Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

O REINO DE BRASÓFILA E AS INTEMPÉRIES DO TEMPO



BASÓFILA
                                               por José Plínio de Oliveira*
               
                                

                 – O Negão caiu na arapuca...
                 – Quando, cara?
                 – Na madrugada de hoje.
                 – Porra!! E a mercadoria?
                 – Raparam tudo!
                 O Dono do Morro ficou desesperado, pôs a mão na cabeça, retirou-se para o canto da sala e prostrou-se em atitude de pensamento. Passado algum tempo, determinou:
                 – Manda um avião no Paulinho da Força, sim!
                 Paulo Ricardo do Nascimento era um jovem negro de origem nordestina, levado para o Reino de Brasófila na primeira infância,por força do fenômeno migratório que atingiu em cheio a sua amada família. Era chamado de Paulinho da Força porque na infância e na adolescência havia trabalhado com o seu pai em uma borracharia no Meyer, mas quando se pôs rapaz passou a frequentar “as bocas” com uma galera mais esperta. Logo conheceu o Passeio Público e passou a gostar da grana que por lá rolava; passou a gostar das noitadas devassas, desregradas, requintadas, dos carrões de luxo e dos privilégios extravagantes. Foi agraciado com uma babilaque de assessor do Tribunal de Justiça e outros cargos públicos muito bem remunerados, sem ter que trabalhar em nenhum deles, mas elevando o seu prestígio perante a Comunidade como um Malandro perfeito. Paulinho jamais abandonou o Morro e os “Amigos dos Amigos”, a que prestava grandes favores.
                 – Paulinho, eu quero o Negão na rua!
                 – Mas como foi o lance?
                 – Não sabemos ainda, a gente só sabe é que o Negão não pode ficar no grampo.
                 – É... A gente tem que ver isso aí...
                 – Ver porra nenhuma, cara. Eu quero o Negão na rua! Sim!
                 Quatro dias depois, Paulinho da Força foi ao desembargador com quem mantinha um relacionamento homo afetivo pétreo (Data Vênia!!!), e determinou que fosse concedido um Habeas Corpus urgentíssimo, mandando libertar o preso e devolver as três toneladas de cocaína também apreendidas pela polícia durante a operação. Dito e feito, a liminar foi concedida em tempo record e,“por falta de provas”, o encarcerado foi posto em liberdade conforme os termos da sentença proferida pelo magistrado que argumentou nos termos da provisão: o recurso liminar é um remédio jurídico concedido pela Lei, a fortiori, para sanar os danos cometidos pelo Estado contra o cidadão e a sociedade. Houve uma grande festa no Morro com direito a samba, pagode e baile fank.
                 – Porra, cara! Como foi que você conseguiu isso tão rápido?
                 – Se liga Mané... Bofe é pra essas coisas, sim... No Reino de Brasófila tudo se arruma.
                Posto em liberdade, Negão passou a preocupar-se com o destino da droga:
                – Cara, e se quando o mérito for julgado resolverem oficiar a apreensão do material?
                – Caralho! Ninguém tinha pensado nisso... Manda chamar o Filósofo Alquimista!
                – Essa hora ele ainda deve tá na farmácia.
                – Então liga pra ele e manda passar, aqui quando sair de lá, sim!
Logo que cerrou as portas da sua drogaria na Praça Saens Peña, o Filósofo Alquimista foi ao Morro.
   – E o que é que queres que eu faça?
                – Bem... Como você tem a drogaria, tem o laboratório e é Alquimista nós pensamos que você pode transformar a coisa, isentando o Negão da responsabilidade, porque se eles pegarem a pura de volta vão foder com a vida do parceiro, vender para outros grupos ou ficar pra eles mesmos. Nós queremos cortar o barato deles. Vamos deixar uma farinha de estoque porque se...
                – Farinha, parceiro? Mas não é pra...
                – De trigo! (Risos).
                – É muita coisa?
                – Três toneladas.
                – Bem. A gente precisa de um tempo para ver isto.
                – Mas, por quê?
                – Porque em Brasófila o tempo tem as suas intempéries.
                – E o que é o tempo?
             – É... A gente pode transformar em outra substância e jogar no mercado de cara limpa. Até pegando uma licença da ANVISA e etc.
                – Papo reto?
                – Mas é claro, mano!
– Você é o cara! Deixa eu te dar um abraço... é isso aí, cara, é isso que tem que ser feito.
                – Mande levar amanhã! Mas, e se o pessoal do sexto batalhão vier em cima?
                – Tá tudo arregrado. O comandante tá arregrado; até o bombeiro tá no arrego. E sabe quem é que vai fazer a segurança da transferência do material?
                – Não!
                – O chefe do serviço de investigações da delegacia com a sua equipe. Comigo é assim: eu pago bem, mas tem que trabalhar.
                Uma semana depois, a drogaria passou a comercializar o PAPELONATO DE NARCOTRAFILINA que, inicialmente, passou a fazer a cabeça da rapaziada da Tijuca, depois, passou a atrair a galera da Zona Sul e por fim a aristocracia bilionária de todo o Reino de Brasófila, da Europa, da Ásia, da África e até da Oceania.Todavia, as filas intermináveis que passaram a se formar diante do estabelecimento levaram a polícia a desconfiar.Então o Estado destacou um investigador experiente do Departamento de Combate e Repressão a Narcóticos para averiguar as suspeitas; mas o tira era Cabeção, habituado a “cheirar” nas “bocas” abjetas dos Arcos da Lapa. Ele entrou na fila como qualquer mortal, adquiriu doze unidades do PAPELONATO, levou para a delegacia de polícia e deu uma Cafungada no “bagulho”. Poucos minutos depois estava “nas nuvens”.
                – Malandro, que barato é este?
               No dia seguinte, amanheceu na frente da drogaria e adquiriu mais quatro unidades. Chegando à delegacia, chamou o delegado-chefe e ofereceu a droga. Depois de cheirar com a bonomia de velho viciado, o chefe de polícia pediu mais.
– Cara! Onde conseguiste? Porra, isto é coisa fina.
                – E tem mais: não dá aquela leseira braba, aquela maromba safada. E tem mais! Não causa aquela dependência mórbida, compulsiva,você só vai se tiver a fim.
                – Cara!Isto é o maior barato... Me dá mais aí que eu vou levar para o Chefão dar uma cafungada daquelas. (Risos).
                Os agentes públicos do Departamento de Narcóticos sempre que apreendiam grandes quantidades de cocaína pura, separavam parte para o próprio consumo e vendiam o excedente para outros grupos de traficantes. Sempre grupos rivais aos que haviam caído nas malhas da polícia.
                Quando o diretor do Departamento percebeu a aproximação do subordinado, adentrando ao gabinete, viu que ele trazia algo nas mãos e presumiu que fosse mais uma apreensão de rotina.
                – Prova essa aqui!
                – Porra! Cara, isso muito fino, é Light mesmo. É da Colômbia?
                – Advinha.
                – Do México.
                – Qual é, cana dura! É da Tijuca.
                – Da Tijuca?
– Da Saens Peña.
                – Puta que pariu... Me dá mais aí, pra mim levar pro Secretário de Segurança.
O Secretário de Segurança de Segurança Pública tirou um prato limpo do armário, passou álcool, pôs fogo para a assepsia completa, limpou-o com um lenço de papel, espalhou o pó e enfiou o nariz.
                – Bota o outro papelote, rápido!
                Depois da quarta cafungada, o Secretário entrou em “Nirvana”.
                – Manda trazer três, rápido, que eu vou levar para o Senhor Governador.
             – O Homem também é Cabeça?
                – E nesta porra quem não é! Rápido!
                O governador realizou o ritual do prato e sentou a pua no pó. Lembrou-se dos velhos tempos em que ia fazer a cabeça na Vila Cruzeiro. Depois de algum tempo, já muito dentro da estrela azulada, arguiu ao Secretário:
                – Como foi que o teu pessoal conseguiu isso? Manda publicar um decreto-lei promovendo todos eles ao nível mais elevado da carreira policial!
                – Acharam com um sujeito da Tijuca que é proprietário de uma drogaria.
                – Quem é esse cara?
  O Filósofo Alquimista ganhou aquele epíteto no Morro por ser muito dado a pensamentos exponenciais e a experimentos com variadas substâncias. Viveu por muitos anos na Comunidade até tornar-se comerciante próspero, indo morar em Vila Isabel, sem jamais deixar de visitar o Morro com frequência, auxiliando o seu muito querido povo e filosofando sobre a vida. O seu nome verdadeiro era Carlos Castilho Cazumbáe dizia a tradição confiável que a sua linhagem ancestral remotíssima teve origem no coração da África. Na maioria era constituída por alquimistas, astrólogos, artistas, artesãos, griots, sacerdotes do culto afro, poetas, músicos, mercadores e caravaneiros. Por volta de muitas eras antes de Cristo, parte da grande família resolveu transferir-se para a região do Delta do Nilo no Norte da África. Estando lá assentados passaram a praticar as suas habilidades peculiares, sendo logo reconhecidos pelo governo e incluídos na plêiade dos sábios de Faraó.Segundo a tradição local, a eles foram atribuídas as edificações das pirâmides, dos sarcófagos e dos demais monumentos artísticos das hostes reais.
             Com a ascensão de José, o Hebreu, à chefia do governo, os ancestrais remotíssimos do Filósofo Alquimista passaram a ocupar espaços cada vez mais privilegiados, tornando-se grandes colaboradores do chefe de governo. O jovem Hebreu os tinha em grande estima e dessa forma as descendências daqueles prestimosos colaboradores mantiveram-se muito próximas da linhagem do Povo de Abraão radicada no Egito.
             Com a morte de José e as transformações ocorridas no governo do sucessor de Faraó, como se sabe, os Filhos do Patriarca Hebreu foram submetidos ao cativeiro, entretanto, os laços de amizade e de respeito mútuo entre eles e os parentes do Filósofo Alquimista tornaram-se cada vez mais resistentes. E a liderança de Moisés veio a consolidar ainda mais aqueles laços de gratidão e de fraternidade a ponto do grande líder da Diáspora torná-los cientes da saída do seu povo do cativeiro do Egito para a Terra Prometida e da ocorrência das pragas para submeter a Faraó. Portanto, os velhos amigos do Povo Hebreu retornaram para o centro da África, de onde haviam partido há milênios, quando o Egito foi assolado pela praga das rãs. Todavia, narra-se no Livro do Comum que o grande Moisés se casou com uma moça negra daquela antiga família centro-africana, depois de ter se divorciado da filha de Ragüel, com quem havia contraído núpcias na mocidade.
  Passados muitos séculos, o flagelo da escravidão abateu-se sobre a África. Colhidos por ela os ancestrais do Filósofo Alquimista foram trazidos para Brasófila. E agora encontramos o ilustre descendente prosperando e preservando a memória daquele povo tão antigo e de tanta importância para a História Viva.
             – Dá para arrumar mais daquele negócio? (O Governador havia terminado de receber o Secretário da Segurança Pública para despachos de rotina).
             – Excelência, eu não sei, porque o homem da drogaria conseguiu autorização definitiva do Ministério da Saúde, licença da ANVISA e por aí afora. Mas eu vou ver se consigo.
             Poucas horas depois, um preposto da Secretaria de Segurança estava prostrado diante do Filósofo Alquimista.
             – Não! Agora a coisa vai mudar de figura, sim! Eu estou coberto e alinhado, tenho autorização do Ministério da Saúde e licença da ANVISA. O negócio agora é o seguinte: só vou trabalhar com o pessoal da classe A. Alta grana, sim. Vai ser tudo personalizado, o cliente tem que vir se cadastrar e vir pessoalmente comprar. Adquiri um espaço vip altamente requintado e sofisticado; com todo o glamour; lá na Vinte e Oito de Setembro, somente os clientes cadastrados têm acesso. Estamos oferecendo, além da coisa, serviços altamente sofisticados de bar, restaurante, salão de jogos, sauna, massagens e etc. Mas, interessados têm que vir se cadastrar, sim.
             – Cara, mas eu vim pegar para o governador...
             – Bem!Aí eu faço uma exceção! Não posso permitir que aquele cara com aquele pé descomunal entre em meu novo estabelecimento, senão vai estragar tudo. Estou recebendo príncipes e princesas do mundo todo, a nata da sociedade europeia também virou minha cliente.Entendes?
Nesse ínterim, a Egrégia Corte Suprema de Justiça do Reino de Brasófila está imersa em caloroso debate sobre a liberação das drogas:
             – Fumar maconha é crime?
             – É crime.
             – Não é crime!
             – Cheirar pó é crime?
             – É crime.
             – Não é crime!
             – Tomar pico é crime?
             – É crime.
             – Não é crime!
             – Fumar crack é crime?
             – É crime.
             – Não é crime!
             No limiar do intervalo,defrontaram-se no corredor do Egrégio Tribunal o relator e um colega mais enfático:
             – Nobre Colega, libera logo essa porra... Eu não aguento mais as falas daquela velhinha, defendendo intransigentemente os valores incólumes da Tradicional Família Mineira. Porra! Eu já tou de saco cheio daquela velhinha... Libera logo essa porra!!!
             – Mas, Nobre Colega, hás de convir que a liberação desse negócio vai desgraçar com as vidas das futuras gerações.
             – E que futuro a Cleptocracia do Reino de Brasófila oferece às atuais gerações?
             – Morrer de acidente de moto, perecer de overdose de cocaína e falecer do vírus do HIV.
             – Então, libera logo essa porra!
             De volta ao plenário, os ministros estavam divididos, porém, o relator foi implacável, levando o decano da alta Corte de Justiça a argui-lo:
             – Nobre Relator, com a devida vênia, considerando a defesa eufórica que Vossa Excelência faz da liberação dos usos das drogas, Vossa Excelência é dado a dar um tapa no baseado?
             – Eu sou, mas, quem não é? Para os pecados de Vossa Excelência, aqui mesmo nesta Egrégia Corte de Justiça quem não bafeja, bodeja.





Serrinha, 21 de setembro de 2015

*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB NO MUNICÍPIO DE EUCLIDES DA CUNHA.



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