RUA DOS CRENTES
RUA DOS CRENTES por José Plínio de Oliveira*
–
Hoje eu havera de tocar nem que seja no inferno...
– Ave Maria! Meu filho. Tá
amarrado em nome de Jesus. O Sangue de Jesus tem Poder! Como é que se diz uma
palavra desta?
– Oxi! Minha Mãe... Eu voltei pra
cá tem mais de dois anos. Tô aqui nesse fim de mundo esquecido, jogado num canto.
Hoje, noite de São João, o sertão pegando fogo e eu aqui. Eu toquei no Forró de
Pedro Sertanejo! Toquei com Dominguinhos, Vital Farias, Oswaldinho do Acordeom
em São Paulo. Toquei no Forró Forrado no Rio de Janeiro, na Sede Velha do
Flamengo e agora fico nessa? O que é que o Zé de Loura toca mais do que eu? E
tá aí. Só porque tem proteção de político?
Zequinha Puxado estava muito
desconsolado. Sentado na varanda da casa puxava uns acordes na sanfona de
oitenta baixos, adquirida na capital paulista há tempos. A lua clara encandecia
a paisagem. Havia chovido muito em Quijingue e a luz da lua envolvia o campo
numa atmosfera de beleza sedutora. As pessoas começavam a acender as fogueiras
de São João e a terra parecia salpicada de gotas de luzes. Zequinha era
portador de um defeito físico que o tornava corcunda. O povo de Quijingue dizia
que ele tinha um mondrongo nas
costas, por isso não era muito atraente para as festas. As meninas gostavam dos
cabras sarados.
– Mãinha, eu vou ali na venda de
Zuza, tocar um pouquinho para espairecer.
Mal o sanfoneiro transpôs a
porteira e saiu na estrada, um cavaleiro muito elegante, montado em um alazão
escuro de ancas colossais e pelo brilhante como pérolas negras aproximou-se
dele:
– O Senhor é seu Zequinha
Puxado?
– Vosso criado, às vossas
ordens...
– Vim contratar o senhor para
tocar em uma festa muito grande; remuneramos muito bem! Por obséquio, monte
aqui na garupa...
O
cavaleiro loiro, de olhos muito azuis estava envolvido por uma capa de cetim
negro que lhe descia até os canos das botas. Com um chapéu de baeta aveludado de
grife francesa, segurou o alazão pelas rédeas. Mas, a montaria muito arisca não
deixava o moço subir à garupa, então o cavaleiro fez inclinar-se e uma força
mágica tomou Zequinha pelas pernas e quando ele deu fé já se achava montado e
em movimento.
– Chegamos! É aqui. Pode
apear-se.
Zequinha pôs a sanfona no chão e abriu
os olhos extasiado; nunca tinha visto tanto luxo, tanta elegância, tanto
glamour, tanto requinte, tanto brilho. Nem nos bairros nobres de São Paulo, nem
mesmo na Zona Sul do Rio de Janeiro. Avenidas espaçosas, muito bem ajardinadas
e esmeradamente cuidadas. Edifícios suntuosos, parques e praças esplêndidos.
Ouviu uma bicha completamente louca exclamar
em alta voz:
–
Gente é pra brilhar!!!
Era o Inferno.
– Seu Zequinha, o senhor está
abestalhado?
– Ah! Não é pra menos
Excelência, o Dante Alighieri me sacaneou...
Zequinha olhou para ver quem
havia falado. Ia chegando junto a ele um grupo de senhores trajados com muita
distinção e requintado esmero. No centro do grupo, um homem louro de olhos
muito azuis, aparentando achar-se na faixa etária de 50 anos de idade;
destacava-se dos companheiros que o seguiam pelo talhe atlético e elegante, e por
estar vestido com um blazer azul discreto estilo Eike Batista, mas de qualidade
estética infinitamente superior.
Era o Diabo-Rei.
– Muito prazer, senhor Zequinha...
– Muito honrado, Majestade!
– Furundunga, tire esse
mondrongo das costas do senhor Zequinha, mande incinera-lo na fornalha ardente.
Depois instale o nosso ilustre convidado na Suíte Real da Primeira Ala Sul.
– Sim Chefe!
– Chefe é o caralho! Desculpe,
Senhor Zequinha. Furundunga, eu já te falei por inúmeras vezes: chefe é de
quadrilha, de bando, de facção...
– Perdão Majestade.
– Vamos acompanhando o nosso
convidado até lá! Senhor Zequinha, surgiu aqui a ideia de realizarmos os nossos
festejos juninos de uma forma mais pop. Chegou-se a cogitar a contratação de
alguma banda da Bahia. Mas eu não posso consentir que o Inferno desça a um
nível de degradação, depravação, desregramentos e obscenidades tão levianas e
promíscuas. Afinal, isto aqui é o Inferno não pode depravar-se tanto. Certa vez
a prefeitura de Campos do Jordão caiu no descalabro de contratar uma daquelas
bandas; na primeira apresentação teve que expulsá-la às pressas, e a câmara
municipal teve que legislar proibindo definitivamente qualquer forma de
apresentação daqueles grupos no município. Ora, se Campos do Jordão teve que
precaver-se de tamanha degradação, imagine este lugar aqui? Foi então que me
lembrei da Rua dos Crentes, porque os vossos irmãos vivem me bombardeando,
através de orações, ofensas, injúrias, inverdades e blasfêmias sem botar
sentido no que há por lá. Logo pensei: por que não contratar seu Zequinha
Puxado; tão brilhante sanfoneiro e com um repertório tão precioso? O senhor vai agora descansar, mais tarde
conversaremos melhor. Tenho muitos assuntos interessantes a conversar com o
senhor...
Livre do aleijão que o afligia
desde o nascimento, agora Zequinha experimentava a sensação de ser mais alto,
de ser mais leve, mais esbelto. Ficou feliz... Ele era um desses homens do
sertão da Bahia que muito primava pela bondade, pela generosidade, pela
simplicidade. Intelectual Orgânico no
sentido bem Gramsciano do termo, estudioso voraz das Escrituras Sagradas e de
grandes clássicos da literatura, Zequinha era possuidor de uma cultura
admirável; quando viveu em São Paulo causou grande admiração não somente pela
arte que cultivava, a da sanfona, mas pela desenvoltura com que tratava de
temas importantes do Pensamento Exponencial e das Artes. Causava estranheza às
elites paulistanas o fato de Zequinha ser baiano, caatingueiro, pobre e mulato,
demonstrando tão elevado nível cultural. Certa feita, indo tocar em um evento
agropecuário na capital paulista, da janela do carro, ele viu pintada na parede
encardida de um prédio abandonado a inscrição: AJUDE MANTER A CIDADE LIMPA, MATANDO UM BAIANO POR HORA! Foi a
conta! Findo o show, voltou para o quarto de pensão em que morava, juntou os
seus pertences, despediu-se dos amigos e voltou para o velho Sertão de Canudos. Agora, encontramo-lo
assessorado por Furundunga rumo à suíte em que ficaria instalado durante as apresentações
musicais.
Nas instalações da Suíte Real, Furundunga
pôs-se a instruir o sanfoneiro sobre os usos dos equipamentos, móveis,
dependências, instrumentos e etc.
– Tudo aqui é digital. O senhor
não precisa tocar em nada. Vou cadastrar o vosso digito indicador. Quando
quiser qualquer coisa é só apontar com o dedo. Do aparelho de TV ao chuveiro.
Tudo, tudo, tudo é inteiramente automático. Por exemplo, o senhor precisa dos
serviços de buffet, de toilette ou toucador é só apontar o dedo
e tudo vem ao vosso dispor. Aqui é o guarda-roupas embutido, tudo que está nele
é Pierre Cardin sob medida para o senhor.
Pode descansar a vontade... No início da noite, venho buscar o senhor para
uma audiência de cortesia com Sua Majestade.
– Obrigado.
Conforme o que fora combinado,
quando a noite foi caindo o sanfoneiro chegou ao Palácio Real sendo recebido
com esmerada distinção.
– Senhor Zequinha, sente-se, por favor.
Furundunga, traga-nos o acordeom.
O secretário trouxe um estojo de
madrepérolas e ia deitando-o sobre uma das mesas, quando recebeu ordens:
– Entregue nas mãos do senhor
Zequinha, é um presente para ele.
O sanfoneiro tomou posse do objeto, abriu o
estojo e espantou-se com um 180 baixos novinho em folha. De marfim escuro com
teclados brancos. Deslizou os dedos sobre as teclas e saiu um som de orquestra
austríaca.
– Quem afinou foi seu
Boaventura, de Nordestina...
– Logo vi!
– Cabra Bom! Grande
instrumentista. Pedro Sertanejo aprendeu com ele, e quando foi para o Rio de
Janeiro estava morando em Nordestina.
– Toquei com ele em São Paulo.
– Seu Zequinha, o senhor sabia
que por muito pouco o Oswaldinho não nasceu em Nordestina?
– Não Majestade, não sabia...
– Pois é... A senhora do Pedro
Sertanejo ficou gestante em Nordestina, migrando para o Sudeste levou no ventre
o menino, enquanto que o marido levou no ombro a sanfona. Por um triz,
Oswaldinho não é nordestinense.
– Pois eu morreria sem saber.
Majestade. Vejo aqui tanto desenvolvimento, tantas tecnologias, tanto luxo,
tanto refinamento, tanto glamour. Como se explica isto?
– Ah! O senhor também
estranhou... Todos estranham, mas nós tivemos que higienizar o Inferno. Aquela
coisa de chifre, enxofre, bode preto, velas vermelhas já estava muito superada;
não podia mais continuar. Lembro-me de ter lido em Graciliano Ramos que uma
criança pergunta à mãe sobre o Inferno e ela responde pintando isto aqui com
cores tenebrosas, horripilantes. Então a criança interpela a mãe como pode um
nome tão bonito ser um lugar tão horrível. Ora, o questionamento da criança
trouxe um inshigt para nós. Óbvio que alguns métodos de punições de
recalcitrantes foram mantidos nos princípios, mas inovados nas práxis.
– Agora, se a inspiração
estética veio da Literatura, a sofisticação científica e tecnológica é
inspirada na NASA?
– Claro que não! Os cientistas
da NASA são muito burros, cometem vários erros de cálculos, principalmente, lançam
satélites com defeitos, precisam mandar astronautas para repará-los, deixam cair
equipamentos constantemente, carecem de baterias para suas máquinas funcionarem.
Aqui não! Temos, por exemplo, um sistema de captação de energia no núcleo do
Sol. Toda a energia que utilizamos aqui vem de lá, além dos nossos vários
satélites autossustentáveis, indestrutíveis, por exemplo. Utilizamos muitas
coisas da Terra, mas sem subestimar as nossas potencialidades.
– É...
– Vamos jantar!
Findo o jantar e as abluções de praxe, o
sanfoneiro foi conduzido ao Salão VIP de Eventos Especiais para a apresentação
do show exclusivo às hostes da realeza. Acordeom de primeiríssima qualidade,
Zequinha Puxado espraiou seu repertório riquíssimo. Ovacionado de forma entusiástica,
abriu-se-lhe a inspiração ao pé do peito e ele cantou: No meu Cariri/quando a chuva não vem/não fica lá ninguém/somente Deus
ajuda/se não vier do céu/chuva que nos acuda/Macambira morre/xique-xique
seca/juriti se muda.
Nesse momento da interpretação, o
Diabo-Rei passou a chorar muitíssimo de maneira copiosa e compulsiva.
Furundunga fez um sinal discreto e o sanfoneiro interrompeu a música. Passado
algum tempo, o Diabo- Rei foi se recompondo aos poucos, tirou um lenço do bolso,
pediu água e voltou-se para o músico:
– Seu Zequinha, onde fica
situado o Cariri?
– Nesta música, é no Ceará. Há
uma outra parte que é na Paraíba.
– Seu Zequinha, o que fazem os
governadores do Ceará para erradicar essa calamidade, esse flagelo tão
implacável?
– Majestade, que eu saiba nada.
Além de roubar o dinheiro público e massacrar os mais necessitados. É claro...
– Seu Zequinha, a partir de hoje
o senhor fica sendo o meu músico exclusivo. Eu nunca tinha visto alguém tocar e
cantar com tanto sentimento. Capiroto, mande o pessoal da tesouraria remunerar
muito bem ao Senhor Zequinha; em dólares. De modo que além de garantir o seu
sustendo folgado, ele possa adquirir três grandes fazendas para sua fortuna:
uma em Quijingue, uma em Tucano e uma em Euclides da Cunha. Fale com o pessoal
para ser muito generoso para com ele. Ah! Mande firmar o contrato de exclusividade.
– Sim, Majestade.
– Majestade, eu quero retornar logo depois
da apresentação para o grande público. Eu vou logo procurar comprar as minhas
fazendas e me apresentar para o povo sem aquele aleijão desgraçado.
– Sim! Sim... E seja muito bem
sucedido.
– Furundunga, diga ao Cramulhão
para reunir todos os que foram governadores do Ceará, e já estão aqui, leve-os
ao Pavilhão da Caldeira, mande aquecer o sarrafo grande a mais elevada temperatura
e enfie no rabo de cada um deles.
– É aquele cilindro que enfiou
no rabo de Idi Amin Dadá?
– Não! O que meteu no do
senador!
– O da Pasta Cor de Rosa?
– E dos Atos Secretos.
– Aí é
bronca!!
– Majestade, com a vossa
licença!
– Fale, Moço.
– Houve um acidente fatal com um
bimotor no aeroporto de São Bernardo do Campo na tarde de ontem. Não há
sobreviventes; resguardados os da tripulação; os que eram passageiros foram
mandados para cá.
– Sim! Mas não passaram pela
triagem?
– Não, vieram direto...
– Mas, e a Norma?
– São Pedro falou que não
precisava, era para virem direto pra cá.
– Sim! Mas tem uma Norma...
– São Pedro falou que é Ordem do
HOMEM!
– Aí não se discute. Quantos
são?
– Sete. É um pessoal envolvido
com o assassinato de um prefeito do ABC.
– Ah! Sei... Vamos lá ver?
– Vamos.
– Luís Inácio!!!?
Serrinha, 24 de junho de 2015.
*PROFESSOR
DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII
DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB EM EUCLIDES DA CUNHA.
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