Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

ALTO DA BOA VISTA



ALTO DA BOA VISTA
                                                             José Plínio de Oliveira*

 



                – Aqui em São Paulo não! Você não conseguiria jamais. O paulista pode ser muito cortês, muito cordial, muito civilizado, porém, se as nossas pretensões pessoais tocarem no Estado aí ele não cede. É uma característica intrínseca do cidadão paulista. O paulista é muito institucional. Agora, isso na Bahia você consegue sim! Se você se atrever a levar para a Bahia uma proposta que trate do desenvolvimento positivo do caráter humano, da ética, da moralidade, da dignidade, da civilidade e da primazia da elevação do humano você é rechaçada imediatamente, enxovalhada, execrada, ridicularizada... Mas essas coisas que você quer, eles aceitam numa boa. Eu vivi na Bahia por muito tempo com o meu general. Foi na época da caçada a Carlos Lamarca e Iara Iavelberg. Conheço a Bahia de cabo a rabo.

                Franklin jantava com a mulher de um renomado empresário da noite da Zona Sul do Rio de Janeiro. Ela tinha uma tara que se esforçava em realizar: queria transar com um dos seus amantes dentro de uma espécie de alcova luxuosa, edificada sobre uma base elevada, semelhante a um palco requintado e circundada de vidros corrediços com aberturas arejadas e instalada em um estábulo protegido por tapumes metálicos e repleto de excrementos de animais, já em adiantado estado de putrefação, para que ela pudesse sentir os odores enquanto fizesse sexo com o amante. Ainda exigia que a estrutura sofisticadíssima; digna de uma socialite da noite carioca; fosse suntuosamente decorada. Portanto, ela chegaria ao espaço em uma carruagem dourada, puxada por dois corcéis alvíssimos, enquanto que o amante a esperaria ao pé do suntuoso portão de entrada do haras, para fazer-lhe a corte, estender-lhe a mão e conduzi-la para a redoma. Também exigia que dentro da cavalariça fossem soltos garanhões insaciáveis, éguas, mulas e jumentas nos mais incontidos dos cios. Para melhor interpretar o seu desejo, chegou a recorrer a psicanalistas, psicólogos e outras terapias especializadas, presumindo sofrer de algum distúrbio da personalidade, entretanto, não obtendo êxito, decidiu assumir os apelos do que considerava “fantasia”. Porém, considerando os seus custos onerosos, passou a sondar os cofres públicos para financiar as suas orgias extravagantes. Sabendo que o amigo mantinha há anos um relacionamento homo afetivo com um dos generais mais influentes do Regime de Chumbo, tentava obter apoio oficial para as suas “fantasias.

                – Franklin, a propósito da Bahia, foi com o teu coronel que ocorreu um episódio em Feira de Santana?

                – General, agora general...

                – Sim! Desculpe, general.

                – Não. Não foi com ele. Foi com o comandante de um batalhão do Exército lá em Feira de Santana. Foi o seguinte: a elite aristocrática de Feira de Santana costumava promover eventos com trocas de casais em um clube de campo fora da cidade. Empresários, políticos, detentores de altos cargos públicos e personalidades de destaque na sociedade participavam daqueles eventos. O coronel foi convidado e aceitou. Também um empresário de Salvador, interessado em negócios naquele município foi convidado e veio. No correr da noite, depois da recepção e do lauto jantar, foram sorteadas as chaves das suítes em que já se achavam as esposas. Coube ao coronel a troca da esposa com a do empresário que veio da capital. Mas, todavia, alta madrugada, interagindo com a jovem que lhe coube, o coronel descobriu tratar-se de uma elegante e cara garota de programa que o dito empresário contratou em Salvador para passar-se por sua esposa. Então o coronel empunhou a pistola quarenta e cinco e saiu desesperado pelas dependências do clube, fazendo disparos à torta e à direita. Dizem que foi um inferno aquela madrugada, mas o que havia de ser feito já havia sido. Veio a polícia, mas abafaram tudo e a muito custo um mestre da Maçonaria conseguiu acalmar o coronel. Imagine você que o coronel era um gaúcho! Apontado nas fileiras do Exército como um grande Macho...

                – Caramba!!!

                – O SNI chegou a investigar o caso, mas, depois não sei o que aconteceu. 

                – Veja! Surgiu uma ideia na minha cabeça: tem uns caras da Bahia que frequentam o Hipopótamus. Uns artistas, uns políticos, uns membros do governo...

                – Aí! Tens os canais na mão. Na Bahia você consegue tudo...

                – Franklin, você mantém um relacionamento com o general desde muito moço, não é?

                – Sim.

                – Qual a razão de tanto poder e influência que ele detém no governo? 

                – Ah! Vem de uma longa trajetória, tudo teve início com ele...  

                Adolescente aristocrata de família abastada e aluno do Colégio Santo Inácio em Botafogo, tentou possuir à força no banheiro da escola um colega de classe. O fato foi levado à direção pela vítima, mas o pai do jovem tarado conseguiu contornar a situação. O velho tinha grande habilidade em acobertar as safadezas do filho. Ele continuou no colégio comprometendo-se a primar por uma conduta ilibada. Entretanto, tornando-se rapaz livre de compromissos escolares, descobriu as noites da Praça Tiradentes, o cinemas fuleiros da Rua da Carioca e os labirintos da Central do Brasil. Passou a relacionar-se com homossexuais da baixa estirpe nos antros das cabeças-de-porcos da Rua Pedro I; tornando-se um Bofe disputadíssimo no Pedaço; porque ao invés de extorquir homossexuais remunerava-os generosamente. Ainda levando-os a jantar e a lanchar no Café Nathalia, no Restaurante Giratório e em outros espaços requintados da noite carioca. E, também, a assistir pornochanchadas no Teatro Carlos Gomes, de Silva Filho.

                Filho de nobiliarquia de tradição castrense, chamou-lhe certo dia o austero genitor para comunicar-lhe que iria mandar-lhe em breve para a Academia Militar das Agulhas Negras, para honrar o nome do bisavô o marechal Anphilofius Pomphilio de Azambuja Mourão, de tão saudosa memória. Herói da Guerra do Paraguai, amigo do Imperador Pedro II e detentor de méritos e condecorações inumeráveis. O jovem quedou a fronte e não pronunciou palavra, somente refletiu em silêncio os rumos da sua vida. Daquele dia em diante, passou a frequentar mais assiduamente a área da Central do Brasil. Ali adentrava ao mictório repugnante onde homossexuais passavam horas a fio, fingindo estar urinando para examinar os órgãos genitais de quem ali ia servir-se, oferecendo-se ao coito.

                Coitado de quem vindo do subúrbio carioca ou da Baixada Fluminense, desembarcando do trem e necessitado, era obrigado a aliviar-se no mictório imundo da Central do Brasil! No entanto, surpreendia a todos aquele play boy elegante, moço branco de porte de nobre europeu, vindo da Zona Sul do Rio de Janeiro, “pegar um veado” naquelas instalações sanitárias repugnantes, para fazer sexo com ele em um hotel barato da Senador Pompeu.

                – Não te esqueças jamais de que o teu avô paterno era primo carnal do Senador Vergueiro! Político brasileiro da mais enrijecida ENVERGA... tosse... A DURA! Disse-lhe o pai no dia em que o deixou diante do corpo-da-guarda da Academia Militar. Sabes como foi que o Vasco da Gama destituiu Pedro Álvares das pretensões ao comando da conquista das Índias?

                – Não.

                – SACA A DURA CABRAL! Essa é a arma mais eficaz na conquista da carreira militar. Nunca te esqueças... 

                – Compreendo, meu pai...

                Durante os primeiros períodos de Academia, o futuro general-de-exército portou-se com uma disciplina impecável, conquistando a admiração dos superiores hierárquicos e o respeito devotado dos colegas de curso. Logo passou a fazer ótimas amizades com esses e como ocupava a parte de baixo de uma beliche encostada à parede que lhe foi destinada no alojamento, solicitou e obteve permissão para circundá-la com um pesado cobertor, introduzindo uma das extremidades sob o colchão da parte de cima e deixando a outra quase rente ao piso, formando uma espécie de come quieto. Para tanto alegando necessidade de proteção de incidências de luzes que lhe causavam graves desconfortos durante o repouso concedido pelo Regulamento Militar.

           A militaridade com que se portava caiu no agrado fácil da chamada Comunidade de Informações do Regime Militar que acompanhava os indivíduos desde o início da formação, para que a instituição não viesse a criar outros Távoras e Prestes.

                Prestimoso ao toque de silêncio, o moço recolhia-se ao seu come quieto e por uma fresta punha-se a espiar os movimentos de colegas que em trajes menores circulavam pelo alojamento. Nessas oportunidades masturbava-se a bel prazer; até que na calada de uma noite aplicou uma “gravata” em um colega que voltava do banheiro e tentou conduzi-lo à força ao seu come quieto. A vítima reagiu, bradou impropérios em alta voz e chamou o plantão do alojamento que chamou o comandante-da-guarda que, por sua vez, chamou o oficial de serviço. Este encontrou o “agressor” caído ao chão, contorcendo-se de acessos convulsivos. Mandou chamar o plantão médico, o jovem foi socorrido e conduzido para a enfermaria.

                Na dia seguinte apurou-se que o cadete teria sofrido um pesadelo, foi acometido de um surto psicótico, perdeu a consciência e, portanto, incorreu no evento que o levou baixar ao nosocômio militar. Toda a Escola sensibilizou-se com a saúde do colega e tendo sido informado do episódio, o pai veio do Rio de Janeiro para visita-lo. Então, sentado ao pé do leito, ouvia do filho esclarecimentos sobre o acometimento do surto. Depois da narrativa, olhou-o fixamente o pai e esboçou um riso irônico, o moço cobriu a cabeça com o lençol e o velho despediu-se. Cinco dias depois, o moço voltou a exercer as suas atividades discentes, devendo continuar pernoitando na enfermaria para observação médica. Passados quinze dias obteve alta. O comandante da Academia mandou chamá-lo para uma conversa.

                – Pra cima de mim não! Você queria era comer o garoto... A fruta que você gosta, eu como até o caroço. Eu também sou chegado. Pra cima de mim não!

                – Suponhamos, Senhor Comandante...

                – Vamos dar uma caminhada pelas áreas de campo do quartel, para conversarmos melhor.

                – É uma grande honra para mim, senhor.

                Naquela manhã de Setembro, a Mantiqueira beijava os vales e as florestas com uma brisa amena. O hálito sublime da Mantiqueira também deitava sobre a relva miúda aromas de ternuras serenas como nardos puros, especialmente exalados para aquele momento. Os vales da Mantiqueira eram semelhantes a grandes vasos de alabastro e o perfume fluía para os céus como que levando preces em favor da natureza humana à beira do abismo. Dali a cinco dias o Brasil estaria comemorando a Semana da Pátria, com os porões dos quartéis abarrotados de presos políticos agonizando sob a égide das sevícias e torturas inomináveis, perpetradas por algozes insanos, trogloditas abomináveis “a serviço da pátria”. A Semana da Pátria tentaria lançar o seu manto emporcalhado sobre os vales da Mantiqueira; tentaria sufocar o seu perfume impávido, mas a Montanha reagiria com o mesmo testemunho secular de quem teve o seu dorso torturado, dilacerado por bandeirantes, sertanistas, caçadores de índios, mercadores de escravos, genocidas, bisbilhoteiros de esmeraldas e assassinos de paisagens.

                Naquela manhã de Setembro, os aromas dos vales da Serra da Mantiqueira passariam a auscultar as mazelas dos recônditos do coração humano em face da proximidade despida entre mestre e discípulo.

                – Quando pediste ao major Fonseca permissão para proteger a tua cama com um cobertor circundante, logo pensei: “esse cadete tá com ideia de jerico”. Montar um come quieto dentro de um alojamento militar, porra, é muita cara de pau! Pensei. Somente um cara “entendido” é capaz de tal façanha. Então lembrei-me dos meus tempos de juventude. Esse cara “é dos meus!” 

                – Senhor Comandante, há tempos venho-me defrontando com esta realidade. Eu que fui aluno do Colégio Santo Inácio em Botafogo...  
             
                – E daí? Eu saí do Jardim de Infância para o Colégio de São Bento! Toda a minha formação escolar foi em colégio religioso, no entanto, uma semana depois de concluir o segundo grau já me achava na Central do Brasil para assediar gays naquele banheiro podre e leva-los a foder naquelas espeluncas do Campo de Santana. Eu morava perto, morava na Tijuca... Eu penso que nem mesmo os padres são capazes de acreditar nos valores que ministram, porque também passei a frequentar e a encontrar figuras de elevadas hostes da alta sociedade e do governo na Cinelândia, além da Central, é óbvio. Cara, não ficou ponto de gay dos Arcos da Lapa, Aterro do Flamengo, Praça Tiradentes, Rua da Carioca, Avenida Passos, Edifício Balança-Mas-Não-Cai que eu não frequentasse. Entrei para esta Academia e toda a vez que tinha folgas prolongadas, lá estava eu.

                – Então nossas vidas se entrecruzam.

                – É óbvio. Por isto te chamei para conversarmos. Logo percebi que és um cara maceteado.

                Naquela manhã emoldurada pelos ares da Mantiqueira, o jovem comandante da Academia Militar abriu as comportas do seu coração para o discípulo confidente. Mas, todavia, dos vários espaços de instrução da Escola, discentes e mestres contemplavam embevecidos a generosidade paternal de um Comandante-Diretor a assistir a um discípulo convalescente, a caminhar com ele pelas áreas de campo arejadas do quartel, para ajudá-lo a recuperar-se.

                – O senhor ainda está enfrentando essa realidade?

                – Bem. Eu tenho dificuldades em te responder a essa pergunta, mas estou realizando leituras de obras clássicas e elas estão me levando a profundas reflexões.

                – Por exemplo?

                – Meu caro nós somos vítimas de um sistema perverso, somos fabricados para servir a um sistema vagabundo. Manipulados por ele, marionetes dele. Veja, por exemplo, nas escolas de confissão religiosa nos condicionam a tantas regras, tantos conceitos, tantos preconceitos, tantos escrúpulos, tantos medos da ira de Deus, tantos ônus de pecados, tantos remorsos, tantos temores de castigos eternos e tantos casuísmos que ao sair dela, estranhamente lançamo-nos a toda sorte de devassidões e desregramentos, como que para nos desonerarmos das sobrecargas insuportáveis que nos foram atribuídas e nos vingarmos de Deus. Na vida militar nos tornamos ateus inveterados, não obstante toda a formação recebida em escolas católicas. Cara, há um insight nisso daí. É imprescindível aprofundar estudos nesse sentido. Veja, nós, jovens bem nascidos de classe média alta, estudantes de escolas particulares caras, play boys com carros e motos, frequentadores de clubes requintados, acesso fácil a garotas e garotos da nossa classe social. Por que somos levados transar com gays que fazem trottoir no mictório podre da Central do Brasil ou na Praça Tiradentes? Qual o porquê disso? Como se explica isso?

                – É... Comandante, o senhor consegue imaginar que algum dia poderemos nos libertar destes estigmas humilhantes?

                – De que jeito? Veja bem! Eu sou casado, tenho filhos, mas não abro mão do meu veado, fora daqui, é óbvio! E mesmo assim, tendo-o à minha disposição, já tava de olho naquele garoto que você queria comer. É uma coisa que vai nos dominar sempre, não tem jeito. Você cortou o meu barato! Porém, é claro que eu jamais iria cantar o menino aqui na Escola; a minha condição social, a minha patente, o comando desta Academia e a carreira que me é acenada são grilhões que me submetem ao Sistema Militar. Mas há algo ainda em mim de inexplicável nesse sentido. Você sabe... Tenho pensado que é exatamente nesse prisma que o sistema me submete. Dobra o meu ponto fraco. Penso que é justamente nessa dobra que o sistema fratura a minha humanidade e me manobra como pedra de um tabuleiro de jogo de damas. Você sabe? Essas nossas taras sexuais fazem parte do jogo. Na verdade, arcamos e refletimos todos os ônus das taras repugnantes da própria sociedade a que servimos. Por isto me dou conta de que não tenho vontade própria, não tenho domínio sobre mim, não tenho ideologia, não tenho sentimento, porque até o meu sentir está emaranhado nas mãos do sistema social. Somos fabricados pela sociedade para lhe servir de fachadas emblemáticas. Enchem o meu dólmã com medalhas de honra ao mérito e condecorações militares. Sou como uma Árvore de Natal do sistema. Desde o início da carreira fui treinado para não pensar, não refletir, somente cumprir ordens. Se você fizer uma pergunta a um oficial no extremo Sul do Rio Grande do Sul e a um outro no extremo Norte do Amazonas a resposta será rigorosamente idêntica: somente matar, fazer guerra, torturar, “combater o inimigo” e nada mais! Pensar nunca! Quem sabe se os nossos desvios sexuais não procedem dos condicionamentos mentais a que somos submetidos? Somente agora passo a descobrir que o verdadeiro inimigo está dentro em mim, foi inoculado em mim de forma gradativa, metódica e sutil sem que eu me desse conta. Agora estou inteiramente aguilhoado. Estou te dizendo tudo isso, em confiança, porque temos muito em comum e você está sendo literalmente aprisionado para ser no futuro o que sou hoje. Porque o Poder que nos aprisiona é uma Bastilha. Será que ele cairá um dia? Estou abrindo o meu coração para você pelo muito em comum que temos. Cheguei aqui como aluno, do mesmo jeito que estás chegando agora. Nunca em toda a minha vida militar pude abrir o meu coração como faço neste momento. Talvez eu precisasse muito deste momento, talvez esteja fazendo para você uma confissão como as muitas que fiz no Mosteiro de São Bento. Eu era criança. Mas agora como adulto é para que te sirva de exemplo. Nunca falei destas coisas para ninguém, mas agora estou mergulhando em leituras clássica profundas, o que nunca havia feito antes... Fiz-te uma catarse completa para te alertar! Estás em um ambiente de caserna, portanto, sujeito a legislação militar. Deves ser cuidadoso e cauteloso. Tens um longo caminho a percorrer.

                – Senhor Comandante, fico muito grato...

                Tendo concluído a formação acadêmica, o futuro general-de-exército veio servir como 2º tenente na sede da I Região Militar, no Rio de Janeiro. Logo foi cooptado pela Comunidade de Informações, passou pelo SNI e depois foi para o DOI-CODI, tornando-se um dos torturadores mais cruéis, covardes e perversos do Regime Militar do Brasil.

                – Foi nessa ocasião que vocês se conheceram?

                – Não! Quando nos conhecemos ele já havia sido promovido a capitão, já havia se casado, tinha dois filhos e a esposa estava esperando o terceiro. Então ele queria que eu ficasse mais tempo no Rio de Janeiro com ele. Porém, o meu trabalho era aqui em São Paulo. Aí ele arrumou para mim um concurso no Itamarati, para que eu ficasse à disposição dele como assessor diplomático. Quando ele foi promovido a major houve um incidente com um neto do marechal Lott e aí nós tivemos que ir para o exterior. O neto do marechal envolveu-se com a luta armada, foi preso e estava sendo torturado quando a mãe do jovem comunicou o fato ao avô que veio a uma dependência do DOI-CODI na Rua da Relação e matou a tiros o capitão que torturava o seu neto. Foi um inferno aquele dia...

                – Poxa!!!

                – O meu major era o chefe daquela seção, portanto, o governo o nomeou Adido Militar da Embaixada do Brasil em Teerã, até que a poeira assentasse. Então ele convenceu a esposa a permanecer no Rio de Janeiro por conta da educação do filhos e eu fui com ele para o Irã. Porém, com o passar do tempo, a polícia secreta dos Aiatolás passou a desconfiar das nossa relações e o governo deles pediu a nossa saída do país. O Itamarati nos transferiu para a França. Lá ele foi promovido a coronel, retornamos para o Brasil quando o governo precisou dele na Bahia. Logo ele foi promovido a general.

                Encerradas as operações na Bahia, o general voltou para o Rio de Janeiro, foi agraciado com o comando de um Regimento e adquiriu um apartamento luxuoso no Alto da Boa Vista, com olhar privilegiado para a Floresta da Tijuca, onde passou a dar vasão às suas taras sexuais, tanto com o Franklin quanto com outros gays que assediava. O imóvel era utilizado somente para aqueles encontros, a família do general residia no Leblon e Franklin – o seu boy preferido – em Copacabana.

                No apartamento do Alto da Boa Vista, decorado suntuosamente com motivos eróticos e sensuais, o general promovia orgias pesadas em finais de semanas escolhidos. Logo na sexta-feira determinava vir o seu gay preferido e às vezes contratava lésbicas na Mem de Sá para se relacionarem simultaneamente na mesma suíte ampla em que ele fodia o seu veado. Nessas ocasiões, remunerava muito bem as moças, entretanto, obrigava-as a praticarem as obscenidades mais torpes, para satisfazer ao seu ego erótico. Em pelo coito com o seu parceiro, o general vociferava para uma das lésbicas:

                – Chupe ela toda!!! Eu quero ver você chupando a boceta dela toda!

                Certa vez, durante uma orgia, o general obrigou a guria a fazer o papel de fanchoni e vice versa. Depois obrigou o seu parceiro a fazer “sanduíche” com as moças. Ele sobre a fanchoni a penetrá-la e a guria a “roçar-lhe” por trás, fazendo o general entrar em estado de incontrolável excitação eufórica a gritar:

                – Fode a boceta dela, Franklin, mete a pica toda!

                Logo após, empurrou a guria para o lado e introduziu o seu pênis na bunda de Franklin, enquanto este copulava com a fanchoni. Gozaram ao mesmo tempo. 

                Em geral esses bacanais tinham início às sextas-feiras e término nas manhãs de domingos quando as pessoas convidadas começavam a ir embora, ficando somente o general. Franklin era o último a sair, porque o general amanhecia o domingo arrasado, urrando como uma fera abatida pela dor. Sujo, imundo, em estado deplorável, o general atirava-se completamente nu sobre um tapete no canto da sala. Conhecedor antigo de suas taras, o parceiro homo afetivo cobria-o com o Pavilhão Nacional que ficava hasteado no meio da sala, conforme exigência há muito prévia e fechava o apartamento, e ia para sua casa, deixando a general a gemer e a contorcer-se com um cão agonizante, durante todo o dia e a noite do domingo.

                Em certa ocasião, mandou o general pintar no centro da parede de uma das suítes um pênis ereto, sustentado por dois testículos possantes, semelhante aos pênis cultuados pelos butaneses em celebrações religiosas. Embaixo da “obra de arte”, mandou escrever: Abraçado ao canhão, morre o artilheiro. Em alusão ao capitão Salomão da Rocha, herói da Guerra de Canudos e mito por excelência da historiografia castrense. Só que o general não sabia que a Narrativa do Cotidiano Contemporâneo de Canudos revela que Salomão da Rocha não morreu abraçado ao canhão por heroísmo. Cercado por jagunços de Antonio Conselheiro armados de foices, facões, espingardas, fuzis e ferrões; malferido, ensanguentado e fustigado o capitão Salomão da Rocha tentou escapar desesperado, mas não encontrou forças, tombando mortalmente sobre a peça de artilharia. Entretanto, quando o general trazia às ocultas do parceiro homo afetivo estável um homossexual provisório da Central do Brasil ou da Cinelândia para fazer-lhe sexo oral sob a pintura da parede, em pleno orgasmo gritava a plenos pulmões: “Morre artilheiro, morre abraçado ao Canhão!”

                Findas as jornadas eróticas do Alto da Boa Vista, o general chegava ao Regimento na manhã de segunda-feira em estado colérico ferocíssimo. Prendia logo a guarda-do-quartel por não haver-lhe prestado a continência merecida, e o corneteiro por não haver executado o toque da sua chegada com o devido entusiasmo. Trancafiava-se no gabinete e, pelo menos durante três dias, não recebia nenhum membro do Estado-Maior para os despachos de rotina. Determinava ao ordenança trazer-lhe as refeições para o próprio gabinete. Sentava-se próximo a uma janela que lhe oferecia ampla vista para o Pavilhão Nacional hasteado em frente. Punha-se a contemplá-lo embevecido, mas, se por acaso, pilhasse alguém a atirar uma ponta de cigarro no imenso pátio, chamava o ordenança para fazer a entrega de um instrumento metálico ao infrator, que devia permanecer circulando pela área e coletando todos as pontas de cigarros que encontrasse no chão; até que um outro militar incidisse na mesma falta para o que passava-lhe o instrumento.

                No quarto dia o comandante deixava o gabinete e passava a circular pela caserna, depois, reunia os oficiais, despachava os expedientes e dava ordens para que a partir da manhã seguinte a tropa fosse posicionada em forma para as operações militares das “Paradas Diárias”. Estas seguiam-se por semanas a fio, até que o comandante viesse a submergir em outra jornada de orgias no Alto da Boa Vista.

               Tropa em forma, tendo à vanguarda o Pavilhão Nacional com a devida Guarda de Honra, o comandante passava-a em revista ao som de dobrados militares, depois tomava o seu lugar no Alto do Palanque de Comando com o seu Estado-Maior de onde tinha uma Boa Vista de toda a tropa. Dessa forma, dava início às intermináveis preleções austeras, sempre discorrendo sobre a Moral, a Honra, o Brio, o Pundonor Militar e os Valores Militares a serviço da Pátria. Daí em diante, também passava a enaltecer a Revolução Redentora, a Bandeira Nacional, o Hino Nacional, a Carta Magna Nacional, os Símbolos, os Signos e as Armas Nacionais do Brasil, convocando a tropa a defende-las com o sacrifício extremo da própria vida. Na verdade, as Armas Nacionais do Brasil eram fuzis ordinários Mauser, fabricados pela indústria bélica alemã. Ainda a bem da verdade: tanto As Armas quanto os barões assinalados no Brasil têm outros significados. “O militar!” Continuava o general, “tem o dever moral de sacrificar-se heroicamente na defesa da Bandeira Nacional, símbolo maior da Pátria Brasileira. O que valem as nossas vidas diante do Pavilhão Nacional?” Nessas ocasiões, emocionava-se visivelmente, mas prosseguia: “O soldado é, antes de tudo, um defensor bravo, honrado, intransigente, imbatível e invencível na defesa do Pavilhão Nacional do Brasil, portanto, não poderá jamais tergiversar para com a sua incolumidade moral, a sua honra, a sua dignidade e o seu valor intrínseco na defesa da Bandeira Nacional!”

                Completamente tresloucado, o general-comandante persistia em gritar aos soldados:

                – A Honra! A Glória, A Guerra! O Combate ao Inimigo! A Vitória... 

                Certa manhã, interrompeu bruscamente o discurso e esbravejou:

                – Prendam esse subversivo! Apontando com o cetro real de comando para um soldado magérrimo e pálido que se achava em forma no meio da tropa. Ele está pensando impropérios e injúrias contra a Carta Magna Nacional, o Hino Nacional, as Armas Nacionais e a Bandeira Nacional!

                Os trogloditas do Serviço de Informações avançaram contra o soldado Severino encapuzando-o, retirando-o de forma, introduzindo-o em uma viatura descaracterizada e conduzindo-o à Bastilha da PE, para “averiguações”. Tratava-se de um jovem nordestino franzino, trabalhador rural humilde, semianalfabeto, simples e ingênuo que migrou do município de Catolé do Rocha na Paraíba, para tentar a sorte no Rio de Janeiro e, chegando o tempo de Servir à Pátria, foi recrutado para o serviço militar obrigatório. Em conversas tímidas com os colegas costumava referir-se ao comandante como “O General Militar”. Aqueles colegas cariocas costumavam pilheriar com o Severino dadas a sua palidez e magreza, a que ele respondia com bom humor, cantando trechos de uma “música” do Nordeste: Eu me criei comendo abóbora, guabiru e mariola... Alguém acrescentava:

                – Quando era possível encontrar abóbora e mariola. Naquele mundo de caatingas predomina é o guabiru mesmo.

                Na semana seguinte, um cabo que ia levar o expediente para a Bastilha da Polícia do Exército, de volta ao Regimento, confidenciou a alguns colegas de confiança que o Severino havia sido morto na PE. Submetido a sevícias com empalamento, sofreu hemorragia e veio a óbito. Na noite daquele dia, o seu corpo ia ser incinerado com pneus descartados, atrás da Serra do Gericinó.

                Na manhã do outro dia, o Regimento achava-se em forma para ouvir os discursos do general-comandante. Este deu ordens para que a Guarda de Honra marchasse para diante do Palanque de Comando, guarnecendo o Pavilhão Nacional, secundado pela Banda de Música. Nesse momento, o general desceu do Palanque e perfilou-se diante da Bandeira Nacional. Todo o Regimento também perfilou-se e, por ordem, a Banda de Música executou o Hino Nacional Brasileiro. E então o comandante discursou para a Bandeira Nacional, concluindo a saudação com os olhos rasos d’água e a voz embargada:

                 – Mas se ergues da Justiça! A clava forte! Verás que um filho teu não foge à luta! Nem teme! Quem te adora! A própria morte! Oh Pátria Amada! Idolatrada! Salve! Salve!

                Ao que a soldadesca passou a clamar desesperadamente em uníssono: “Salve! Salve a Pátria! Salve o Hino Nacional! Salve a Bandeira Nacional! Salve as Armas Nacionais!” Ao cabo de que, o general deu ordem ao oficial que comandava o desfile para reentronizar o Pavilhão Nacional à vanguarda, seguido pela Banda. Logo subiu ao Palanque, olhou a extensão da tropa para ver se havia algum “subversivo” a pensar “impropérios e injúrias” e vociferou:

                 – Ao brado retumbante!

                A que o oficial subalterno logo entendeu como ordem de marcha. Esta alongou-se pela avenida militar do Realengo, semelhante a uma monstruosa lagarta acinzentada, ávida de aplacar a sua fome na vegetação verde-abundante da Serra do Mendanha, com a sua placidez servil e obtusa, o seu silêncio de pedra, a sua passividade absoluta perante as garras do devorador.

                Antítese do Horebe e de Sião, a Serra do Mendanha é uma testemunha compungida de todas as formas de atrocidades que os Poderes Oficiais têm perpetrado naquela parte do Rio de Janeiro. Sem jamais pronunciar um Decálogo em favor da vida humana, sem jamais oferecer o abrigo de uma caverna a um Elias perseguido, ameaçado e retaliado pelo Sistema do Ódio Implacável, a Serra do Mendanha corre o risco de entrar para a geografia da vergonha.

                Ai de ti, Serra do Mendanha, que negaste abrigo ao guerrilheiro urbano, mas ofereceste sepulcros clandestinos aos assassinados sob torturas nos porões da Ditadura Militar.

                Ai ti, Serra do Mendanha, que negaste uma porção de terra ao lavrador famélico, mas ofereceste ao sopé de ti sítio aprazível ao Álvaro Valle, para os seus momentos de prazeres com garotos pobres da Zona Oeste.

                Ai de ti, Serra do Mendanha, que sorveste o sangue da mulher sequestrada no Morro da Mangueira, violentada e morta por ter sido testemunha ocular da chacina policial no Buraco da Lacraia.   
                  
                Passados trinta dias da morte do Soldado Severino, Franklin se achava no gabinete do seu general, quando recebeu um telefonema da amiga socialite:

                 – Esteve no Hipopotamus o secretário de governo da Bahia. Falei com ele, conseguiu tudo para mim, tudo por conta do Estado. Vai ser em um haras na Ilha de Itaparica. Franklin, achei um jeito nele... Será que ele é?

                 – Claro que é... Menina, o Bofe dele mora no Othon Palace aqui no Rio. Tudo a expensas do Estado da Bahia. Da missa você não sabe a metade...

                 – Cara!

                 – Quando moramos lá, o general recebeu um relatório secreto do SNI, dando conta de que oitenta e cinco por cento dos homens do Poder eram homossexuais ou bissexuais.

                 – Por isso talvez é que a Bahia seja muito tolerante.

                 – Não! Aí é que muita gente se engana. A Bahia não é tolerante, a Bahia explora o homossexual, principalmente moral, ideológica e politicamente. Lá é assim, há uma aristocracia judaico-cristã predominantemente branca, ultraconservadora, reacionária, troglodita, opaca e blindada. Ela nunca concorre a cargos eletivos, não aparece em disputas eleitorais, mas, por trás das cortinas, manipula as linguagens culturais e as forças dos Poderes Constituídos. O Poder Panóptico judaico-cristão da seleta aristocracia baiana branca elege políticos homossexuais e bissexuais dissimulados, e também fabrica ocupantes de cargos dos demais postos de excelência dos Poderes Constituídos, para manipulá-los a seu bel prazer. Tudo sob a égide de uma truculência bárbara, cruel, perversa e irascível. Veja que os governantes da Bahia são crudelíssimos e perversos para com as demandas periféricas mais fragilizadas; tudo para atender às expectativas da Aristocracia Panóptica. Veja que a repressão policial da Bahia é a mais cruel e covarde deste Planeta, entretanto, a Aristocracia Dominante impõe às massas oprimidas aquele cinismo ridículo e leviano para iludir o mundo. São governantes gays ou bissexuais crudelíssimos, massacram mesmo! Suspendem fornecimento de água a flagelados em plena seca do sertão árido, negam assistência médica, matam de fome e sede para satisfazer a aristocracia privilegiada pelo Estado.

                 Duas semanas depois, em um 2 de Julho, a socialite da noite carioca já se achava no haras com um dos seus amantes, para dar vazão às suas taras, contando com todas as benesses do governo. Logo, achando-se no espaço erótico de Itaparica, em plena atividade sexual, cercada de garanhões, éguas, jumentas e mulas em cios desregrados, a mulher vislumbrou o pênis enrijecido de um garanhão na iminência de penetrar uma égua, deixou o amante na cama, abriu a estrutura de vidro e atirou-se no pênis do animal; caiu e fraturou uma perna. Foi deflagrada uma revolução na Bahia! 

                 O “acidente” mobilizou todo o governo baiano. O governador alvoroçado determinou que todas as Secretarias e órgãos públicos fossem disponibilizados para atender a “acidentada”. Grupamento aéreo, ambulâncias, forças de segurança, assistência médica especializada foram todos mobilizados. A mulher foi transferida em uma UTI aérea para o hospital particular mais caro de Salvador. Tudo às custas dos cofres públicos. Na manhã seguinte toda a imprensa do Sul e Sudeste do Brasil noticiavam os fatos.

                                                                                                                                 
                                                  Serrinha, 14 de julho de 2017
                                                    (Dia da Queda da Bastilha)

  
*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.                                              
                                                       

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