Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

A PONTA DO LÁPIS


  A PONTA DO LÁPIS  Por José Plínio de Oliveira*
                                                                 



              – E o menino trabalha?
              – Não senhor. Ele tá no PETI.
              – E o que é o PETI?
              – O PETI é o Programa de Erradicação do Trabalho Infantil. É uma forma que o governo encontrou para tirar as crianças do trabalho e levar para o   estudo.
              – Ah!...
              – O senhor não sabia?
              – Não. Mas estudar não é uma forma de trabalho?
             – Não! Aqui trabalhar é o cara pegar no pesado mesmo. É suar a camisa no cabo da enxada, é comer o pão que o diabo amassou na labuta do motor de sisal, é curtir o sol a pino na quebra da pedra, é viver por este mundo do jeito que Deus manda!

              Maria de São Pedro deitou o olhar sobre o chão e mergulhou em um silêncio maior do que aquele mundo de costume; depois cuspiu de lado, ergueu   a fronte e pôs-se a olhar para um pé de mandacaru que ficava na extremidade    do terreiro. A árvore coberta de um verde crepitante estremecia o tempo salpicada de migalhas de canícula. Então, dos seus olhos muito graúdos e ainda mais negros do que frutos de quixaba começaram a descer pesadas lágrimas.
              
– Aqui, seu Moisés, estudar é coisa de luxo; pra muito pouca gente. É como que não fazer nada. Não pensar no dia vindouro, viver no desafogo de não ter o que cumprir. A ponta do lápis para a pessoa pobre é como vara de mandacaru, o cara tem que pegar jeitoso pra não se espinhar e só pouca gente pode ter esse traquejo. Só agora é que veio essa...

              – Você me faz lembrar o tempo da minha infância: A gente vivia para    as bandas de onde hoje é a Terra Branca, mas um dia na feira de Riachão meu pai se desentendeu com um coletor municipal e furou o sujeito. Era gente da política, chamaram os soldados e meu pai levou três tiros. Morreu na soleira da  porta do mercado de cereais. A notícia nos chegou por um cunhado de minha  mãe; no meio da noite vieram uns homens e puseram fogo na casa da gente.  Então ganhamos o mundo e fomos parar na estação de Jacobina; lá cada um  pegou seu rumo. Eu ainda não tinha sete anos, acompanhei umas famílias de retirantes que embarcaram em um trem. Depois de algumas baldeações, eu não tinha noção do tempo que passava, quando em uma manhã em que tremia de frio encolhido dentro de uma gamela, abandonada sob uma marquise da Estação do Braz, passou um Rabino que me tomou pela mão e recolheu-me à sua casa.

              – Isso já em São Paulo?


            – Já em São Paulo... Foi aí que eu ganhei o nome de Moisés e entrei para a escola, adotado por aquela família de judeus. Um dia de sábado na Sinagoga, o Rabino me chamou à frente e proclamou perante a comunidade judaica de  São Paulo que entendia a Diáspora do povo hebreu pelo deserto, guiado por Moisés, através da representação da minha pessoa de menino que também  peregrinou por outros “territórios áridos”. E ele ilustrou a sua pregação dizendo ainda que o Moisés bíblico antes de ser um grande profeta e um grande pastor foi,   antes de tudo, um menino. Um menino recolhido de um pequeno cesto à deriva   nas águas revoltas do Rio Nilo, e exclamou:

              – “Este Moisés que eu vos apresento agora veio de Riachão do Jacuípe nos sertões da Bahia! Como que trazido pela correnteza do rio da exclusão humana, da violência, do ódio, do crime. Eu o encontrei como que dobrado no interior de uma espécie de cesto na gare da estação de trem do Bairro do Braz, por isso ele recebeu este nome. Além disto, ele vem de um povo que, de algum modo, vive nos dias de hoje realidade semelhante àquela vivida pelos filhos de Jacó        nos tempos do cativeiro e do Êxodo. Mas houve um tempo em que Javeh enviou  um profeta para libertar o seu povo, portanto, esperamos que este Moisés que  aqui está volte um dia para Riachão do Jacuipe e proclame naquelas terras a libertação do seu povo que também é povo de Javeh”...  
        
              – Passei a estudar muito, na escola e em casa. Só que no seio daquela família judia o estudo era considerado trabalho. “Onde está Moshé?” Perguntava o Rabino. Alguém respondia: “Ele está trabalhando”. Eu estava com os livros e os cadernos. 

              – Ô! Seu Moisés...

              – Pois é, Maria de São Pedro. Eu me punha à mesa para estudar e diante de mim havia um grande castiçal de prata. Uma peça importante do culto  judeu, semelhante a um pé de mandacaru com sete galhos, e eu às vezes contemplativo, via naquele símbolo da fé judaica reminiscências das minhas origens e passei    a estabelecer com ele longas conversações silenciosas, porque a única referência que eu guardei da paisagem destes sertões foi o mandacaru. Na minha cabeça, a   forma do castiçal hebraico lembrava um pé de mandacaru e eu lhe pedia notícias de minha mãe e de meus irmãos que se perderam pelo mundo, da nossa casa que foi incendiada, dos nossos bichos de criação e estimação, das árvores que amávamos como se fossem pessoas humanas e que até tinham nomes, de tudo que     abandonamos na noite da fuga. Em dias marcados pelo calendário hebraico, o Rabino acendia velas nele e a sala ficava inundada por uma luz muito especial, divina mesmo. Então eu ficava trabalhando as minhas lições e reconhecendo nas sombras que as luzes projetavam sobre as paredes as imagens de meu  pai,  de minha mãe, de meus irmãos, de minha terra, de tudo que havia no meu universo remoto.

              – Aí o senhor chorava? 

              – Não, Maria, não. Eu reencontrava tudo que pensava haver perdido... Tinha que me alegrar. Depois cresci e a minha família judia mandou-me para a Alemanha onde estudei medicina em Bonn. Passei por outras universidades e terminei lecionando por muito tempo na Universidade de Hamburgo; mas sempre guardei em mim a ideia de voltar para esta terra e assim reencontrar a gente, a pedra, o mato, o tanque, o rio, a relva. Reencontrar os pés de mandacarus, não como coisas somente revestidas de espinhos, mas como grandes castiçais dos sertões a emanar luzes, luzes, luzes de conhecimento e de libertação. Agora eu estou aqui em Riachão, Maria de São Pedro. Quem sabe não é para realizar a profecia do Rabino Shimon  Rollemberg, feita sobre mim naquela Sinagoga de São Paulo?

                                                                                      

                                                                           para Maria Adailza
           
                                                      

                                                            Serrinha, 02 de julho de 2005.


                       
*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.                                                             

                             

  
        
           
            

























































                                            










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