Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

DJALMA DUTRA 135

DJALMA DUTRA 135 Por José Plínio de Oliveira*
  

               
– Saia do armário, solte a franga, sente na boneca! Saia do armário, solte a franga, sente na boneca! Saia do armário, solte a franga, sente na boneca...
                Saulo Pacheco passou a ser despertado com aquelas frases repetitivas todas as manhãs no apartamento em que há tempos residia sozinho, na Rua Djalma Dutra, 135 em Copacabana, antes de sair para o trabalho. Mas não tinha a menor ideia de que lugar procediam. Logo no início, ficou um tanto perplexo, mas depois passou a escutar com mais acuidade e compaixão; embora aquela linguagem atrapalhasse a sua leitura bíblica e as suas orações matutinas antes de ir para o trabalho.
                Evangélico convicto, membro da Assembleia de Deus do Leblon, funcionário de carreia das Centrais Elétricas de Furnas, exercendo função na sede da empresa, no bairro de Botafogo onde chefiava um setor importante, Saulo Pacheco era um afrodescendente natural de Japeri na Baixada Fluminense que sempre demonstrou profunda compaixão para com a humanidade, mesmo antes da sua conversão ao Evangelho. Não fazia acepção de pessoas, engenheiro civil com cursos de Mestrado, Doutorado e Pós-Doutorado nas áreas de produções de energias hidroelétricas, nucleares e solares; também tinha ampla experiência em gestão operacional e recursos humanos, além de algumas leituras em questões de diversidades, orientações sexuais e comportamentos humanos. No entanto, aquelas frases ressoadas no início da manhã causavam-lhe estranhamento. No início daquele dia especialmente passou a presumir tratar-se de intensa movimentação homossexual em algum edifício da rua em que morava. Levantou-se, assentou-se na cama, passou a refletir e depois apanhou a Bíblia. A leitura devocional daquele dia era Isaías, 42, 3 – 5. Prostrou-se de joelhos.
                Logo que estacionava o carro na garagem da empresa, Saulo que chegava bem antes do início do expediente tinha o hábito de ir saudar ao Irmão Ezequias, funcionário antigo de Furnas, diácono da Assembleia de Deus de Vila de Cava, com excelente formação acadêmica em Teologia, ovelha do Pastor Josino Oliveira, e muito respeitado do funcionário mais humilde ao presidente da empresa. Seu Ezequias, como era mais conhecido, iniciou sua carreira de trabalho em Furnas como faxineiro quando chegou ao Rio de Janeiro vindo de Campina Grande na Paraíba ainda muito jovem, aposentou-se por tempo de serviço como chefe de portaria e continuou no exercício da última função, mediante contrato de vínculo de permanência, em razão da elevada confiança que lhe depositava a presidência da empresa.
                – A Paz do Senhor...
                – A Paz do Senhor, meu Irmão.
                Saulo Pacheco tinha na pessoa de seu Ezequias, além de Irmão de fé e grande amigo, também um grande orientador espiritual, por isso abriu o peito e confidenciou o que estava ouvindo do seu prédio nos inícios de manhãs. E o velho crente abriu o imenso coração paraibano espraiando compaixão, justiça e misericórdia:
                – Mas isso acontece todos os dias?
                – Das quatro e meia da manhã até às nove, segundo alguns moradores. Quando cheguei na entrada do elevador para vir trabalhar alguns já estavam lá para me relatar os fatos. O senhor sabe, Irmão Ezequias, sou o síndico do prédio; querem que eu chame a polícia, registre queixa na delegacia... 
                – Não! Pelo que ouço não é caso de polícia. Algum dos moradores já verificou do que se trata?
                – Não.
                – Neste caso, não julgueis para que não sejais julgados, o Irmão deve observar melhor; comprovar o que é que acontece e, se for o caso, levar a Palavra de Deus. Jesus veio salvar o que se havia perdido e a nossa missão é levar a salvação onde quer que ela seja necessária. Sede simples como a pomba e prudente como a serpente. Satanás está destruindo a muitas almas, mudando os costumes, corrompendo as virtudes, incitando a toda sorte de vícios malignos, principalmente nestes últimos tempos. O Irmão busque o discernimento, mantenha o espírito de oração e firmeza na Palavra, observe melhor, veja do que se trata para bem agir. Estarei orando a esse respeito...
                – Irmão Ezequias, Deus retribua ao Irmão por estas palavras sábias. Eu vou fazer conforme o vosso ensinamento e qualquer coisa...
                – Deus em Primeiro lugar!
                – Deus em Primeiro lugar! E os seus servos para servi-lo... A Paz do Senhor!
                – A Paz do Senhor!
                Na manhã seguinte:
                – Saia do armário, solte a franga, sente na boneca! Saia do armário, solte a franga, sente na boneca! Saia do armário, solte a franga, sente na boneca! Saia do armário, solte a franga, sente na boneca! Saia do armário, solte a franga...
                – Vem do 1103!
                – Tens certeza!
                – Sim...
                – Mas lá moram os refugiados sírios. Eles são mulçumanos respeitáveis, estabelecidos na região comercial do Saara?
                Um grupo de moradores do edifício achava-se à porta do apartamento de Saulo. O senhor Kakuei Kakuia, descendente de orientais e um dos mais respeitáveis condôminos estava indignado e irritadíssimo, ele é reconhecido cultor e praticante da Arte Samurai:
                – A pessoas que passam pela rua estão ouvindo este barulho aí. Isso não tá certo...
                Em face de tantos protestos e apelos, Saulo comprometeu-se em tomar providências imediatas; antes iria conversar com os moços para saber o que estava acontecendo e, a partir de então, tomar as providências cabíveis e justas.
                – Irmão Ezequias – já no trabalho –, o que mais me preocupa é o senhor Kakuei Kakuia... Ele pratica a Arte Samurai e costuma dizer que o problema do homossexualismo se resolve na espada. A problema da homofobia me deixa preocupado.
                – Irmão Saulo, o problema da homofobia no Brasil é de muito fácil solução, quero dizer, facílima solução.
                – Como assim, Irmão?
                – Pensemos: as elites brasileiras têm se declarado defensoras intransigentes e simpatizantes dos direitos das pessoas homossexuais. Ora, no Brasil já temos até leis que asseguram direitos homo afetivos e por aí afora. Pois bem, se é assim, as famílias favoráveis a essas demandas homossexuais devem obrigar o governo a criar um cadastro de famílias que podem assumir compromissos legais para adotarem um, dois, três ou mais homossexuais. Então, quando um homossexual assediar um garoto de programa, pivete, morador de rua, usuário de drogas, traficante, ladrão e por aí afora. Não mais ficará sujeito a práticas homofóbicas, agressões, violências, riscos de morte em locais de encontros inseguros. Pois o gay adotado passa a relacionar-se com o bofe na cama do casal que o adotar...
                – Ah! Entendi...
                – Então, tendo cedido a sua alcova e a sua cama para o gay relacionar-se com o seu parceiro em condições seguras, o casal ficará na sala atento a qualquer sintoma de comportamento homofóbico para acionar a polícia.
                – Sim!
                – Assim o Estado desativará o sistema de alarmes de roubos a bancos e o disponibilizará para a proteção homossexual. Logo, quando for o caso, assim que o casal protetor de gays acionar a polícia, ela estará a postos.
                – E como fica a Febraban?
                – A Febraban deve ter razões de sobra para abdicar dos serviços estratégicos e repressivos contra assaltos e roubos a bancos em favor da segurança dos homossexuais. A questão não é proteger os homossexuais e acabar de vez com a homofobia? Deixa a rede bancária se arrebentar!
                – Essa questão das famílias protetoras de gays...
                – Ah! Terão que ser as que estão no topo da sociedade: a do presidente do Supremo Tribunal Federal, dos Tribunais todos, do presidente da República, dos governadores dos Estados e do Distrito Federal, do presidente do Senado, das Câmaras dos Deputados federais e estaduais e tudo mais que for. Porque a questão é muito simples: a verdadeira homofobia é praticada pelo Estado, na medida explora a condição homossexual e a expõe à execração pública extremada, exagerada e desregrada. Além disso, a história tem advertido que em questões de sexualidades a humanidade manipulada pelo poder do Estado costuma agir assim, em alguns momentos escacara demais como ocorreu na Antiguidade Clássica, e aí veio o “saia do armário, solte a franga, sente na boneca”. No sertão da Paraíba se diz: “Lá ele!” Depois veio a Idade Média com a sua Inquisição: “agora vamos torturar, submeter a empalamentos, queimar nas fogueiras”. Na modernidade, ah... vamos aceitar as pessoas como elas são, liberar, tolerar. Veio o Nazismo, e então “vamos torturar e seviciar nos Campos de Concentração, matar nas câmaras de gás”. Todos os problemas humanos, sejam quais forem, devem ser pensados com Humanidade e, jamais, com modismos e banalizações!     
                – De fato, ideias brilhantes! Viva Deus e a Paraíba!
                – E o Ceará também.
                Passados três dia, Saulo Pacheco fez uma visita amistosa aos dois irmãos sírios. Os moços o receberam com toda cortesia e distinta consideração. Ibrahim Elias Sarkis e Abraão Abnadab Yosef Sarkis narraram sua história:
               Eram naturais de Antioquia e logo que nascidos a família toda transferiu-se para Luanda onde todos viveram por duas décadas. Depois, sempre unida, a família migrou para Alepo. Muito tempo depois, quando passaram a ocorrer as ações do Estado Islâmico, com a tomada da cidade, viram-se na iminência de serem decapitados. Foram salvos graças a recitações de versos do Alcorão. Mulçumanos praticantes, convictos e devotados foram poupados das lâminas. Mas com recrudescimento da violência e do ódio fugiram para a Turquia onde foram desprezados. A partir dali, hostilizados na Grécia, humilhados na Itália, ridicularizados na França, maltratados na Inglaterra e barbaramente reprimidos na Alemanha de onde a Igreja Católica os resgatou, trazendo-os para o Brasil onde foram bem acolhidos. Afeiçoaram-se ao país, acomodaram-se, estabeleceram-se, mas nos últimos tempos passaram a surgir alguns problemas de escrúpulo espiritual: a excessiva promiscuidade homossexual; jamais haviam imaginado uma terra com tão grande e desregrada população homossexual. Principalmente na Zona Sul do Rio de Janeiro onde passaram a residir. Chegaram a cogitar o retorno à Síria, mesmo tendo que submeterem-se às decapitações do Estado Islâmico. Todavia, um vendedor ambulante da SAARA persuadiu-os do contrário, advertindo-os: “Além disso, a Síria corre risco iminente de tornar-se Colônia Russa. Vocês iriam sofrer muito mais”. E logo os conduziu a uma Sessão de Umbanda em um Terreiro de Mesquita. Foi a salvação!
               Os moços assistiram ao culto afro e foram atendidos por Pai João de Angola, Orixá muito devotado e respeitado naquela “Banda”. Incorporado em um “aparelho” amigo e inicialmente sóbrio, o Velho Guia acolheu os rapazes sírios com extrema bondade e paternidade, principalmente quando soube que eles procediam do Oriente Médio, mas viveram por muito tempo na África. Logo pediu charutos e uma garrafa de marafo, acendeu um deles, “benzeu” os moços com fartas baforadas e depois serviu marafo como muita generosidade. Então o “aparelho” abusou da oblação gentil. No entanto, apesar da obsessão alcoólica do médium, o Preto Velho ouviu os dois refugiados com um desvelo e uma paciência tão envolventes que eles ficaram fascinados e atraídos tanto pelo Entidade, quanto pela Religião da Umbanda. Nunca jamais se sentiram tão Humanos, tão acolhidos e tão amados depois de tantos e tamanhos dissabores da vida. E ali mesmo, naquele momento, manifestaram ao Velho Pai João de Angola o pedido sincero de jamais deixar o Brasil e a sua proteção espiritual tão paternal, tão espiritual, tão divina; apesar de alguns problemas que traziam para aquela “Roda”.
               – Minzifi vai ficá!...
               O Preto Velho foi taxativo e tomou conhecimento da repugnância pelo homossexualismo que ameaçava banir injustamente os moços árabes do País do Carnaval. Portanto, prometeu resolver o problema recomendando-lhes uma “Simpatia”, para exorcizar o Rio de Janeiro de um mal que, aliás, tem injetado muita indignação no cerne moral do Estado Islâmico.
               A “Simpatia”, é um preceito do pensamento espiritual afro-brasileiro que atende a expectativa da fé na perspectiva do contraditório. Dessa forma, uma sentença mágica tensionada com firme pronunciação, resulta em produto contrário aos termos semânticos da pronúncia. Numa outra dimensão – fora do espiritual –, a Simpatia um sentimento profundo que atinge o âmago da alma e que somente o indivíduo de origem árabe pode sentir pelo Brasil. Aliás, convém não esquecer de que a primeira expedição náutica a deitar âncoras nos mares cariocas veio do mundo árabe, deixando sepultado na Pedra da Gávea o príncipe herdeiro da realeza árabe-fenícia, ou melhor, siro-fenícia que veio a óbito prostrado de joelhos e extasiado diante dos matizes variegados da fauna e do verde exuberante da flora fluminense. Consumadas as exéquias e o sepultamento de Sua Alteza Real, os árabes retornaram para o Oriente, mas, antes, inscreveram na Pedra da Gávea o epitáfio do príncipe e a declaração de posse da terra. De sorte que, historicamente, o Rio de Janeiro é um território árabe.
               No correr da noite, tendo abusado em demasia do marafo, o “aparelho” que já se achava um tanto borracho, confundiu Oriente Médio com Extremo Oriente e vaticinou o mantra: Saia do armário, solte a franga, sente na boneca! O que veio a gerar toda aquela problemática no edifício em que os dois refugiados sírios viviam. Todavia, esclarecidos os fatos, Irmão Saulo compreendeu a situação, mas suplicou-lhes silêncio obsequioso para o bem estar dos demais moradores. Logo os moços árabes concordaram com todas as exigências, o que encorajou Irmão Saulo a convidá-los para uma visita à Igreja. Agradeceram muitíssimo e recusaram com esmerada cordialidade, estavam fascinados pela Umbanda e não pretendiam jamais abdicar do aconchego espiritual alcançado junto a Pai João de Angola. Na semana seguinte, consultariam o Preto Velho para atenderem aos preceitos sagrados.
               Na noite da Sessão semanal, expuseram os fatos. O “aparelho” ou “cavalo” era um outro que aparentava zelosa sobriedade. O anterior morreu completamente bêbado, caindo de um trem da Central entre uma composição de passageiros e a plataforma da Estação de Deodoro. Então, o Velho Orixá fez esclarecer: “Não! Não era um mantra, mas uma Simpatia. E não devia ser evocada dentro de casa, mas diante da Kalunga Grande”, somente por três sextas-feiras e o Rio de Janeiro, deles, ficaria definitivamente livre da mácula. Os sírios decidiram cumprir a obrigação na Praia do Arpoador, mesmo envoltos por ondas gigantes de fumaça de maconha.
               No início da Semana da Pátria transferiram-se para a cidade de Nilópolis, por orientação do Pai João. Óbvio que de Angola. Logo depois, converteram-se à Umbanda, tornaram-se cidadãos brasileiros, foram apresentados aos Abraão, Sessim e Davi ainda por orientação do Pai Espiritual. Naquela perspectiva de elevada fraternidade, depositaram flores no túmulo de Farid, entraram para a Diretoria da Beija-Flor, desposaram as netas gêmeas do grande patriarca do clã Aziz-Abraão-Davi-Sessim-Farid e assumiram a exploração do jogo-do-bicho de Marechal Hermes a Paracambi.


Serrinha, 07/09/2016



*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.

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