Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

CUNHA MATOS

CUNHA MATOS por José Plínio de Oliveira*



    –  CUNHA MATOS, você é Macho!!!
  – Coroner, disto o senhor não tem nenhuma dúvida; desde tempos idos... Saiba Vossência que: o gaúcho é, antes de tudo, um macho!
   – Teu pai foi um grande macho, herói da Guerra do Paraguai. Ajudou a combater os Farrapos,e todas as demais sublevações que implodiram no Sul. Teu avô foi macho. Destacou-se pela bravura indômita, pelo brio, pela disciplina austera, pelo patriotismo. Pelo Amor, pela dedicação e pela devoção ao Exército! Tua mãe...
  – Coroner, Coroner... Alto lá! No Sur, para um gaúcho, esse negócio de mãe é coisa muito preciosa, muito sagrada tchê! Mãe toca fundo no coração da gente gaúcha.
                 O jovem major Cunha Matos havia abandonado a Fazenda Velha, deixando Moreira César agonizando. Fugiu acossado pelos estampidos das armas de Pedrão e de Pajeú; então rumava para a Fazenda Rosário, de propriedade do Coronel da Guarda Nacional José Américo Camelo de Souza Velho, primo do barão de Jeremoabo, feroz adversário de Antonio Conselheiro e aliado de todas as expedições militares mobilizadas contra o povo de Canudos.
– Cunha Matos, você é Macho!!!

               O militar reteve as rédeas do baio, achava-se na iminência de atravessar o leito esturricado do Riacho das Umburanas. A voz parecia emergir de dentro de um emaranhado decaatingas-de-cheiro,macambiras, gravatás, caroás, paus-de-ratoxique-xiques, velames, pinhões, juremas eunhas-de-gato, tendo no centro uma baraúna frondosa e impávida como uma atalaia sertaneja a vigiar do alto toda a dimensão misteriosa do Império Sagrado doBelo Monte. Das alturas dos galhos da baraúna pendiam ninhos de garrinchas, semelhantes aos candelabros renascentistas da Catedral de Veneza e os ninhos de João-de-Barro, construídos sobre aqueles galhos robustos, assemelhavam-se a oratórios medievais envelhecidos pelos séculos.Encantava mais ainda uma casa de arapuá erigida como uma pirâmide de massapê sobre um galho mais alto da árvore; donde voavam disciplinadas abelhinhas, como soldados de um exército eficiente sem necessidade de comando, para coletar néctar em um cacho ainda verde de Ouricuri, florido como uma Corbélia dourada. Tudo era tão belo, tão envolvente, tão meditativo, tão extasiante. Era uma forma de manifestação augusta da estética da aspereza em Canudos. Uma aspereza sublime em que toda a beleza danatureza prodigiosa parecia debruçar-se sobre aquele encantamento silvestre. O coração do gaúcho abriu-se como nunca, embevecido por estranha consternação. O quadro despertou a alma poética de Cunha Matos, e o vento corria silente como um minuano seco a sibilar pelas Caatingas de Canudos; o olhar trigueiro do major ia debulhando cada traço daquela paisagem inebriante. Era um universo deslumbrante!Era como se um paisagista divino houvesse disposto cada arbusto, cada tronco, cada galho, cada flor, cada bromélia e cada porção de relva agreste em um jardim celestial. Assim, naquele ecossistema remoto da caatinga de Canudostodas as espécies harmonizavam-se de tal forma simétrica e articulada que nenhum ente teria condições de sobreviver sem o entrosamento perene e plástico com o outro: a minúscula formiguinha rasteira, por exemplo, não teria existência sem o equilíbrio holístico com a pétala da flor de bromélia na parte mais elevada da árvore gigantesca. E vice-versa. Tudo era tão integrado harmoniosamente que envolvia o próprio leitor de mundo; tornando-o parte essencial daquele universo agreste. A Taxionomia Holística do Sertão de Canudos atingia a sua dimensão mais plena no cerne da alma humana. Portanto, naquele contexto vibratório de energias extraordinárias, entre o êxtase e o embevecimento abriu-se a Terceira Visão do homem de armas.Então Cunha Matos viu os primeiros gaúchos adentrando ao continente com as suas mulheres, velhos, crianças, trens e trapos transportados em carretas cobertas de couro de boi e folhas secas de palmeiras. Viu os primeiros cavalos selvagens emoldurando a paisagem dos pampas. Viu os castelhanos incendiando a Igreja Matriz de Alegrete. Viu uma índia Guarani tostando mate na Missão de São Miguel. Viu soldados de Gaudêncio Pereira violando uma prostituta argentina a duas quadras do Palácio do Governo. Viu uma rajada letal deminuano matar o bisavô centenário de Júlio de Castilhos. Viu Antonio Conselheiro deixando Quixeramobim para pregar a Boa Notícia pelos sertões da Bahia. Viu uma enchente do Guaíba arrastar o gado de Olegário Cascais. Viu desertas as ruas de Porto Alegre quando um padre anunciou que as Forças Farroupilhas estavam prestes a invadir a cidade. Viu as botas de Simões Lopes Neto esmagando uma pena contra o assoalho de Pinho-de-Riga porque traiu uma palavra dos Contos Gauchescos. Viu o Negrinho do Pastoreio deixando as formigas e a estância macabra para viver no sertão da Paraíba. Viu Bento Gonçalves depondo as armas perante o exército regular para ser levado prisioneiro. Viu a bomba e a cuia que pertenceram ao major Pinto Bandeira, oferecidas em hasta pública na Comarca de Santo Aleixo. Viu Moreira César degolar o ancestral ilustre do poeta Ronald de Carvalho. Viu a chuva de sangue bovino nas charqueadas de Murilo Alvarez.

Cunha Matos chorou...

                 O guri ingressou no Colégio Militar ainda desprovido de buço.Pensou em ser padre, influenciado pela avó açoriana devota de Nossa Senhora do Desterro. Entretanto, esbarrou na oposição do pai que ponderou com a venerada genitora, admitindo que uma das meninas ingressasse na vida religiosa consagrada.Mas, o filho varão tinha que cumprir a tradição da família ingressando na vida militar. “O guri estava predestinado a lutar pelo Rio Grande! Era um homem temperado para a coxilha. Havia de lavar a honra do Brasil com o sangue gaúcho”.

Nos primeiros tempos de caserna,o jovem foi marcado por austera timidez até que com o passar do tempo incorporou os hábitos militares, passou a frequentar as noites sedutoras do universo portalegrense nos momentos de folga, tornando-se heroico combatente de alcova. Um colega pernambucano comentou certo dia com os pares mais próximos: “O Cunha é bem um tipo do Norte: do ar urubu, do chão cururu. Fode tudo o que achar pela frente”. Dito e feito, logo o rapaz foi pilhado por um conceituado mestre da escola frequentando uma casa de lenocínio. Um mestre também assíduo naquele trato noturno.
                                 – Cunha, tome cuidado. Estás te expondo muito, tchê!
                 – E o senhor não?
                 Cadete, veio a cair nas graças de uma elevada patente daarma, o que lhe fez usufruir de grandes privilégios no ambientemilitar de formação profissional. Aspirante-a-Oficial, envolveu-se em um escândalo com uma dama da alta sociedade.A sua permanência no Rio Grande do Sul ficou insustentável.Então o velho marechal que dele se afeiçoou desde o seu ingresso na Escola de Cadetes, mobilizou toda a sua autoridade, prestígio e influência para resguardá-lo de todo e qualquer contratempo. Para tanto, articulou a sua transferência para um importante regimento da corte do Rio de Janeiro onde passaria a servir sob o comando de um antigo discípulo e subalterno daquela potestade castrense.Logo, publicada em boletim a sua remoção, o velho comandante pôs a pena a esculpir uma longa carta de apresentação do seu “estimado cadete”. Missiva alongada e carregada de emoção incontida em que se destacavam palavras exuberantes:

“Passados muitos anos em que serviste sob o nosso Comando, valho-me destas linhas para te pedir um grande favor que creio não mo negarás, até pela elevada estima e grande amizade que nos une há anos.Trata-se de um jovem Cadete que mandei transferir para o teu Regimento. Trata-se dê um gaúcho extremamente MACHO!!!. Tu não imaginas o quanto me dói. Atende pelo nome de guerra de Cunha Matos e descende de importante família de origem lusitana. De enobrecida tradição na vida militar tanto em Portugal quanto aqui no Brasil. Dele, tenho a dizer-te que sê Deus fez o mundo em sete dias, seis deles foram bem empregados em fazer o Rio Grande e as Maravilhas deste glorioso rincão. Entretanto, afirmo-te com conhecimento de alcova, quero dizer de causa, que dos seis dias empregados para fazer o Rio Grande e as suas Maravilhas, cinco dias e meio aprouve a Deus emprega-los em fazer CUNHA MATOS. Um menino bom que agora ponho em tuas mãos. Estou a abdicar de uma preciosidade para depositá-la em face de ti”...

                 Ao fazer a leitura da última frase, percebeu o destinatário três pequenos borrões que dilatavam a tinta, tornando os signos escritos mais robustos que os demais. Examinou-os com maior acuidade e percebeu que eram marcas de lágrimas vertidas pelo remetente quando encerrava o texto. Então dobrou a missiva, tornou-a ao envelope, guardou-a na pasta de documentos pessoais e sussurrou de si para si: Trata-se dêum Gaúcho extremamenteMACHO!!!Logo passou a sentir arrepios por todo o corpo, sentiu que as crises e vertigens corriqueiras estavam prestes a acometer-lhe. Tal como lhe soia acontecer em certas ocasiões. Ergueu-se e dirigiu-se para o seu quarto de repouso, contíguo ao seu gabinete de comando – uma espécie de suíte do III Milênio em um regimento militar do século XIX –, trancou a porta a chave e com os ferrolhos de segurança e esborrachou-se no piso de assoalho. Vieram-lhe as convulsões: contraiu-se, bateu-se, estrebuchou-se, estremeceu-se, rolou pelo chão espumando como um cão raivoso, masturbou-se e, depois, rastejou como um verme abjeto, entrou no armário, persignou-se de cócoras, guardou silêncio por algum tempo refletindo intimamente. Depois saiu do armário, sentou na boneca de estimação que guardava a sete chavesem um estojo de marfim,e sussurrou: “Um gaúcho extremamente MACHO!!!
                 Tempos depois, referindo-se a Cunha Matos em face do noticiário jornalístico que acompanhava sobre a escalada da 3ª Expedição Militar Contra Canudos, o Bom Jesus Conselheiro vaticinou em uma prédica dominical:
                 – É o Cão, é o fio do Cão, é a image do Cão!
                 Pálido como um cadáver, repugnante como uma úlcera cancerígena, trêmulocom palha açoitada pelo vento o coronel persignado e torto como o corcunda de Notre Dame, pela primeira vez na vida foi acometido por uma espécie de profunda autocrítica eextravasou:
                 “Aminha condição de pessoa humana é muito degradante. É infame, humilhante, torpe. Tento me libertar deste estigma terrível, mas a minha humanidade me corrompe e me leva por caminhos que não quero seguir. Como posso suportar este espinhona carne que vai me fustigando lentamente? Como pode a condição humana submeter-me a uma situação tão indigna? Como poderei soerguer-me do pó? A minha vida tem sido uma guerra travada contra esta ignomínia... Vivo a realidade hipócrita de estar escorado em uma instituição austera e moralmente completa submetendo-me a uma situação tão repugnante. Por muito tempo acreditei que a vida militar com todo o seu aparado jurídico de códigos, boletins diários, regulamentos, partes, portarias, instruções, normas, disciplinas, hierarquias e preceitos rigorosos me daria condições de resistir, mas tudo isso não passa de excrementos em face da minha fragilidade execrável. Estou perdendo a guerra que movo contra mim mesmo. Eu não tenho mais forças para resistir”... Mas foi tomado de brevíssima reflexão sublimar, comtemplou o Pavilhão Nacional que ficava hasteado junto do leito. Bem diante dos seus olhos, a inscrição: ORDEM E PROGRESSO. E continuou: “Que Ordem? Que Progresso?Pode ter uma Nação que tem no centro do Poder a maioria dos seus homens públicos, eminentes, marcados por essa?... Que progresso pode aspirar um País dirigido por homens moral e espiritualmente degenerados, deteriorados, corrompidos por estigmas tão obscenos, tão asquerosos, tão vulgares? O Brasil é um país condenado a repugnante flagelação”.
O coronelvoltou a estender-se no assoalho por mais algum tempo, prostrado como um semimorto.Depoisfoi tentando reunir migalhas de forças para reerguer-se. E assim que consegui arregimentar ânimo foi à toilette, banhou-se, cuidou-se, trocou de uniforme, empertigou-se. Empertigado, deslizou a mão direita sobre o dólmã, depois contemplou as suas insígnias, as dragonas douradas, as condecorações estendidas de alto a baixo. Indignou-se contra as próprias ignomínias que lhe feriam a alma, e foi acometido da mesma ferocidade implacável que sempre lhe advinha após uma crise; levando-o a trucidar todo e qualquer humano que lhe estivesse ao alcance da mão. Decidiu sair do gabinete e descer para o pátio do quartel a fim de trogloditizar a primeira vítima que encontrasse pela frente. Ao abrir a porta deparou-se com o tenente-coronel Cavalcante; subcomandante do Regimento; presumiu que ele tivesse auscultado as paredes para lhe bisbilhotar a crise. Deu-lhe voz de prisão. E foi a tarde e a manhã do primeiro dia. Mandou que o subalterno se recolhesse ao alojamento de oficiais superiores até segunda ordem, gritou pelo oficial-de-dia, determinou-lhe que pusesse uma sentinela armada na entrada da cela do oficial preso e que formasse o Esquadrão Especial de Cavalaria à sua disposição.Logo depois tomou a cavalgadura de ancas parrudas e marchou com os comandados em direção a Rua Matacavalos.No início do logradouro encontrou um homem negro que transportava sobre a cabeça um engradado de galinhas; apontou a arma para o homem, fez deitar o engrado sobre a relva e soltou a franga. Mais adiante encontrou um cego, esmolando de porta em porta, apeou da montaria, degolou o indigente e perfurou com a ponta da espada os olhos do menino que o guiava. Seguiu adiante... Encontrou uma carroça carregada de feno que um trabalhador conduzia a um sítio na Tijuca, mandou os soldados pegarem o trabalhador. Amarram-no à carroça junto ao cavalo e atearam fogo ao feno. O comandante assistia ao sinistro rindo a ilhargas e tendo convulsões orgásmicas irreprimíveis. Não arredou o pé do lugar até ver tudo transformado em cinzas de matizes semelhantes a folhas verdes de oliveiras incineradas. Ainda envolto na atmosfera de sarcasmo sádico e grotesco, deu ordem de marcha ao Esquadrão e mais além teve a atenção voltada para uma mulher em adiantado estado de gestação, que estendia roupas coloridas em um varal de estacas. Interrompeu a marcha diante da mulher, mandou os soldados manietarem-na; estripou-a. Depois tomou o sabre de um furriel e espetou o feto ainda envolto em placenta arroxeada, erguendo-o como troféu em cerimônia militar de exaltação àPátria Amada!
A tropa retornou à caserna alta noite. No dia seguinte a quarta parte do Boletim publicou a prisão do subcomandante por trinta dias. E foi a tarde e a manhã do segundo dia. Logo, o subcomandante foi removido para dependência própria do Quartel General do Distrito Militar do Rio de Janeiro para cumprir a pena.E foi a tarde e a manhã do terceiro dia.
O preso, tenente-coronel Cícero Romão de Albuquerque Cavalcanti era cearense da mais elevada estirpe da Nobreza do Crato, descendente da Nação dos Inhamunse de esmerada formação na Escola Lazarista, era respeitado e reverenciado por toda a tropa como oficial exemplar e justo.Com ficha de serviço impecável, havia feito carreira servindo em unidades de elite espalhadas pelo território brasileiro. Cultor das Letras Cearenses, tornou-se leitor inveterado da obra de Franklin Távora. Conheceu Adolfo Caminha no Rio de Janeiro de quem se tornou um grande amigo. Logo, tendo sabido da sua prisão, o autor de Bom Crioulo foi visita-lo. E foi a tarde e a manhã do quarto dia. Ao concluir a visita, Caminha deixou-o ciente de já estar em entendimento com a plêiade de intelectuais do Ceará então radicados na Capital da República para pensar a questão. O tenente-coronel Cavalcante estava decidido a pedir baixa do exército.
– Não! Não podes cometer tamanho desatino precipitado! Já estamos nos mobilizando em tua defesa.
Os pensadores cearenses radicados no Sudeste do Brasil ainda hoje são muito discretos e muito prudentes nas suas relações com as linguagens turbulentas que estremecem o mundo. Com eles não tem essa coisa de Cearádoyle, de carnavalização de valores em troca de reconhecimento gratuito.No Ceará não tem disso não! Não! Preferem a discrição, a modéstia, a firmeza de caráter, a generosidade mística, a retidão de princípios, a Mística tão peculiar a alma cearense marca profundamente o Pensamento do Ceará. Nas questões morais são de uma serenidade monástica e de uma dignidade humana surpreendente. Não abrem mão, sob pretexto algum, dos valores que lhes tocam mais fundo na alma. Os Pensadores do Ceará podem até conviver, compreender e respeitar outras culturas do mundo, outros hábitos, outros costumes, outros comportamentos. Mas no momento de abdicar dos valores inabaláveis que lhes são muito peculiares; para declinar perante outras linguagens do mundo, aí não! Que o digam – por exemplo – Antonio Conselheiro, João Brígido e Rachel de Queiroz. Sem jamais esquecero Meu Padrinho, o Padre Cícero Romão Batista; de Saudosa Memória. Assim como tantas personalidades exponenciais daquele planeta, o tenente-coronel Cícero Romão de Albuquerque Cavalcante também era filho daquele universo pensante. Era a alma viva do Ceará naquele tempo de discursos castrenses predominantes no Rio de Janeiro. Portanto, estava decidido a desvincular-se definitivamente da força armada a que servia há tempos, para salvaguardar a honra do Pensamento Cearense.
         Adolfo Caminha pensou por um momento como que persignado diante dos desafios da vida; despediu-se do prisioneiro e foi pessoalmente levar os fatos à Confraria Cearense do Distrito Federal. Ele caminhou literalmente pelas ruas do Rio de Janeiro por todo o dia e entrou pela tarde. A sua peregrinação – guardadas as devidas proporções – somente pode ser comparada à de Antonio Conselheiro pelos sertões da Bahia.E foi a tarde e a manhã do quinto dia.
                Na manhã do dia seguinte todos os membros da Confraria que se achavam na capital federal encontraram-se no Salão Nobre do Ministério da Guerra, e a primeira exigência que formularam foi a de que o ilustre conterrâneo fosse alojado imediatamente em dependência especial do Estado-Maior daquela pasta enquanto perdurassem as providências. O Ministro concedeu e prontamenteofereceu-lhes o próprio salão para permanecerem em vigília, conforme o declararam. Agradeceram, mas preferiram fazê-la na mesma dependência em que ficasse recolhido o tenente-coronel Cavalcante. Dito e feito!
Depois de ouvir pacientemente a todos os argumentos e pronunciamentos da plêiade de pensadores, tomou a palavra o desembargador Apolinário Crescêncio Ibiapina de Mello, cearense do sertão de Baturité, titular do Tribunal Federal de Justiça e decano do Poder Judiciário Brasileiro. Tudo em face da manifestação de irredutibilidade do conterrâneo Cavalcante:
               – Prezado amigo e conterrâneo, coronel Cavalcante, e demais confrades aqui presentes, aduz-me o mais elevado sentimento nativista de que compartilhamos neste momento a louvar a vossa firmeza de caráter e de elevada dignidade de servidor da Pátria. Ilustre coronel, permita-nos, aliás, o que é dever de honra do homem cearense, senão de direito: primar sempre pelo enobrecimento do Pensamento do nosso torrão natal em toda e qualquer circunstância. Uma vez que o nosso Ceará é tão privado de chuvas e tão repleto de Sol, a nossa maior e melhor lavra é a Primazia do Pensamento que depende mais de Luz do que de lama. Destarte, rogamos-vos que aceiteis o nosso modesto louvor, o nosso apreço, a nossa gratidão por tão elevado senso de amor próprio e também à nossa querida Província do Ceará em muito tão sofrida e castigada pelas contingências do tempo. Mas agora é tempo de pensamento, ponderação e prudência em face da situação em que nos deparamos neste delicado momento. Recebi desde o dia de ontem em nossa casa e local de trabalho alguns dos nossos que servem na Vila Militar e demais unidades sediadas aqui no Distrito Federal. Todos consternados com o que ocorreu com Vossa Senhoria. Sem sombra de dúvidas, o meu convencimento é de que nos achamos na iminência de uma sublevação militar; para tanto consta haver entendimentos com pares que servem em unidadesde São Paulo e de Minas Gerais. Diante dos fatos, estamos conclamando a todos a evitar derramamento de sangue. Portanto, nós vos suplicamos pelo que de mais caro nos une, a honra do Ceará, que vos digneis aceitar a nossa Súplica Cearense nos termos que submetemos ao vosso lúcido, incólume e patriótico juízo: estamos autorizados com absoluta garantia a vos assegurar uma transferência para a reserva remunerada na patente de general-de-divisão, a anulação do ato que vos trouxe este quartel general, a vossa libertação ainda hoje e a publicação dos termos aqui acordados, caso acatados por Vossa Senhoria, no Diário Oficial do dia de amanhã.E foi a tarde e a manhã do sexto dia.
Pairou um silêncio de trevas sobre a face do abismo que se estendia entre o tenente-coronel Cícero Romão de Albuquerque Cavalcante e a injustiça sofrida no quartel em que servia. Aos poucos dele foram se aproximando discretamente um confrade após outro. O magistrado permanecia à cabeceira da mesa em absoluto silêncio e de olhos cerrados.
               – Aceito os termos apresentados por Vossa Excelência e volto para o Universo do Ceará com a consciência plena do dever cumprido! Todos aplaudiram.
               – Fiat Lux! Aqui estão os documentos para o vosso exame, assinatura e mais as assinaturas de três testemunhas.
               No dia posterior o Diário Oficial da República dos Estados Unidos do Brazil publicou na íntegra os termos aceitos pelas partes. E foi a tarde e a manhã do sétimo dia.
               Naquele mesmo dia, desembarcava no porto do Rio de Janeiro o aspirante Cunha Matos, recepcionado pessoalmente pelo comandante do Regimento, à frente do Esquadrão Especial de Cavalaria com toda pompa e circunstância.
 Passou o período de instalação alojado na caserna, parte dos quais trancafiado no gabinete e na suíte do comandante. Devidamente instalado, surpreendeu a tropa e constrangeu aos seus superiores hierárquicos ao ser empossado na função de Secretário do Regimento – cargo de caráter privado à patente de major – logo percebendo vencimentos e vantagens atribuídas ao posto de tenente-coronel; com direitos a outrasmordomias, regalias e grandes privilégios“inerentes à função militar”. A partir de então passou a ostentar-se como requintado dandy, frequentando a Rua do Ouvidor, a Confeitaria Colombo, o Alcazar Lírico e as cocotes francesas. Muito em moda na época. Espraiou-se pela orla dos prazeres cariocas.Foi morar no Bairro da Lapa. E as promoções relampágicas faiscaram-lhe uma após outras. Atingiu a patente de major num piscar d’olhos, passando – de fato – a comandar o Regimento, impondo-lhe preceitos draconianos. Certa feita determinou a um soldado que fosse à cavalariça e lhe trouxesse o pingo; o ordenança trouxe-lhe uma garrafa de aguardente e um cálice. Foi a conta: enfureceu-se, deflagrou tiros para o alto, saiu ao pátio do quartel e gritou a plenos pulmões:
               – Nesta zorra, quem manda sou eu! Eu prendo e arrebento!!!
               Mas, entretanto, sentiu-se preterido em face da dimensão logística organizada para as operações bélicas em Canudos.
               – Coroner, Coroner, não se deve gastar tanta pólvora em um chimango insignificante!
               – Na guerra nunca se sabe...
       Mais adiante, ei-lo circunspecto no fatídico 04 de março de 1897, ainda dominado por experiências acima do conhecimento humano. Destarte, vislumbrou um grupo de soldados que procedia do Umburanas. Inquiriu o bravo tenente gaúcho que vinha à frente:
              – Alto lá! O que é que há?
              – Os jagunços mataram Moreira César e Tamarindo! Os corpos estão acolá, estendidos no chão...
              – Onde?
              – Ali! E apontou para um pé de Juazeiro próximo ao leito do rio.
              – E os jagunços?
              – Arribaram por estes descampados.
              – E vocês! Para onde...
              – Estamos cumprindo os preceitos da Lei Tamarindo: É tempo dê murici, cada um cuide dê si
  Cunha Matos avançou o zaino para o local indicado. De fato, os cadáveres dos coronéis jaziam no chão cobertos de moscas varejeiras. Tirou o lenço do colarinho, sombreou a face e dava rédeas à cavalgadura quando ouviu:
              – Cunha Matos, você é MACHO!!!
              – Coroner, Coroner... MACHOS mesmos são esses jagunços de Canudos que nos infligiram derrota tão fragorosa...
              Logo desistiu de ir à Fazenda Rosário. A guerra estava perdida, carecia de voltar para o Rio Grande do Sul, carecia dereconstituir saudades. Para tanto precisava de ajuda; lembrou-se do amigo Potâmio e partiu de rota batida para o Cumbe.



                                                             Serrinha, 15/02/15.


*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECONOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA. 




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