algum tempo. Convém refletir que em toda a face do Planeta Terra é impossível um ser mortal testemunhar crimes de tamanha barbárie, covardia, truculência e ignomínia como aqueles perpetrados pela Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro na Baixada Fluminense. O tempo em que trabalhei naquele contexto deixou a minha alma marcada para sempre, em consequência, cheguei a adoecer gravemente, inclusive. Nunca mais o indivíduo esquece o que presenciou, a ponto de exercer esforços mentais hercúleos para não relembrar. Eu explico-me:
               Nascido no âmbito da Sociedade dos Vaqueiros do Sertão da Bahia. Com muita Honra! Em uma fazenda de gado no meio da caatinga, de propriedade de avó fazendeiro, vaqueiro, boiadeiro, criador de gados e negociante; a minha formação inicial foi marcada por códigos rigorosíssimos, porque na Sociedade dos Vaqueiros as crenças, os mitos, os valores éticos, religiosos, morais, espirituais, fraternais, pacíficos e solidários são superestruturas densas e inabaláveis como “o Monte de Sião”. Marcam para sempre a alma do indivíduo. Agora, imagine um indivíduo com essa formação familiar de resistente solidez cultural indo parar no serviço público do Rio de Janeiro, principalmente no ambiente da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro onde se praticam impunimente toda sorte de delitos hediondos, execráveis, repugnantes e covardes. Servi inicialmente no centro da cidade do Rio de Janeiro, depois na Zona Sul daquela grande cidade e, por último, em Queimados na Baixada Fluminense onde tive que ser reformado porque a minha saúde chegou à debilidade extrema em consequência das experiências relatadas nestes termos. Todavia, apesar de todas as desgraças, as experiências obtidas tanto em Queimados quanto na Zona Sul e centro do Rio de Janeiro – onde eu havia trabalhado antes – proporcionaram grande aprendizagem. Principalmente, a natureza do trabalho policial militar na noite carioca.
               Eu vi a noite pelo avesso da noite na Central do Brasil, no Mangue, na Praça Tiradentes, na Cinelândia, no entorno do Bar Amarelinho, no Passeio Público, na Praça Quinze, na Praça Mauá, nos antros desregrados de Copacabana, de Ipanema e do Leblon. Aqui não se trata de um discurso moral, mas amoral, porque eu vi a noite da grande cidade com o olhar ingênuo de um Vaqueiro, de um Caatingueiro. Não de um policial. Creio que um olhar ingênuo como de criança. Aliás, o carioca costuma dizer que a noite é uma criança. Talvez se pretenda dizer que na escuridão do útero da cidade, aparentemente, a vida na noite é mais ingênua. Entretanto, aquela noite trouxe-me a lume as profundezas do caráter e das características intrínsecas da sociedade aristocrática, dominante, burguesa e elitista do Rio de Janeiro. Agora, mediante uma profunda e exaustiva reflexão caatingueira, quer dizer, pensando agora de dentro das Caatingas do Sertão de Canudos chego ao convencimento de que não há asno, jumento por mais descomunal que seja, que satisfaça as taras de uma celebridade, uma patricinha, e um homossexual multimilionário da Zona Sul do Rio de Janeiro. Neste sentido, a Baixada Fluminense é a base de sustentação dos serviços básicos que atendem às expectativas extravagantes daquela sociedade; ou seja; o apoio logístico da ostentação estética que possibilita os desregramentos sem limites. Dessa forma, causava-me espécie a constatação de que homossexuais da alta sociedade carioca e também brasileira, e até estrangeira tinham preferências insaciáveis por garotos de programa negros e pobres que procediam da Baixada Fluminense para “ganhar a vida”, negociando programas sexuais nas noites do Passeio Público, da Cinelândia, das proximidades do Bar Amarelinho e do Hotel Serrador. Jovens profissionais do sexo que sustentavam suas famílias na Baixada Fluminense com o dinheiro que ganhavam na noite do Rio de Janeiro. E ninguém estuda cientificamente essa realidade! Muitos dos companheiros policiais militares que tive naquela Baixada tiveram experiências concretas na vida noturna carioca para sobreviver.   
               Não tenho a intenção de profligar a humanidade da Baixada Fluminense que prezo muitíssimo, do fundo do meu coração caatingueiro mesmo, por razões da mais elevada Fraternidade Cristã, todavia, a bem da verdade, com raríssimas exceções, tive como companheiros de trabalho naquela parte do Rio de Janeiro marginais da mais baixa índole e mais elevada periculosidade, explorados desde muito jovens nos ambientes promíscuos da noite carioca à subordinação insana sob a égide das hostes do Poder Dominante do Estado de Direito, a serviço da Polícia Militar; para execuções de ações criminosas. Para que se tenha uma pálida ideia, o oficial chefe do serviço de investigações sigilosas, a chamada P/2, que de acordo com as prescrições institucionais – devia empenhar-se no combate ao narcotráfico comum, entre outros crimes – era membro atuante de uma facção do narcotráfico internacional, ligada ao indivíduo Toninho Turco. Quando esse indivíduo foi morto pela Polícia Federal, o referido oficial PM desertou da corporação e evadiu-se para o exterior. Portanto, para a sociedade civil organizada de modo geral é impossível presumir a dimensão das atrocidades hediondas perpetradas por aqueles agentes públicos nos âmbitos de uma instituição policial militar, e que agem sob o manto protetor da Lei e a serviço do CRIME ORGANIZADO OFICIAL. Daí se pode depreender que dificilmente o narcotráfico comum contemporâneo praticará as barbáries crudelíssimas cometidas por aqueles policiais militares lotados na Baixada Fluminense, salvo raríssimas exceções, utilizando-se de recursos bélicos, equipamentos e apoio logístico do próprio Estado. A propósito, lembro-me ainda de que sob ordens do Estado participei, integrando a tropa com que servia, de um “treinamento policial militar” em um campo clandestino denominado Sítio do Edinho, situado no meio rural de Queimados e destinado a adestramento de mercenários a serviço do Narcotráfico Internacional e do CRIME ORGANIZADO OFICIAL baseado no Rio de Janeiro. Naquele “adestramento” condicionou-se muito empregos de materiais radioativos alternativos em ações nefastas tanto de interesse do Narcotráfico quanto do CRIME OFICIAL. Naquele tempo eu estava iniciando os estudos superiores em uma Faculdade, portanto, tinha noções dos riscos iminentes que emergiam daquelas linguagens macabras. Ah! A Educação!!! Algum tempo depois ocorreu o lamentável episódio de Goiânia, então foi possível refletir mais profundamente sobre as consequências drásticas das ações preconizadas por aquele “treinamento” tático. Relatei esses fatos durante anos a Autoridades Constituídas da República Federativa do Brasil. E daí? Imagine um petardo contendo seiscentos gramas de CESIUM-137, por exemplo, detonando em uma grande cidade brasileira tal como a quadrilha de “instrutores” preconizava? QUE DEUS NOS LIVRE E GUARDE!!! Como se pronuncia e se acredita nos âmagos da Sociedade dos Vaqueiros do Sertão de Canudos. Era o que eu pensava naquele momento, por isso a minha saúde sofreu um verdadeiro abalo sísmico. Logo, em consequência do estado de saúde em que me achava e da indignação explícita contra aquela súcia de bandidos oficiais chequei a cometer atos patológicos de insubordinação no âmbito da própria caserna; o que é perigosíssimo sejam quais forem as causas e considerado como crime imperdoável nos ambientes da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro; porque, de acordo com a leitura feita por aquela corporação, nesse caso, o subalterno contraria o chamado Regulamento Disciplinar da Polícia Militar, o famigerado RDPM; uma espécie de Lei Maior, Carta Magna da Polícia Militar, instrumento de fácil manipulação delituosa para o oficialato corrupto e leviano.
               Em favor da verdade, o RDPM é o instrumento jurídico mais sórdido, delituoso e covarde, manipulado pelo CRIME ORGANIZADO OFICIAL, inclusive para achacar, explorar, assediar, extorquir e perseguir o pessoal subalterno da Polícia Militar. Portanto, de posse daquele instrumento, os superiores hierárquicos forjam as chamadas transgressões da disciplina para extorquir dinheiro dos soldados, para não aplicar-lhes punições, prisões ou detenções. Então, coagidos pela opressão implacável e não tendo como pagar propinas a seus superiores hierárquicos com os salários miseráveis que percebem, os soldados passam a achacar e praticamente a roubar e a assaltar os cidadãos comuns. Daí as culturas de promiscuidades e cumplicidades de policiais militares com traficantes de drogas, contraventores do jogo-do-bicho, ladrões, assaltantes, contrabandistas e outros meliantes podendo até virem a estabelecer relações hediondas para facilidades de acessos a substâncias explosivas por parte de ladrões de banco e radioativas por parte de terroristas. Tudo visando a disporem de recursos financeiros, para pagarem propinas a seus superiores hierárquicos na caserna, dessa forma, atenuando as perseguições que lhe são impostas ou obtendo privilégios em folgas e escalas de serviços lucrativos. Na prática, também, o RDPM tem a peculiaridade de estabelecer o ódio mortal da parte da soldadesca oprimida para com os oficiais opressores. Além de tudo, é o mecanismo de que se vale o Estado de Direito para trucidar indivíduos subordinados que se insurgem contra aquele sistema nefando, chegando até a assassiná-los sob a proteção obscura dos muros indevassáveis dos quartéis, e até mesmo exterminando familiares das vítimas subalternas daquele sistema troglodita. Foi o meu caso: indignados com as minhas atitudes de insubordinação doentia, porque eu me achava gravemente enfermo, oficiais bandidos planejaram me assassinar porque eu tinha conhecimento detalhado das ações criminosas daqueles meliantes fardados. Trabalhando na sala de operações daquela organização policial militar – a então 2ª CIPM – onde eram controlados deslocamentos de viaturas, operações policiais, recebimentos de mensagens confidencias e informações, na prática, eu dispunha de um cabedal de conhecimentos dos crimes praticados por aquela quadrilha oficial, a saber: tráfico de drogas, assassinatos de marginais comuns para subtrair-lhes produtos de roubos e assaltos ou concorrentes no tráfico de drogas, sequestros, ocultações de cadáveres, extermínios, chacinas e etc. O plano do meu assassinato vasou através de colegas de minha confiança e de minhas excelentes relações de amizade, então eu desertei do quartel e procurei os meus direitos humanos. Foi uma vida extremamente sofrida!!!
               Buscar Direitos Humanos na situação em que me encontrava e ainda mais no Brasil é uma tarefa árdua, muitíssimo árdua, porque aí o indivíduo se defronta com o caráter deplorável, abjeto e repugnante das Leis brasileiras, fora dos antros delituosos dos quartéis. Portanto, nos espaços burocráticos dos serviços públicos civis a podridão da engrenagem burocrática e a prostituição da aparelhagem ideológica do Estado revelam uma face de Brasil que, embora presumida, é pouco conhecida pela população trabalhadora e contribuinte. Corrupções, fraudes, falsificações de documentos, estelionatos, extorsões, achaques e todas as formas de desgraças que se podem impor a um servidor que o Estado marca com o estigma de subordinado. Nesses casos, não há Corte Suprema de Justiça do Brasil que proclame libertação para o servidor do Estado oprimido e execrado, a exemplo do que pode proclamar em favor de traficantes de drogas primários. Além disso, os operadores corruptos das burocracias públicas sabem que o policial militar está sujeito aos ônus do RDPM e por isso lhe impõem todas as formas de dificuldades para auferirem vantagens financeiras ilícitas.
               Na verdade, o conceito de subordinado ou subalterno segundo a ótica do RDPM não é o de um agente da segurança pública, de um servidor do Estado, mas de um mentecapto, de um instrumento acéfalo e manipulável, a serviço dos interesses das oligarquias dominantes e do CRIME ORGANIZADO OFICIAL. Por isto, a estupidez, a brutalidade grotesca e a marginalização frequentes daquela categoria de servidores militares do Estado é máxima do conhecimento público.  Há casos, e não são poucos, de que o chamado RDPM ultrapassa as fronteiras da corporação policial militar para exterminar qualquer cidadão trabalhador que se atreva a contrariar os interesses do CRIME ORGANIZADO OFICIAL. Foi o caso de um Juiz de Direito da Comarca de Três Rios, assassinado de forma covarde no entorno daquela época. Pessoalmente, até agora não sei como consegui sobreviver, somente tenho condições de atribuir a Forças Espirituais. E se a minha história for cientificamente estudada no contexto histórico da Polícia Militar do Estado do Rio de Janeiro, por especialista não comprometido com a corrupção, com o Narcotráfico Oficial, com a pedofilia, com a promiscuidade homossexual e com o próprio CRIME OFICIAL pode estarrecer a sociedade contemporânea. Eu, pessoalmente, embora me esforce para não relembrar aquela história, até o presente fico estarrecido com a memória daqueles fatos. Mas, não obstante, Eu vi, eu estive lá, eu dou testemunho. Quando não existirem mais olhos para ver, eu estarei olhando.
               Neste ponto, é imprescindível deixar ainda mais óbvio que eu sou originário da Sociedade dos Vaqueiros da região Caatingueira do Estado da Bahia. Não é mérito, é Graça. Portanto, sou um Vaqueiro até a escuma do bofe! É esta condição que me obriga agora a realizar uma profunda arqueologia da memória, visando a alertar a sociedade brasileira para os gravíssimos riscos que ela pode correr em face dos avanços sofisticados, tecnológicos e hediondos da escalada da violência neste contexto histórico. É imprescindível pensar. Porque o Vaqueiro é, antes de tudo, um pensador e defensor inveterado da PAZ PROFUNDA no seio da Humanidade.
               Pensar a Humanidade, reitero, implica estar atento à realidade concreta que nos rodeia enquanto sociedade humana. Em dimensões mais globais, estamos vivendo uma era de reconhecida promiscuidade radioativa, inclusive de desavenças e ameaças mútuas entre países ditos civilizados; membros da ONU. Vivemos em uma era de Estado Islâmico, de Al Qaeda, de atentados terroristas, de uma França assolada no dia em que se comemora uma das datas mais importantes, não somente para a própria França, mas para toda a Humanidade Ocidental. Em termos de Sertão da Bahia, apreensões de materiais explosivos de alto poder de destruição e prisões de responsáveis têm se tornado banais, assim como detonações quase diárias de agências bancárias e caixas eletrônicos, com requintes de atentados terroristas. Nas últimas horas foram apreendidos 175 kg de explosivos de várias modalidades e também dispositivos técnicos de deflagração daqueles materiais letais na cidade de Santa Luz, no Semiárido Baiano, e em Barreiras no Oeste baiano o funcionário de uma agência bancária foi transformado em homem-bomba. Tudo no dia em que o Ocidente Civilizado comemora o aniversário da Queda da Bastilha. O que está ocorrendo no mundo?
                Em termos de Brasil, de modo geral, as instituições nacionais se acham erodidas, deterioradas, desacreditadas perante a sociedade civil. O descrédito e a depravação do caráter das instituições oficiais do Brasil chega aqui às massas sertanejas nos espaços públicos, nas feiras livres, nos bares, nos prostíbulos, nos submundos das periferias miseráveis e nos guetos oprimidos dos marginalizados, onde não é realizado nenhum trabalho de resgate da dignidade da pessoa humana em situação de risco. O que é muito perigoso. Nestes espaços humanos, os atores sociais fazem suas leituras possíveis com toda a sua transversalidade sobre este momento trágico que se abate sobre o Brasil. Discursos sobre operações da Policia Federal envolvendo as elites empresariais e políticas, investigações da Força Tarefa e da LAVA-JATO desabam sobre o imaginário do grande público oprimido como estímulos ao crime e exemplos de relações de facções bem estruturadas do CRIME ORGANIZADO OFICIAL DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, com direitos a privilégios extravagantes e impunidades absolutas. Portanto, a classe política brasileira se acha extremamente desmoralizada com tantas notícias sobre corrupções abomináveis, atentados contra a res publica e outros delitos aviltantes praticados contra a sociedade. O que é mais aviltante ainda para as grandes massas oprimidas: líderes do parlamento brasileiro, respondendo a vários processos criminais, mas com os benefícios de foro privilegiado, expondo caras cínicas e repugnantes perante câmeras de TV para vociferarem discursos em defesa dos interesses do Brasil, moralidades públicas e direitos da sociedade. É ridículo e deprimente! Será que esses homens públicos cínicos e levianos – com raras exceções – pretendem incitar as classes oprimidas marginalizadas a lançarem mãos de ações desesperadas de atentados terroristas contra as próprias Bastilhas do Poderes Constituídos da República Federativa do Brasil, a exemplo do que vem ocorrendo em outros países do mundo? DEUS NOS LIVRE E GUARDE! Será que a classe política do Brasil poderia tomar consciência mínima da difícil realidade que o povo brasileiro enfrenta nesta era crucial de tantas incertezas e inseguranças?  Será que a defesa dos interesses do Brasil que os seus políticos começam a vociferar agora, também incluem os interesses de subsistências básicas dos trabalhadores desempregados, das crianças abandonadas, dos doentes químicos, das mães solteiras de menores infratores, das pessoas trucidadas pela escalada da violência? Porque a escalda da violência incontrolável e do narcotráfico podem ser formas de um terrorismo silencioso que a autoridade não consegue impor combate efetivo e, por isso, milhares de vidas humanas são sacrificadas, até pela desconfiança pública, impotência e ingerência do aparelho repressivo do Estado de Direito.                  
                 Talvez o mais difícil no “combate ao narcotráfico”, tão propalado por autoridades da área da segurança pública, seja o modelo de polícia do Brasil, baseado na militarização arcaica, covarde, ineficiente e corrupta, em uma esfera, e na cartoriedade meramente burocrática e facilmente corruptível, e manipulável em outra esfera. Nesta perspectiva de estudo, pode até ser que a Corte Suprema de Justiça foi decisivamente iconoclasta, fazendo cair uma Bastilha aparentemente inabalável. A corrupção no Brasil leva a este convencimento. E pode ser que a Egrégia Corte não esteja abrindo precedentes para a legalização indiscriminada das drogas. Quem é que sabe? A menos que os membros do Poder Judiciário brasileiro tenham corações de crack. Não obstante, a decisão anunciada pode até ser uma forma de tentativa de erradicação da Corrupção Policial Institucionalizada, que favorece sobremaneira os interesses do narcotráfico que vem aterrorizando este país e destruindo milhares vidas e de famílias humanas, na maioria dos casos de forma crudelíssima. Então carece de a maior instância do Poder Judiciário Brasileiro demolir outra grande Bastilha, proclamando e fazendo cumprir sentença pétrea e improcrastinável de valorização da instituição policial e das carreiras funcionais dos seus agentes, condição sine qua non para o combate efetivo às potências do Crime Organizado. Se é que os Poderes Constituídos da República Federativa do Brasil têm, de fato, interesse na erradicação da Cultura da Violência Hedionda.
               Na proporção em que a Cultura da Violência Hedionda avança, e os métodos e as formas de atentados e execuções de vítimas podem ser cada vez mais sofisticados, incluindo práticas de degolas e demais atrocidades crudelíssimas, como a sociedade civilizada pode pensar agora os empregos de instrumentos, materiais e substâncias de elevado potencial letal, possíveis de utilizações em ações criminosas, inclusive materiais radioativos alternativos? Qual a garantia que a autoridade constituída pode oferecer à sociedade trabalhadora, pacífica e ordeira de que – por exemplo – uma quadrilha especializada em explosões de agências bancárias e caixas eletrônicos não venha a utilizar por erro fortuito ou instinto de extrema crueldade explosivos de maior poder de destruição em nossas pequenas cidades sertanejas? Quais as medidas de segurança efetiva que o Estado de Direito pode adotar para suprimir privilégios abusivos concedidos a bandidos da altíssima periculosidade, principalmente visando à proteção de crianças, adolescentes e jovens em situações de riscos, assim com a mulheres e idosos?
               Sempre que um criminoso de altíssima periculosidade é preso e apresentado à imprensa, também é praxe dos meios de comunicação noticiar que ele tem várias passagens pela polícia, responde a inúmeros processos na justiça, já recebeu algumas condenações, mas, entretanto, continua nos âmbitos da sociedade, ameaçando-a, extorquindo-a, oprimindo-a, violentando-a e etc., e ainda dando prossecução a outras tantas das suas ações macabras sem nenhum temor da Lei e muito menos de autoridade alguma, porque se o tivesse não praticaria mais nenhum delito. Isto é, o jogo de “a polícia prende e a justiça solta”. Muitas vezes chega ao conhecimento público de que mesmo de dentro da prisão detentos costumam mandar exterminar desafetos e fazer ameaças graves a rivais e cidadãos trabalhadores. Em geral ameaças de torturas, mortes, violências sexuais contra mulheres e até crianças. Nessas circunstâncias, o Poder Judiciário aparenta ser absolutamente insensível para com a vida humana. Portanto, beneficiado por alvará de soltura – que prefigura um atestado de impunidades absolutas concedido ao criminoso pelo Poder Judiciário –, quando o criminoso nessas condições volta para a sua comunidade gera uma intranquilidade e uma situação de desassossego sem precedentes; o medo, o pavor e o pânico afligem sobremaneira os membros da comunidade ameaçada. Essas realidades não podem ser observadas de dentro dos gabinetes confortáveis e climatizados de magistrados engravatados, mas sentidas na carne pelo agente público da polícia – que não se deixa corromper –, dentro dos labirintos, dos guetos miseráveis, repugnantes e abjetos das periferias violentas. Tive a infelicidade de conhecer essa realidade quando percorri a Baixada Fluminense trabalhando como servidor do Estado do Rio de Janeiro. Naquele contexto de trabalho, os agentes públicos ficavam indignados com tantas “promiscuidades” – esse era o termo corriqueiro lá na Baixada – de alvarás de solturas concedidos a meliantes perigosíssimos. Porém, quando – naqueles casos – a justiça aparentava relações de cumplicidades implícitas com marginais deploráveis, a situação ficava fora de controle e então agiam os grupos de extermínios, Esquadrões da Morte e etc., tão conhecidos da história da violência no Brasil. Acredito que muito da corrupção e muito da marginalização policial, também, procedem dessa realidade.
               Como é possível exercer a função policial com dignidade, integridade, incolumidade e probidade quando a Lei é prostituída de forma depravada, desautorizando, desacreditando e expondo à execração pública a instituição policial séria e responsável?
              Será que um magistrado que concede um alvará de soltura a um marginal perigosíssimo, líder ou membro de facção criminosa, acredita que ele volte para a periferia social pobre, determinado a pregar o Evangelho, dedicar-se a obras de caridade, assistir a famílias pobres que tiveram filhos ou filhas exterminados pelo narcotráfico ou fazer campanhas pela construção de uma Cultura da Paz entre os seres humanos no Sertão de Canudos?
               Será que um juiz que manda colocar em liberdade um perigoso marginal, sem nenhuma medida de segurança efetiva, acredita que ele irá regenerar-se porque recebeu reeducação escolar adequada à sua realidade no sistema carcerário brasileiro?             
               A contrapartida para a decisão judicial sábia, inquestionável, insuspeita, equilibrada e confiável seria a Educação Pública de Qualidade, esta consolidaria o trabalho profilático sustentado pelo quadrilátero: Justiça, Cidadania, Educação de Qualidade, Religiosidade. Mas o Estado dito de “Direito” e “Democrático” – até que prove o contrário – não tem interesse na sustentabilidade dessas potencialidades; até por questões demasiado óbvias que serão abordadas em outro trabalho desta natureza. Todavia, as ações de profilaxia e tratamento dos usos de narcóticos e combate a esse comércio não podem vir apenas de iniciativas não confiáveis de algumas instituições do Estado dito de “Direito” e “Democrático” – todos conhecemos o caráter de algumas instituições do Estado, inclusive nas ações de combate ao comércio de narcóticos proibidos por lei –, portanto, é imprescindível que uma nova sociedade civil organizada empenhe-se e engaje-se nas ações concretas de ajuda humanitária aos doentes químicos, principalmente os que desejam libertar-se da dependência – devendo os casos crônicos serem acompanhados pela medicina especializada –; também visando a ações  sociais de erradicação do comércio de drogas; mas que sejam realizadas observando-se os princípios mais estritos de Humanidade. Isto não significa que uma nova sociedade civil organizada tenha que empenhar-se em ações caritativas e assistencialistas. Não! Para resgatar o dependente químico do flagelo da marginalidade, assim como outros sujeitos submersos nesse hemisfério macabro, é bastante somente um mínimo de respeito à dignidade da pessoa humana. Isto não significa onerar a nova sociedade, mas desonerá-la do crime, da violência hedionda, da barbárie, da truculência, da hecatombe caótica, da homofobia, da pedofilia, da violência contra a mulher. Principalmente a mulher mãe solteira de dependente químico. O que não pode ser feito pelo Estado dito de Direito, porque os indivíduos afetados pelo flagelo das drogas e da violência endêmica não acreditam mais no Estado, no seu discurso de direitos humanos, na sua polícia, na sua justiça e na sua aparelhagem ideológica de modo geral. Isto tem se tornado demasiado óbvio nas escutas sensibilizadas dessas vítimas, que a duras penas venho realizando ao longo das minhas peregrinações de estudos exaustivos e leituras de mundo por este imenso Sertão de Canudos, e estudar a realidade humana do oprimido neste Sertão tem uma motivação profunda em face da história dos extermínios, dos massacres, das truculências, dos estupros, das violações, das degolações, das flagelações e dos holocaustos humanos que o governo do Brasil praticou contra trabalhadores e trabalhadoras do meio rural e do campo durante a Guerra de Canudos. Logo neste ponto, convém esclarecer que o meu trabalho não tem e não pode ter nenhuma conotação ou vinculação político-partidária, filosófica, tendenciosa ou religiosa; embora o meu trabalho seja marcado por densa espiritualidade. E no sentido da profunda espiritualidade que me marca, posso afirmar com absoluta convicção que o meu trabalho é humano, demasiado humano como pretende Nietzsche. E quanto a questão político-partidária fico inteiramente à vontade porque depois que voltei a viver e a trabalhar nesta área de influência direta do Sertão de Canudos, testemunhando tantas injustiças, tantos flagelos e tantas formas de violências macabras, passei a anular o meu voto; portanto; a minha ideologia e o meu objeto de estudo é o homem genérico excluído, explorado, expropriado, flagelado e marginalizado que mais do que nunca carece de Humanidade! E Humanidade, se pensada pela nova sociedade civil organizada, é a instância que o Brasil mais tem deplorado e negligenciado ao longo de história.
               A história da violência, da marginalização condicionada, das dependências de narcóticos e outros fatos ocorridos na imensa região do Sertão de Canudos e demais áreas do Semiárido Baiano, vem afetando principalmente as demandas de adolescentes e jovens. O município de Conceição do Coité, por exemplo, tem registrado índices surpreendentes de assassinatos e tentativas de homicídios praticados contra pessoas muito jovens, e no panorama do noticiário do cotidiano quase a totalidade desses crimes tem relações com suspeitas de dívidas de usuários de drogas junto a traficantes. Nesta perspectiva de leitura, imagine-se aqui neste sertão remoto do território baiano o dilema de uma mãe solteira, pobre, trabalhadora, explorada e vilipendiada ao extremo – tenho conversado com muitas mães que vivem essa realidade – que tem um filho dependente químico e, em consequência, menor infrator que rouba em casa e fora dela, é apreendido com frequência pela polícia e conduzido ao Conselho Tutelar que tão somente registra os fatos e na maioria dos casos não tem para onde encaminhá-lo para tratamento especializado; então o devolve para a sua genitora que já não tendo mais condições de cuidar do filho doente e marginalizado deixa-o à mercê da sorte. Portanto, há relatos de que sob domínio da enfermidade o doente químico vai definhando física e psicologicamente, mas procurando consumir drogas com mais intensidade e endividando-se ainda mais com traficantes. Dessa forma, assumindo compromissos de roubar objetos de valor para quitar dívidas contraídas com o narcotráfico, entretanto, não tendo mais forças para fazê-lo, passa a ser ameaçado de morte.
               A iminência da morte trágica para o doente químico ameaçado oprime sobremaneira a mãe pobre. Os companheiros de consumo de drogas passam a transmitir os recados de ameaças de traficantes, tanto para a pobre mãe quanto para o usuário enfermo; aparentemente com um certo prazer sádico. Nessas situações, para as pessoas de periferias sociais procurar a proteção da autoridade policial é inútil. O estigma de ser mãe de um doente químico nesta parte ignota do Sertão da Bahia restringe o direito à cidadania, além de aumentar o medo, o descaso e a indiferença por parte da Autoridade do Estado de Direito. Além do que, a pessoa necessitada de ajuda pode submeter-se a riscos de ameaças, assédios, violações, violências de várias formas, ofensas, humilhações, achaques, extorsões... A realidade humana, por exemplo, da mulher negra, trabalhadora pobre e genitora de usuário de drogas neste Sertão de Canudos é assaz dolorosa.
               Desesperada e sem ajuda da parte dos Poderes Públicos Constituídos, a mãe pobre de doente químico recorre a uma dessas “igrejas evangélicas” de ponta-de-rua onde se promete “milagres” à torta e à direita. A bem da verdade, essas arapucas funcionam à margem das convenções e doutrinas observadas pelas Igrejas Evangélicas sérias, respeitáveis e confiáveis que jamais praticariam esses engodos escusos e abomináveis contra qualquer pessoa humana. Entretanto, nos âmbitos das falsas igrejas evangélicas exigem de uma mãe desesperada e vulnerável que faça “sacrifícios”, isto é, pague propinas a Deus para que Ele liberte o filho das drogas e poupe-lhe a vida ameaçada pelo traficante. De fato, o que fazem as tais “igrejas”, a exemplo da Banda Podre do aparelho repressivo do Estado, é extorquir a pessoa necessitada de ajuda, agravando ainda mais as atrocidades do binômio: narcotráfico/dependência química. Ora, a mãe carente e desesperada recorre ao favor de Deus porque não tem sequer como pagar aos traficantes de drogas que lhe constituem graves ameaças. Há casos de mães que são beneficiárias de programas sociais do governo. Mas, por força das circunstâncias, os benefícios recebidos desses programas terminam sendo utilizados para suprir as necessidades de drogas do dependente químico; chegando a ser insuficientes e, por isso, levando-o a risco de morte. Há muitas situações aqui no Sertão da Bahia que tanto para o doente químico em estado de penúria extrema quanto para a mãe desesperada com ameaças, opressões e repressões frequentes, a morte “é um favor que o traficante faz!”
               Na proporção em que a dor e o desespero vão aumentando, a mãe pobre de um dependente de drogas vai percebendo o coração enrijecer-se e empedrar-se gradativamente, até tornar-se um outro coração de crack. Nesse estágio não é mais possível perceber a dor e, em muitos casos, quando a sua casa é invadida por traficantes que matam o seu filho, dormindo sob efeito de drogas, com requintes de extrema crueldade, a mãe já não consegue verter uma lágrima. “Já esperava pelo ocorrido” como “fato normal”, como direito do traficante. E então são publicados pelas mídias verdadeiros quadros dantescos de cadáveres estilhaçados de tiros e cobertos de sangue em espaços de sub habitações paupérrimas, invadidas e ainda mais danificadas por súcias de homicidas no meio da noite, deixando rastros de tragédias e sintomas de impunidades. Esses quadros em que as redes sociais expõem em tempo real as Estéticas de Tragédias, já não chocam e surpreendem a nossa sociedade sertaneja, e tendem a reforçar o “agrado fácil” da Estética da Recepção dessa sociedade nefasta e sedenta fatos trágicos. Há exceções minguadas, mas, exceções. Todavia, não se pode abdicar da perspectiva histórica de que vivemos no bojo de uma estrutura social egoísta, desumana, perversa, sádica, absolutamente insensível e de caráter torpe para com a miséria do outro, mas que tenta dissimular esse caráter com o cinismo endêmico que lhe serve de máscara e maquiagem, e que estudiosos estrangeiros chegam a confundir com alegria. Que estupidez! Entretanto, por trás dessa falsa alegria, desse pano-de-fundo dilacerado, convém não esquecer que essa sociedade arcaica, conservadora e reacionária foi responsável direta pela história de massacres de povos indígenas e de origem africana. Milhares de homens, mulheres e crianças dos nossos ancestrais indígenas foram trucidados nesta região do sertão baiano – assim como os nossos ancestrais trazidos da África – com requintes da mais perversa e sádica crueldade. Por outro lado, se seguirem os rumos daquela história, os delinquentes contemporâneos comuns que são vítimas da sociedade aristocrática e dominante podem vir a aperfeiçoar os seus métodos de torturas, sevícias, execuções e crueldades extremas para com as suas vítimas pobres, miseráveis e inclusive enfermas, visando a atender as expectativas dessas Estéticas voluptuosas de fatos trágicos; elevando esses holocaustos humanos a espetáculos macabros quer por espírito de emulação, quer por mera ostentação perante a aristocracia dominante, visando a satisfazer as suas taras de crueldade e extrema perversidade. Esta realidade no Nordeste do Brasil é alarmante. Ora, se o doente químico torna-se refém do traficante por relações de dependência, será que o traficante torna-se refém da aristocracia dominante por relações de subserviência, truculência, crueldade e barbárie?
               É imprescindível que a nova sociedade humana do grande Sertão de Canudos comece a pensar de forma mais aprofundada a Construção da Cultura da Paz Solidária que elimine a escalada da violência hedionda em nossa terra e em nosso tempo. A propósito, nos últimos dias, a cidade de Santa Luz aqui na Bahia foi abalada por dois corpos humanos encontrados carbonizados no interior do porta-malas de um automóvel também destruído pelas chamas do sinistro. Um dos corpos já foi identificado como sendo de um professor daquele município, o outro se acha em processo de identificação, mas a comunidade luzense admite tratar-se de outro docente do mesmo município, amigo do que foi identificado e sepultado, que se acha desaparecido desde o dia do episódio. E nas últimas horas a cidade de Riachão do Jacuípe encontra-se muito abalada e consternada com o assassinato de uma professora de escolas daquela região, que foi aluna muito estimada e respeitável do autor deste trabalho, que também se acha com o coração estilhaçado pela morte trágica de uma ex discípula muito querida, que pela grandeza do seu caráter e do seu espírito fraternal deixou uma dor insuportável em nosso coração. A docente foi morta com mais de vinte facadas desferidas pelo seu corpo, deixando ainda o homicida uma faca encravada na região glótica da vítima, segundo o noticiário jornalístico.
               Pensar esses fatos tais como amplamente noticiados não significa manifestar sentimentalismo por sentimentalismo, mas Humanidade, é preciso repetir, e Humanidade é um dom que transcende o mero sentimento de perda para reafirmar uma comum união com a dor do outro. A memória pode apagar o sentimento da perda, mas, entretanto, jamais poderá anular a comunhão da dor, que é muito mais profunda no âmago da alma humana. Neste sentido, a dor é pão. É muito difícil explicar, e nem se deve fazê-lo. Mas, podemos pensar que cada membro da comunidade humana é uma presença única no mundo; e a sua presença no mundo devia ser símbolo de Paz. É o projeto supremo do Criador: cada pessoa humana deve oferecer a Paz como pão em toda a sua plenitude, e dele ter a sua parte na comunhão da Vida. O sentido de ausência interpretado neste Sertão em torno de uma vida perdida em circunstâncias trágicas fere o coração coletivo. Por exemplo, não conhecia pessoalmente os moços professores de Santa Luz, mas imaginá-los possivelmente agonizando, depois de barbaramente torturados e seviciados, dentro de um porta-malas de um automóvel em chamas causa uma dor insuportável, uma dor amargurada porque comungamos uma mesma HUMANIDADE. E no momento em que este texto está sendo produzido, passam a circular notícias de que quatro homicídios acabam de ser cometidos na mesma cidade de Santa Luz, sendo que em um deles o corpo da vítima foi degolado.
               A professora Ienata Rios, da cidade de Riachão do Jacuípe foi minha aluna. Pensá-la indefesa, sendo esfaqueada e esvaindo-se em sangue em sua própria casa, sem nenhum socorro possível é uma grande tragédia. Uma tragédia inexplicável, inaceitável. Pensar ainda que ela e as duas vítimas de Santa Luz dedicavam suas vidas à Educação Escolar, oferecida com pão ao outro, para resgatá-lo da escravidão da ignorância, muitas vezes – talvez – da truculência, da prostituição, da gravidez na infância e na adolescência, do crime, da dependência química, do tráfico de drogas e etc. Quantos discentes foram estimulados e incentivados a viver a plenitude da liberdade e da dignidade da vida por essas almas discentes que partiram de forma tão trágica? Quantas mães desesperadas de dependentes químicos e traficantes de drogas podem ter pedido o pão de uma palavra amiga a esses docentes e foram atendidos? E nós que ficamos neste mundo o que faremos por uma Cultura da Paz em nossa terra que se converta em Pão da Eternidade para essas Almas que foram trucidadas em holocausto trágico? Óbvio que não podemos permitir enquanto sociedade civil organizada que esses fatos sejam triturados nos interstícios fisiológicos da indiferença absoluta por parte das autoridades da Lei.          
               Há ainda as agravantes da indiferença absoluta para com os sofrimentos do outro e o cinismo torpe e endêmico que caracterizam alguns segmentos das sociedades nordestinas contemporâneas. Portanto, o coração da nossa sociedade sertaneja pode estar sendo ainda mais petrificado e absolutamente indiferente para com as tragédias que dilaceram os menos favorecidos; mas, também convém esclarecer a bem da verdade que autoestimas, afetividades, sentimentos, solidariedades, sensibilidades e subjetividades – no sentido guattariano do termo – nos âmbitos das relações humanas das periferias sociais também são inexistentes no sentido em que as Ciências Humanas estudam essas categorias; talvez por isto as intervenções do Estado nos espaços periféricos – quando são realizadas – restringem-se basicamente a questões materiais, como se estas fossem as únicas e exclusivas necessidades das pessoas muito pobres. Portanto, o mais adequado seria da parte dos órgãos do governo não restringir as questões de carências sociais tão somente a ajuda material – é imprescindível fazê-lo – mas também oferecer um sistema de Educação mais abrangente que envolva todas as comunidades e todo o grupo familiar da pessoa em situação de risco. Dessa forma, erradicando as indigências materiais, educacionais, morais, subjetivas e até mesmo espirituais. A propósito, lembro-me de ter sido abordado por uma mãe de família em estado desesperador na cidade de Conceição do Coité, aqui na Bahia. Em um momento de grande atribulação que afligiu aquela senhora, obrigando-a a sair de casa desesperada em busca de pelo menos uma palavra de conforto espiritual. Revelou-me aquela senhora ser mãe de cinco filhos, três dos quais usuários de crack, além de ser esposa de um doente alcoólico. Ela era beneficiária de programas sociais do governo mas carecia de uma palavra de fraternidade para suportar os ônus dolorosos que a afligiam, por negligências e injustiças praticadas pelos Poderes Públicos Constituídos. Havia procurado ajuda especializada para a sua família, e nós sabemos como é difícil alcança-la da parte dos poderes públicos aqui neste sertão indiferente e implacável. Coloquei-me a sua disposição para ouvi-la, era o máximo que eu podia fazer naquele momento e ela abriu o coração para exteriorizar todos os ônus dolorosos que afligem a uma esposa de doente alcoólico e genitora de dependentes químicos. Embora, eu tenha experiências de escutas de situações semelhantes, aquele dia a minha alma foi atingida no âmago da dor. Na verdade, a dor do outro compartilhada no espírito de fraternidade – independente do discurso religioso – nos convence de que compartilhamos uma humanidade comum que nos motiva a encontrar razões para viver, vivenciando a realidade do outro. Todavia, nessas ocasiões aqui no sertão da Bahia, é inútil procurar ajuda em órgãos de serviços públicos para pessoas pobres, necessitadas e em situações de riscos. Inclusive riscos de incorrer em práticas de delitos por falta de apoio social. Todas as formas de dificuldades são enfrentadas: indiferença, falta de vontade, incompetências, desídias, engodos, contradições e descalabros.
               Em geral, o preposto de município que atua na área social tem uma relação de sub emprego com o órgão público, exercendo a função não por formação específica na a área de serviço social, por exemplo, mas por relações eleitoreiras. Passa meses sem perceber salários, e se no final do mandato o gestor municipal perde as eleições, o preposto fica sem as remunerações devidas pelo poder público de seis a oito meses. Portanto, o atendimento prestado por aquele tipo de servidor público é de péssima qualidade: ele vai encaminhando o contribuinte interessado em atendimento de órgão para órgão e nenhum daqueles consegue prestar o encaminhamento adequado. O cidadão se depara com um emaranhado de (des)informações, negligências, ingerências, injustiças. Então, entre outras causas, fica muito fácil entender porque tantos sujeitos em situações de exclusões e opressões são condicionados à delinquência e à dependência química.             
               Historicamente, negligências e injustiças deploráveis para com a Vida e os Direitos da Pessoa Humana no Brasil têm tudo a ver com o próprio caráter de algumas instituições oficiais que podem – quem sabe – ser a forma mais incisiva de estímulo ao crime e às demais situações de degradação do caráter do cidadão oprimido e marginalizado; mormente o dependente químico. Assim como é em cima, é embaixo. Esta é uma Lei Espiritual irrevogável, imparcial e implacável que transcende ao Tempo, à História e ao próprio Universo; que poder humano poderia lhe interpor causa sem sofrer efeito imediato? Se o topo do poder é podre e execrável, as extremidades sociais refletem as consequências.
                                                                    
                                                                     
                                            Serrinha, 14 de julho de 2016
              (Dia da Queda da Bastilha)



*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA. 

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