SEIS E MEIA
SEIS E MEIA
por José Plínio de Oliveira*
Diogo somente vinha antes à cidade do Rio de Janeiro para ajudar o pai nos serviços de pedreiro. Chegavam de manhã cedo, entravam para o batente e no final da tarde saíam às pressas para a estação, pensando encontrar lugar no trem superlotado. Agora, ali ao lado da banca de jornal é que ele passava a ter noção mais clara dos espaços da grande cidade: o formigueiro de gente, o rio de automóveis, o espetáculo de luzes de neon, aquele teatro majestoso com aquela música bonita que se ouvia de fora, a que jamais poderia comparar-se o Clube Guarany de Queimados, com aqueles pagodes vagabundos e aqueles bailes fanks infernais. A galera transando lá dentro no meio de todo mundo, fumando maconha, cheirando pó, tomando pico, brigando, matando e a polícia batendo, roubando, tomando dinheiro dos caras para não levar em cana. Mas, no Rio não. Era diferente. O pessoal sabia se comportar e batia tanta palma para a cantora que parecia que o show era do lado de fora.
O Projeto Seis e Meia foi a mais importante iniciativa cultural do Rio de Janeiro dos anos 70; oferecendo ao grande público do subúrbio carioca e da Baixada Fluminense que trabalhava na Zona Sul e no Centro da Cidade a oportunidade assistir a apresentações de grandes eventos musicais a custo simbólico, hoje equivalente a em torno de um real o ingresso. O Estado subsidiava. Dessa forma, a cabeça que pensou o Seis e Meia era muito iluminada também no sentido de favorecer as relações entre a arte musical de qualidade e o grande público periférico do Rio de Janeiro. Além disso, solucionava o grave problema da mobilidade urbana com o transporte caótico na Hora do Rush, diminuindo a intensa e intempestiva circulação acelerada de pessoas tanto na gare da Estação Pedro II quanto nos pontos de ônibus da Presidente Vargas, porque o João Caetano “segurava” uma massa considerável que só retornaria para casa um pouco mais tarde, inundando a Tiradentes do Café Nathalia à escadaria do teatro. Portanto, quem não conseguia adentrar ao espaço superlotado ouvia e aplaudia do lado de fora; bebendo, batendo papo, paquerando, “jogando conversa fora”, discutindo música, política, futebol, telenovela, sexo e etc. Alguns nem retornavam para casa em dias de apresentações de artistas preferidos, ali mesmo arrumava uma garota e ia “dormir” em um hotel barato da Avenida Passos, da Frei Caneca ou da Central do Brasil. Como foi possível que na era mais cruel e truculenta do regime militar o Rio tenha reinventado a praça pública como espaço do povo? Quando quase tudo era proibido ao povo? Parece que a Arte Popular mais do gosto das massas está acima de toda contingência histórica. Era um tempo curioso aquele. Porque em outros momentos da noite carioca ouvíamos os acordes estridentes da Orquestra Tabajara de Severino Araújo, por exemplo, tocando em uma Gafieira ali mesmo naquele contexto do Centro da Cidade quando sabíamos que ali muito próximo, nas dependências do Palácio do Exército, prisioneiros e prisioneiras políticas agonizavam sob torturas deploráveis, ignoradas por um público boêmio indiferente. E pensar ainda que a música noturna das noites do Rio servia de pano de fundo para as ações trogloditas do Crime Organizado Oficial da República Federativa do Brasil. Talvez por isso, foram exceções as investidas militares contra casas de shows; geralmente frequentadas por um público mais intelectual e, portanto, considerado subversivo. No entanto, os espaços boêmios frequentados por pessoas comuns contavam com a simpatia e a tolerância do poder militar. Até porque, o boêmio inveterado, o alcoólatra, o malandro, a prostituta, o gigolô, o marginal e o garoto de programa são alheios a toda e qualquer ideologia política. É óbvio que a plateia do Seis e Meia, na sua grande maioria, era constituída por trabalhadores pobres, o que levava o governo militar a confundi-la com a boemia, e por aquela convicção não a atormentava diretamente. Além de tudo, a música boêmia, para o regime militar, não era considerada infensa ou subversiva. Portanto, músicas de Noel Rosa, Adelino Moreira, Nelson Cavaquinho, Cartola, Dona Ivone Lara, Nelson Sargento, Noca da Portela, Candeia, Paulinho da Viola, Ismael Silva e tantos outros menestréis que ascenderam ao sucesso em plena vigência do regime militar. O certo é que aquele regime nefasto muito se aproveitou da rica produção musical do artista do povo para ensurdecer a população perante os gemidos e gritos lancinantes que ecoavam dos porões da morte, nos labirintos dos quartéis. O mais curioso é que a música preferida pela boemia era a mesma que agradava aos torturadores, assassinos, estupradores, ladrões, facínoras, e trogloditas que atuavam nos antros de repressão do governo militar. Naquela época, a música Foi Um Rio Que Passou Em Minha Vida, de Paulinho da Viola, que gerou uma espécie de febre no Rio de Janeiro, também passou a ser cantada nos quartéis como se fosse um hino ou uma canção militar. Causava perplexidade ouvir nos pátios dos quartéis e nos seus espaços mais recônditos – inclusive os destinados a torturas, suplícios e execuções – os indivíduos balbuciando sem parar aquela música de Paulinho da Viola. Gorilas hediondos circulavam cantarolando por toda a caserna como se levassem dentro de si um gravador que nunca desligava. É também daquela era Eu te Amo Meu Brasil, interpretada por Dom e Ravel. Aquilo foi uma desgraça! Porque os militares usaram e abusaram como condicionamento ideológico e infectaram as massas de forma epidêmica, inventando um slogan que dizia, BRASIL: AME-O OU DEIXE-O! Naquele contexto, o jornal O Pasquim divulgou uma charge em que se via o mesmo slogan imposto pelos militares, uma aeronave de proporções espaciais, semelhante à Arca de Noé, engolindo uma fila interminável de brasileiros e uma frase embaixo: O ÚLTIMO A SAIR, DESLIGUE A LUZ DO AEROPORTO!
– Chegou que hora cara?
– Seis e meia.
– Vamos embora que ainda tenho muito rolé esta noite, sim!
O carro de Neguinho estava estacionado perto do Largo de São Francisco. Diogo ficou atônico, quando viu o amigo abrir as portas de um Impala do ano, mandando-o tomar lugar ao seu lado e ainda o guardador de automóveis, orientando a saída do veículo, chamando Neguinho de Doutor, ele não entendeu nada. Depois, quando o automóvel entrou pela Avenida Rio Branco, avançou pelo Aterro do Flamengo e tomou o rumo da Zona Sul ficou ainda mais confuso. Neguinho percebeu:
– Eu moro no Leblon. Vou deixar você em casa, depois vou apanhar uma guria e deixar lá na Estrada das Canoas na mansão de uma fanchoni cheia da grana. Uma cantora baiana que está se apresentando no Canecão e quer chupar uma buceta ainda hoje. Ela trouxe uma mina da Bahia pra morar com ela. Cara! Bancava a Mina de tudo... Mina esperta! Lá das quebradas do Recôncavo Baiano, de Santo Amaro da Purificação. A mina tinha um caso com um samango aqui do Rio há anos. Aí ela roubou a fanchoni, pegou uma quantia elevada em dinheiro, joias caríssimas, a porra toda e foi morar com o cara em Parati. Aí a fanchoni veio cair na minha mão. Agora ela só quer garota selecionada para fazer programa sem compromisso permanente. A minha vida é essa cara... É agenciar as taras dessa gente. Vida dura cara!
– Mas arruma os capeta, sim?
– Tem que ser, cara!... Arrumo garota pra transar com madame, arrumo bofe pra veado milionário! E tu achas que eu posso dar mole? Uma porra! Bacana tem é que se foder na minha mão. Sim! Eu arrebento mesmo. Tem que dá pá mão aqui! Eu vejo o perrengue do teu povo, eu devo muitíssimo a tua família, sim! Fui servente de pedreiro para teu pai, grande mestre. Ele dividia a marmita comigo, porque a miséria em que eu vivia era tão grande que nem marmita eu podia levar para o trabalho, mas um dia eu falei para mim mesmo, sim, que eu ia sair daquela pobreza desgraçada. Eu nunca vou me esquecer do apoio que a tua família me deu. Dona Mirinha me deu o maior apoio; tua mãe é mesmo que ser minha mãe. Nunca vou me esquecer... Cheguei a conhecer o teu bisavô, cara! Velhinho, com mais de cem anos. Ele veio da Guerra de Canudos, ele era daquele povo, veio moleque, trazido por um soldado de Nova Iguaçu que foi para aquela guerra. Eu morava com a minha mãe e meus irmãos na Estrada da Palhada; dia de domingo à tarde meu povo ia para a Assembleia de Deus e eu ia a pé para a Vila Americana, pra a casa do teu pai. Quando eu ia chegando, logo avistava o velhinho sentado embaixo de uma árvore que tinha do lado da casa; passava a tarde inteira ali naquele cantinho. No início da noite, Dona Mirinha ia busca-lo: “Vô, venha pra dentro de casa que já tá esfriando”. Eu dormia lá na casa de vocês; a gente saía segunda-feira de madrugada no primeiro busu que vinha de Cabuçu para Queimados, superlotado. Chegava na estação de Queimados e pegava o Japeri ou o Paracambi mais lotado ainda para sofrer até a Central do Brasil. Tinha vez que uma nega encostava a bunda no me pau e deixava tirar sarro até na Central; mas quando descia do trem e eu ia tentar levar um papo para marcar uma parada, a nega saía batida. Eu ficava no sufoco. Então a gente ficava na obra a semana toda e só voltava para casa na sexta-feira.
– Meu pai ainda se lembra muito daquele tempo, ele gosta muito de você.
O carro entrou na Borges de Medeiros e logo deslizou para a garagem subterrânea do edifício. Os amigos tomaram o elevador social e subiram para a cobertura em que Neguinho residia. Diogo estava embevecido com tanto luxo e requinte, foi levado para a suíte de hóspede que passaria a ocupar como se estivesse vivendo um grande sonho. Neguinho percebeu:
– Tu vais conquistar coisas muito melhores do que isto que estás vendo aqui. Sim! (Saindo juntos para os imensos jardins da cobertura, de onde se contemplava o mar e conversavam).
– Cara! E como foi que você?...
– Eu vou te contar tudo: teu pai pegou uma grande reforma de apartamentos em um prédio vizinho do Othon Palace na Avenida Atlântica, em Copacabana. O dono dos apartamentos era um milionário belga que tinha grandes empreendimentos imobiliários aqui no Rio. Sujeito bem moço ainda, de corpo atlético, saradão, frequentador assíduo do Clube de Golf e de outros espaços requintados da aristocracia europeia radicada no Rio de Janeiro. Tudo o que consumia vinha da Europa, inclusive a água era importada; tudo chegava de avião. Eu acho que se ele pudesse ele importaria o ar para respirar. O bacana tinha ojeriza, tinha náuseas a algumas coisas do Brasil. Mas o cara era paca e ninguém sabia. Nem a mulher dele desconfiava. Ela era uma carioca da alta sociedade. E às vezes vinha com ele inspecionar as obras. Além de nós, eu e teu pai, havia mais gente trabalhando, pessoal de hidráulica, eletricidade, climatização, decoração; a porra toda. Quase todos europeus ou brasileiros descendentes daquela gente. O decorador era um francês cheio de viadagem. Crioulos só nós dois; quer dizer; eu mais porque seu Alberto é mulato claro. Na maioria, só tinha loiro na parada. Lá um dia o empresário fez um contrato com seu Alberto para construir uma mansão de praia em Búzios, mas pediu que eu ficasse para tomar conta das coisas, morando em um quarto de um dos apartamentos. Como eu era o único crioulo na parada, era pau para toda obra. E os caras: “Aí Da Cor vai lá embaixo comprar um lanche pra gente! Negão, vai pegar água mineral... Vai no português pegar o almoço”. Mas tudo de inferior era pra mim. A cama que eu dormia era a pior, o pior serviço era pra mim, o lanche não era igual ao dos caras loiros, a única marmita que vinha era pra mim. As piadas mais safadas eram sempre sobre negros. E assim por diante... E eu ainda tinha que rir e levar tudo na esportiva para suportar a barra. Tu sabes que o Rio de Janeiro tem esse jeito de levar o negro na esportiva, na sacanagem. “Aí Crioulo, o Flamengo ganhou!” “A Portela é a campeã do Carnaval”... Quer dizer, há um jeito aparentemente brincalhão, afetivo, carinhoso entre as aspas, com que a gente vai sendo tratado sem atentar bem para a exploração sutilmente perversa com que somos manipulados pelas elites dominantes. De tapinhas nas costas, neguinho e crioulo veja que a barra mais pesada da sociedade carioca é sempre jogada nas costas do negro. Os trabalhos mais pesados, menos remunerados, mais sujos, mais arriscados. E por aí vai... E o negro tem que fingir satisfação ainda achando engraçado todos os ônus do ódio, da exploração e do preconceito que incidem sobre ele. Veja! Comparada com as cidades mais civilizadas da Europa, por exemplo, o Rio é a única em que os edifícios de médio e alto padrão têm um elevador social e outro de serviço destinado aos negros. E ainda os nossos irmãos negros que servem aos bacanas e magnatas nesses edifícios luxuosos, clubes privês, boates e hotéis sofisticados defendem que somente os doutores e as madames devem ter direitos e privilégios extravagantes, inclusive desregramentos, mesmo submetendo os serviçais negros a explorações excessivamente desumanas.
– É foda cara!
– Bota foda nisso... Mas aí cara, naquele contexto, o gringo começou a passar a mão discretamente no meu pau, quando vinha inspecionar o serviço. No início eu pensei que ele esbarrava em mim sem querer, mas quando foi um dia que só tinha nós dois lá, ele alisou o meu pau, desceu as minhas calças e me chupou. Daquele dia em diante, passei a botar na bunda dele e a ter toda a mordomia. Depois passei também a comer a mulher dele, uma tarada insaciável. Foi a minha salvação sim! Com ela visitei todos os países do mundo, porque a mulher tinha taras em foder com trajes exóticos e nos lugares mais estranhos do Planeta. Foi assim que eu vim parar onde estou agora. E vou te dizer uma coisa: um negro no Rio de Janeiro, só pode reunir o patrimônio que eu tenho se for um artista de grande sucesso, um excelente jogador de futebol, um grande traficante de drogas ou o maior bicheiro do Brasil.
– É isso aí...
– Vem cá que eu vou te apresentar ao pessoal que trabalha comigo aqui em casa e que vai cuidar de você também. Sim! Amanhã vamos a Adônis, porque tens que estar muito bem becadinho para entrar em cena. Temos logo no final de semana uma recepção no Itamarati. O Saraiva Guerreiro vai dar uma festa de arromba.
– Pô cara, esse baiano só pensa em festa?
– E baiano consegue pensar em outra coisa? É como o Marcos Tamoio que transformou o Palácio da Cidade em um salão de festas da alta sociedade carioca.
– O Brasil na merda, mergulhado em dívidas, o povo da Baixada se fodendo, vivendo na lama e esses babacas só festejando, porra... Pessoas encarceradas nos porões da ditadura militar, torturadas, seviciadas, assassinadas e esses canalhas esbanjando dinheiro público para fazer festas, satisfazendo as taras das elites porra!
– Moço! Pelo que ouço você é bem informado. Sim?
– Mas é claro! Eu leio jornais, boas revistas, bons livros e acompanho os noticiários, e procuro me manter bem informado. Mesmo morando na Vila Americana e estudando na escola de Queimados, procuro estar sempre atualizado.
– Tá certo, sim. Foi por isso que eu pensei logo em você para fazer parte desse esquema que é o meio mais fácil para um negro da Baixada chegar à crista da onda nesta sociedade esmagadora. Eu vi você desde ainda bem pequeno no colo do teu pai e pela tua esperteza eu já sacava um homem negro de futuro. Óbvio que nós gostaríamos que a ascensão social do homem de periferia se fizesse pela via da educação de qualidade que o levasse a uma formação elevada. O que eu estou fazendo agora e te aconselho fazer a mesma coisa. Você é um jovem negro inteligente, postura elegante, culto, versátil e sagaz tem tudo na vida pra se dar bem.
– Diogo, vá dormir que eu sou sair em campo. Amanhã você vai ser produzido. E à noite já sabe: Itamarati.
– A que horas nós vamos sair pra lá?
– Seis e meia.
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Antes do início do evento, o Salão Nobre do Itamarati estava engalanado de ponta-a-ponta com toda a pompa e circunstância. As filas de automóveis estacionados estendiam-se da Rua Larga à Central do Brasil e os convidados que iam chegando ocupavam os jardins e as áreas livres do Palácio, já servidos por uma plêiade de garçons do Buffet mais caro da América Latina. O Ministro das Relações Exteriores cheio de frescuras tinha verdadeira obsessão por etiquetas e não-me-toques. Não sabia fazer nada que não fossem festas, recepções, banquetes, bacanais, orgias e magníficas putarias para satisfazer as taras das oligarquias extravagantes e devassas. Por isso, ele percorria todos os espaços, seguido do chefe do cerimonial, verificando cada detalhe mínimo da organização e exigindo esmeros e requintes minuciosíssimos. Com isso, o erário público sofria a mais cruel erosão nas suas estruturas mais compactas. Naquela era, bastava um diplomata de carreira ser nomeado para as funções de adido cultural – por exemplo – junto ao Consulado do Brasil em Santa Cruz de La Sierra para que o Ministério das Relações Exteriores esbanjasse milhões de dólares para festejar o agraciado. O contraditório é que por aquele mesmo tempo a economista chilena Ana Maria Jul com a sua equipe do FMI intervinha no Ministério da Fazenda e fazia cortes de recursos financeiros draconianos na educação, na saúde, na segurança pública, na mobilidade urbana, na habitação, no saneamento básico, no sistema de eletricidade, no abastecimento de gêneros alimentícios e até nos serviços dos cemitérios públicos. Contrariando veementemente a Constituição Federal. Dessa forma, nunca foi possível saber como a Chancelaria brasileira conseguia tanto dinheiro para financiar banalidades com o controle hitleriano do Fundo Monetário Internacional sobre a economia do Brasil. Era muito estranho aquilo.
– Vamos deixar o carro no estacionamento privativo do Tribunal de Justiça e subir de taxi. Procure ficar o mais a vontade possível com esse traje de gala, e lá no banquete procure discretamente fazer tudo que eu fizer para não te enrolar com tanta etiqueta, tanta viadagem e tanta frescura.
– Fique frio... Sim?
– Sabe dirigir?
– Claro!
– Ótimo! Vou botar você na boca de um carro zerinho nessa parada de hoje.
– Coma assim? Vou botar uma bicha na tua mão que vai te dar todo o luxo do mundo.
– Qualquer papo lá, tu és meu irmão que veio morar comigo para estudar.
Iniciada a recepção, o jovem Diogo pôs-se a observar discretamente que o amigo Neguinho circulava com a mais absoluta desenvoltura entre as potestades da alta sociedade, sendo muito assediado por elas. Figuras exponenciais do governo brasileiro tratavam-no com uma intimidade surpreendente. Então, Diogo foi percebendo que um sujeito corpulento muito cumprimentado e cortejado entre as hostes passou a conversar com Neguinho, olhando-o de soslaio. O amigo também olhou-o, tomou o braço do sujeito e saíram conversado para um espaço mais reservado. Depois de algum tempo, Neguinho encontrou um jeito de fazer as apresentações. Logo dali em diante, o sujeito gordo foi tecendo uma conversa amistosa com o jovem negro, procurando deixa-lo muito à vontade. Brindaram, trocaram tapinhas nas costas, descontraíram-se, petiscaram entradas e o sujeito foi interrogando o jovem Diogo sobre a sua vida e as suas expectativas pessoais. Depois de alguns drinques, o sujeito abriu-se e convidou o jovem para um encontro no seu apartamento em Copacabana, estendendo-lhe um cartão com o endereço. Aí o rapaz imaginou reconhecer o sujeito; parecia ser o Ministrão. Ficou um tanto perplexo, mas dissimulou muito bem e logo que teve oportunidade de conversar com o Neguinho procurou tirar a dúvida.
– É ele sim!
– Pô! E eu não o reconheci?
– É porque ele tá sem óculos.
– Cara! O Ministrão é bicha?
– Não... É tricha. (Risos).
– Me convidou pra ir ao apartamento dele.
– Vá fundo! É grana forte. O apartamento dele fica na Avenida Atlântica, no prédio colado na Casa do Folclore do Othon Palace; vizinho ao lugar que eu te falei daquele trabalho. Aquele apartamento ali é onde ele recebe garotos de programa, e a segurança é feita pela Polícia Federal. Porque ele mora em Brasília você sabe...
– Brasília e São Paulo. Eu já sei.
No dia seguinte à recepção no Itamarati, depois de prolongado repouso, os amigos começaram a discutir os planos.
– A primeira coisa que eu quero é tirar minha mãe, meu pai e meus irmãos daquela miséria extrema em que vegetam.
– Que dia ele marcou pra você ir ao apartamento dele?
– Na próxima sexta.
– A que horas?
– Seis e meia.
– Podes ficar tranquilo. A Polícia Federal tá lá na portaria do prédio para te dar segurança. Que contradição!... Vá fundo. Se tu queres tirar o teu povo da miséria, como eu tirei o meu, a oportunidade é essa. Não dê mole! Ele não vai te negar nada porque pensa que és meu irmão e, além disso, o rabo dessa gente tá na minha mão...
Poucos meses depois, Diogo mudou para uma casa própria no Alto Gávea. Nomeado para um alto cargo na Diretoria do Ministério da Fazenda no Rio de Janeiro, com espaço privilegiado na ponte aérea Rio/Brasília, entrou para a universidade, passou a fazer cursos na Fundação Getúlio Vargas e iniciou uma conversa com a família para sair da Vila Americana e vir morar na Zona Sul do Rio. Não houve argumento capaz de persuadir a Dona Mirinha a fazê-lo; o máximo que ele conseguiu foi trazer a todos para Nova Iguaçu onde adquiriu uma bela chácara com casa ampla e confortável. Naquele ambiente confortável, a família ia vivendo de forma abastada quando somente muito depois Seu Alberto começou a adoecer. O velho operário da Baixada Fluminense começava a padecer os ônus de uma lida devotada a Deus, à família e ao trabalho. Neto de um jaguncinho de Canudos, ele caminhava para o fim da jornada com a serenidade plácida assim como as águas do Vaza-Barris no Outono sertanejo.
– Meu Velho não anda bem e eu estou preocupado...
– E o que é cara?
– Próstata. Tu sabes; esse pessoal descendente de nordestino, do povo de Canudos...
– Cabra Macho!
– Cabra Macho! Não se submete a exames dessa natureza.
– Mas já está em tratamento, sim?
– Claro que sim, mas não como eu gostaria... Fiz um esforço hercúleo para leva-lo a se tratar em Brasília. Não adiantou. Ele não aceita sair da Baixada de jeito nenhum. O máximo que conseguimos foi leva-lo ao Doutor Samuel Sessim em Nilópolis.
– Ótimo médico!
– Excelente!!! Foi ele que me orientou sobre a questão previdenciária. Você sabe, papai trabalhou a vida inteira por conta própria como autônomo sem se preocupar com previdência.
– E agora?
– Olha meu... Eu consegui através de um coronel Adriano da polícia militar uma reforma para o meu velho como subtenente da corporação. Publicou no Diário Oficial do Estado, do último dia quinze. Agora, o meu velho já está sob os cuidados da Policlínica Militar de Nova Iguaçu e minha mãe também já fica amparada. Aí deu uma grande aliviada.
– Eu sei quem é o Adriano. É do jogo.
– Ele vive metido lá nas putarias dos caras de Brasília.
– Conheci a ex mulher daquele cara; uma grande advogada. Conta-se que ela flagrou o cara com um bofe na cama dela e ainda por cima vestido com uma camisola dela. Entrou em coma na hora. Quando a conheci, ela ainda era meio maluca.
– Cara, é uma putaria do caralho!
– Brasília, como está?
– É o que te digo... Este Brasil é governado pelo que há de mais repugnante na face da terra. Pederastas, putas, pedófilos, lésbicas, bissexuais, ladrões, usuários de drogas. Tudo o que você imaginar de pior se acha nas hostes do poder central em Brasília. Aquela Enseada dos Ministros é uma verdadeira Sodoma. Final de semana, aquela porra pega fogo. Estou te dizendo porque eu vivi ali dentro uma porrada de tempo.
– E o assalariado tomando nu cu para sustentar essa putaria toda...
– Tu não tá vendo! Esses gorilas que aparecem na televisão e nos jornais de óculos escuros, bigodudos, torturando as pessoas, matando, esquartejando, seviciando. Veja o que aconteceu com o Rubem Paiva e muitos outros. Quase todos os assassinos e torturadores a serviço do governo brasileiro dão a bunda, cara! Eu participei de muitos bacanais e orgias em Brasília, dentro dos espaços palacianos; não foi fora não.
– Uma porra mesmo!
– Bota porra nisso! Meu pai se fodeu a vida toda no trabalho árduo e ia morrer à mingua, se eu não tivesse entrado nesse esquema. Eu fico vendo essas moças e esses moços entrando para a luta armada, morrendo sob torturas macabras nos subterrâneos dos quartéis para derrubar o governo. Tão por fora! O poder no Brasil se derruba é com a desmoralização mesmo. Sem subversão, sem precisar dar um tiro sequer, sem explodir uma única bomba, sem matar uma única pessoa, sem prender um único operário, sem torturar um único estudante e sem humilhar um único negro. É só desmoralizar essa porra botando na bunda daqueles pederastas arrogantes e prepotentes. Eu vi isso de dentro do poder em que estou ainda; tirando muito proveito é claro. O poder neste país tem que ser minado nas estruturas maiores, infectado, prostituído, degenerado, corrompido na cama, injetado na bunda, dilacerado nas entranhas. Eu quero ver aquelas oligarquias poderosas resistirem.
– Cara!!!
– E vou te dizer mais, nem que seja muito velhinho eu ainda ei de ver este país governado por uma fanchoni para encher o Planalto de gurias, para escandalizar a porra toda, porque somente assim é que seremos levados a construir um sistema de governo republicano decente.
– Eu só espero que não seja uma República Islâmica. (Risos).
– Isso aí eu não sei, porque quem decide é o povo. Bem, o papo tá bom, mas eu tô subindo ainda hoje, porque amanhã cedinho tenho que levar o velho à policlínica.
– Que horas vais subir pra Baixada?
– Seis e meia.
Serrinha, 31 de março de 2014.
*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB EM EUCLIDES DA CUNHA.
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