Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

SERAPIÃO CUPERTINO



SERAPIÃO CUPERTINO por José Plínio de Oliveira*
 

                SERAPIÃO CUPERTINO APOLINÁRIO DE MELLO faleceu aos 118 anos de idade no dia 08 de setembro de 2014 em sua residência na Avenida Juscelino Kubitschek em Canudos. Ainda na parte da tarde que antecedeu a noite da sua partida ele pegou um cacumbu de enxada e pôs-se a cuidar de alguns pés de milho que havia plantado no jardim da casa de que se ocupava com abnegada devoção. Depois daqueles cuidados, tratou do banho, trocou de roupa, tomou a sopa, assistiu aos telejornais e recolheu-se às orações e à rede de dormir. Em toda a sua existência jamais aceitou repousar em “cama mole”, como costumava dizer. Foi uma bisneta de cabelos “alvos como a neve” que deu por ele falecido, estranhando não ter ouvido os seus movimentos habituais pela casa às quatro horas da manhã.

               Seu Serapião Cupertino, como era mais conhecido, nasceu dois meses antes do confronto entre combatentes conselheiristas e militares da Primeira Expedição contra Canudos em Uauá, comandada pelo tenente Pires Ferreira. Logo que nascido, secou o leite materno como o leito do Riacho das Umburanas naquele tempo de estiagem. Então a sua genitora recorreu ao adjutório de uma amiga muito querida, integrante do clã dos Mota de Canudos, que tinha dado à luz na mesma ocasião. Foi assim que o pequenino Serapião ganhou uma Mãe-de-Leite antes de ser levado à Pia Batismal pelas mãos do Padre Sabino, por ocasião de uma Desobriga na Igreja do Belo Monte.

              Não obstante a cultura da violência endêmica que historicamente sempre tem assolado o grande sertão baiano – principalmente a violência hedionda perpetrada pelo Estado de Direito –, há de se reconhecer que as sociedades do meio rural e do campo desta parte do Nordeste sempre cultivaram relações de solidariedade muito sólidas; o que garantiu a primazia da vida mesmo nas situações de extrema necessidade coletiva. Dessa forma, as pessoas do povo organizavam-se como possível em torno das necessidades prementes que incidiam, por exemplo, não somente sobre um membro da comunidade. Assim é que o indivíduo vinha à luz sob os cuidados de uma parteira; a quem reverenciava por toda a vida com Mãe de Parto. E se ocorria a escassez do leite materno nos primeiros dias de vida, o recém-nascido era atendido por uma mulher que havia concebido na mesma ocasião. Então a criança ganhava uma Mãe de Leite. De sorte que se o indivíduo conseguisse superar as várias endemias, o mal-de-sete e outras situações de risco de morte chegava à infância tendo três mães: uma Mãe Biológica, uma Mãe de Parto e em situações de necessidades uma Mãe de Leite. Foi o caso de Serapião Cupertino.

               Logo na adolescência Serapião passou a trabalhar com o seu pai no comércio de couro, farinha e rapadura, viajando de Canudos a Tacaratu em Pernambuco, e dali a Jeremoabo na Bahia para atender a grande clientela. Com a morte do velho pai, Serapião assumiu as lindes do comércio ainda moço e envelheceu na labuta. Fez fortuna.

               Sempre trajando terno de linho cinza ou bege, coberto por chapéu de Panamá e dedilhando um rosário-de-coco, de que nunca se apartava, Seu Serapião Cupertino, como era mais conhecido e mais amado pelo povo, envelheceu cavalgando pelas estradas do sertão e comandando uma tropa de azêmolas sempre precedido pela burra-madrinha, cadenciando as Ave Marias pelos acordes do cincerro da mula. Espírito caridoso e misericordioso, místico e devoto da Santa Cruz de Monte Santo jamais deixou de socorrer a quem quer que lhe pedisse ajuda, mas não participava, não apoiava, nem emitia a mais leve opinião sobre política, governo e Estado. E prosseguia ele ao lado dos seus tropeiros erguendo o chapéu de quando em vez para responder a saudações respeitosas:

               – Seu Serapião, como vai Vossa Senhoria?...
               – Eu vou navegando.

               Certa ocasião, uma camponesa pobre que tratava de uma roça, ao vê-lo passar pela estrada no comando da tropa de burros, lembrando-se de um grande auxílio desinteressado recebido das mãos daquele Peregrino Resoluto dos Caminhos do Sertão, em um momento de extrema necessidade, parou de carpir, descansou a mão na ponta do cabo da enxada, ergueu o chapéu-de-palha de abas largas como um pequeno guarda-sol, e com os olhos imersos em lágrimas ergueu a fronte e clamou aos céus:

               – Louvado Seja Nosso Senhor Jesus Cristo! Abaixo de Nosso Senhor, da Virgem Maria e do Bom Jesus Conselheiro, dos seres nascidos de mulher neste mundo ninguém é maior que Serapião Cupertino! Louvado Seja Deus!

               De fato, na tarde daquele mesmo dia, quando percorria o trecho da estrada entre Salgado do Melão e Canché, de rota batida para Canudos com a tropa escoteira, depois de uma entrega de mercadorias, um cangaceiro de carabina cruzada ao peito saltou à frente de sua montaria:

               – O Sinhô é Seu Serapião Cupertino?
              Com a serenidade inabalável que lhe era peculiar, respondeu:
               – Para servir a Vossa Senhoria...
               – O Capitão qué falá com o Sinhô.

               Logo um grupo de cangaceiros saiu do mato e arrodeou os tropeiros. Então o que parecia liderar o grupo fez sinal para que todos, homens e animais, entrassem por uma vereda numa caatinga fechada, tendo Seu Serapião na dianteira.

               Havia chovido abundantemente no Sertão de Canudos. A vereda achava-se espremida por arbustos frondosos e espinhentos. Lá no fundo um amplo espojeiro limpo e muito bem cuidado, abrigando cangaceiros aboletados sob quixabeiras e umbuzeiros elegantes como grandes varandados de casas de fazendas. Grandes panelas no fogo e mantas de carne-de-sol, dependuradas nos galhos das árvores, além de embornais, surrões e outros trens dispostos pelo terreno. Lampião ergue-se de sobre um couro de boi estendido como um leito para receber o ilustre visitante:

Lampião – Senhor Seu Serapião, homem de grande valor, hoje Minh’alma se expande como gravatá em flor! Ao receber Vossa Graça neste recanto de mato, cá está o meu recato ao saudar Vossa Excelência e o faço com a reverência digna a um Imperador.
Serapião Cupertino – Seu Capitão Virgulino, Imperador do Sertão, eu é que me sinto honrado com esta nobre acolhida! No rumo da minha lida sempre prezo a cortesia, sou devoto de Maria, servo do Senhor Jesus. Embora sendo tropeiro, tenho à mão este Rosário e carrego a minha cruz sob denso corolário.

Lampião – Senhor Seu Serapião, eu também já fui tropeiro. Conheço bem vosso ofício, e tenho fé tanto quanto as circunstâncias permitem.Tenho como meu limite a Santa Cruz do Calvário e não tiro o meu Rosário desta franja da algibeira, mas as máculas primeiras levaram-me a esta sina. Instâncias indesejáveis me fizeram cangaceiro. Mas onde quer que eu vá pelas plagas desta terra, muito embora estando em guerra, ouço falar vosso nome de valor admirável no zelo do povo pobre. Vosso nobre coração fez de mim vosso cativo, eu vivo neste flagelo atento ao vosso respeito. A dor que dói no meu peito apraz-se nos vossos feitos. 

Serapião Cupertino – Seu Capitão Virgulino, então somos irmanados. Pode ser que nos separe os costados desta vida que em sendo às vezes sofrida nos aparta nos ofícios. Porém, na mesma medida em que sei vossa bravura nestes tempos de loucura que assola este sertão, também ouço e dou de mão da bondade de voss’alma, perante os sacrifícios dos pobres da nossa chã.

Lampião – Senhor Seu Serapião, meu chão é estremecido por farrapos de remorsos. Eu sinto doer nos ossos os ônus dos meus pecados, pois lhe digo atormentado: a chama da minha dor queima como cansanção. A par do meu coração há uma chaga incurável, aberta pela implacável injustiça dos poderes.  Foi assim que os meus haveres de trabalhador do campo descambaram para o crime, para o ódio e para o mal. Na boca do bacamarte e na lâmina do punhal eu teci tantas desgraças como fios de calhamaço, mas agora que a morte me persegue a cada passo, o que faço da revolta que desfiei desmedida?

Serapião Cupertino – Seu Capitão Virgulino, inda que por mal lhe diga... Eu não sei bem o sentido de uma revolta incontida, costurada a sangue frio na alma de um sertanejo. O meu siso mais cordato sempre primou pela Paz. Por mais que eu tenha sofrido nas vertentes do flagelo, anelo por uma via que me conduza ao regaço de uma harmonia serena. É certo que eu tenho pena dos feitios do cangaço, mas eu não faço juízo daquilo que não conheço.

Lampião – Senhor Seu Serapião, eu muito vos agradeço por tantas palavras sábias havidas dentro peito. Meu jeito de cangaceiro sabe ser reconhecido a quem o bem tem levado sempre no rumo direito. Por isso é que vos chamei para a minha confissão. Sinto que a morte me ronda, a minha sorte definha, como cuia de farinha em final de feira livre. O meu alvitre esmorece, o medo me assalta e fere. Meu olho cego vagueia no entorno da escuridão. Os macacos já me cercam, as volantes me fustigam, eu estou numa fadiga já com sabor de aflição. Estou com os dias contados. Vou viver escasso tempo. Sinto uma lança rasgando-me por dentro do abdômen. Eu me faço de valente pra não fraquejar meu nome. Seu Serapião, me diga, de que vale um ente vivo sabendo-se um homem morto?

Serapião Cupertino – Seu Capitão Virgulino, a morte é envolta em mistérios; assim como a vida sofre de profundas intempéries... Pensada neste sertão de tantas inglórias lidas, o que podem ser as vidas nesse liame tecido? Mas, se a vida é descosida como fio de caroá por turbulências agudas não se pode declinar. Se as ziquiziras do mundo não devoram carne humana, uma embira de pindoba não prende suçuarana! Morrer ou labutar vivo não faz muita diferença.

Lampião – Senhor Seu Serapião, certo é vosso carretel, mas se a linha da costura se engastou no papel, há fagulha de esperança por uma nesga de céu?
Serapião Cupertino – Seu CapitãoVirgulino, o céu é uma conquista à vista de cada linha pontuada nesta vida. Na trajetória do mundo fazemos nossas escolhas, nossas folhas de tecido trazem nossa sorte escrita.

Lampião – Senhor Seu Serapião, e se a pena entortou, e escreveu versos torpes na poesia do destino, há a alma de penar por impróprios desatinos?

Serapião Cupertino – Seu Capitão Virgulino, a pena de linhas tortas muitas vezes escreve certo! Mais perto dos olhos turvos está a curva de um texto; uma visão de clareza vai depender de um contexto que nós mesmos conformamos. A pretexto da leitura da sorte de cada um há uma letra escondida nas profundezas da alma. A letra pode estar no opaco, sua interpretação na Luz. É na curva do destino que escolhemos nossa cruz. Quanto aos desatinos nossos só quem conhece é Jesus.

Lampião – Senhor Seu Serapião, Deus vos dê a Mão Direita. Eu vou partir para morte na espreita dos macacos, mas levo as vossas palavras como plena garantia de que uma Estrela Guia será meu eterno Norte.

Serapião Cupertino – Adeus, Senhor Capitão, Deus lhe dê Boa Viagem!


                                                   Serrinha, 21 de fevereiro de 2016


*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.




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