Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

TRACUPÁ


TRACUPÁ
                                                                             por José Plínio de Oliveira*


               Cheguei em Tucano em uma manhã de julho. Era dia de feira livre na cidade. Observava o movimento da janela do hotel em que me hospedei, o tempo ainda estava frio naquela parte do sertão baiano. Dia nublado. Cuidei-me, tomei café e saí para a rua; tinha ido à cidade a negócios da empresa em que eu trabalhava. Assim que pus os pés na calçada, vi um ancião muito avançado em idade tentando atravessar a rua, apoiando-se em um equipamento ortopédico. Ofereci ajuda, agradeceu-me gentilmente pondo a mão direita em meu ombro.

               – Morrerei na quarta-feira da próxima semana – disse-me o ancião – pensam que hei morrer de câncer. Mas um câncer é insuficiente para matar-me, tenho condições de vencê-lo a qualquer momento; prefiro não fazê-lo por convicções de foro espiritual. Hão de levar-me a um hospital em Euclides da Cunha quando ainda estarei respirando, mas já estarei morto e rindo do esforço inútil que estarão fazendo. A inutilidade tem o mérito de iludir incautos e eu não quero fraturar um paradigma fossilizado pela mediocridade humana. Nasci nesta cidade de Tucano em 1912, vi a Coluna Prestes passar por aqui e aqui mesmo onde os homens da Coluna puseram os seus pés, o meu corpo descerá às entranhas do pó como tributo de elevada Esperança. Sei que a minha alma alçará voo para as alturas, no entanto, ela não poderia subir livremente antes que eu revele a um predestinado um segredo e um mistério. Este predestinado és tu...

               – Eu, Senhor Ancião? Tão alheio e tão inepto para questões de tamanha dimensão?

               – Sim! Para isto a Providência trouxe-te a este lugar. Moro na Praça Dom Bosco, número 33. Amanhã cedo irás procurar-me e dar-te-ei o segredo com que adentrarás ao Mistério.

               O Ancião retirou a sua mão de sobre o meu ombro, deu alguns passos pela Rua Nova e vi uma espécie de névoa envolve-lo; com a dissipação instantânea da bruma leve que o envolvia também ele desapareceu diante dos meus olhos. Nesse momento uma emoção suave atravessou o meu interior na forma de magia, como um vento sublime que sopra do Leste e varre uma espessa nuvem. Somente me restou um sentimento sereno de resignação e submissão absoluta. Eu estava inteiramente tomado por uma força simultaneamente intrínseca e extrínseca, voltei para o hotel, peguei a valise e fui dar conta das minhas atribuições profissionais sem – em nenhum momento – deixar de refletir sobre a missão misteriosa que me foi atribuída.

                Na manhã do outro dia fui procurar a casa do Ancião. Vi o número 33; conforme ele me havia instruído; mas logo transformou-se em 9996. Fiquei na dúvida, olhei outra vez e li 38949. Tomei melhor posição, apareceu 135879. Fiquei confuso, mudei para outro ângulo; era 37689 o que via. Entre surpreendido e atordoado fui rapidamente tomando nota dos números. Estava naquele afã quando surgiu uma velhinha muito branca e esguia andando pela calçada. Trajada com recato absoluto, a idosa estava coberta com um véu negro pontilhado de flores claras; trazia envolto no punho direito um rosário de madrepérolas e na mão esquerda um Breviário de brochura dourada. No dorso do livro, observei que havia inscrições, mas naquele momento não quis arguir a velhinha a respeito da minha observação.

                – Não procures encontrar um número pela mera articulação de algarismos – advertiu-me a velhinha quando achava-se mais perto de mim.

                – Como sabe a Senhora que eu tento localizar um número? Ela continuou a andar e eu passei a segui-la.

                – Tu o procurarás, e ele sofrerá mutações...

                – Como assim?

                – Um algarismo é sempre uma partícula simbólica infinitesimal do Universo. A infinitude do Universo é muito complexa, portanto, esse número que procuras transmuda-se a cada momento e ilude a cada lampejo relampágico de luz. E se a luz for difusa, maiores dificuldades de decifração encontrarás. É como se te puseste a calcular uma equação algébrica, cujo resultado jamais será igual a zero, mas também jamais será igual a qualquer número. Este é um dos prismas do Mistério! O zero não é tão somente o ponto inicial de uma busca, mas o limite extremo do fim de uma longa peregrinação do Pensamento. Por isto, terás de pensar agora a busca de um símbolo mais íntegro, mais compacto e não de um mero número quebradiço. Levar-te-ei à instância que contém o símbolo. Este é que passa a interessar-te agora!

                – Mas, um homem idoso...

                – Sei... vim pelo homem idoso para ajudar-te a decifrar o Mistério que te inquieta.   
     
                A velhinha continuou andando e eu a seguia como que preso a ela por um fio invisível que me levava após seus passos. Então pude examinar melhor as inscrições do dorso dourado do Breviário. Eram três, somente uma em língua vernácula, mas estranhamente entendia a todas. 

                Dizia a primeira: Para se chegar ao lugar do incomum é imprescindível atrelar o arado a uma estrela.

                A segunda: Que o teu caminho açoitado de estrelas seja povoado de certezas.

                A terceira: Sede luz para o que tem sede de luz, sede silêncio para o que deseja trevas.

                – Senhora, além da nossa, quais são as outras línguas escritas no dorso desse livro, pois que entendo todas elas?

                – Aramaico e Hebraico.

                Com pouco chegamos ao átrio do templo da Igreja Matriz de Tucano. Tudo estava tão iluminado...

                Eu seguia as pegadas da velhinha em direção ao Sacrário, dócil e manso com um cordeirinho de estimação; já não me dominava nem pensava mesmo, nem agia por mim próprio. Persignei-me diante do Sagrado porque ela o fez. E logo que findaram as suas orações, a velhinha tomou a chave do Sacrário e entregou-me.   
   
                – Eis o significado que contém o símbolo! Com ele abrirás a porta. Em tudo sejas Ágape!
                – O que é Ágape?

                – Ágape é a expressão maior do Amor.

                – E o que é o Amor?

                – No final desta jornada, alguém te dirá.  

                Proferidas essas palavras, a velhinha desapareceu como num passo de mágica e eu fui saindo do Templo envolto em uma atmosfera de placidez e serenidade indescritíveis, quando tocou-me a mão um Anjo Forte trajado de vestes alvas e reluzentes como pérolas. Então eu fui sendo elevado pela mão do Anjo até que dando por fé estava no pináculo da serra do Buraco do Vento. Lá embaixo, a cidade de Tucano era um oceano de luzes tão radiantes quanto sublimes, que se entrecruzavam, se harmonizavam e inundavam a Terra de abundâncias de matizes, cuja suavidade inebriante envolveu-me a alma. Uma chuva de estrelas cintilantes de variegados matizes caía sobre Tucano e a cidade emergia por entre a torrente de estrelas como uma mulher toda vestida de Sol. Então eu gritei para o Anjo Forte:

                  – Em que mundo estou? O que vejo?

                  – Erga a chave!

                 Quando a alevantei, todas as luzes que inundavam os céus de Tucano elevaram-se ainda mais e convergiram para a chave como um imenso feixe de arco-íris dos mais vários matizes. Então, daquele feixe convergido para a chave eclodiam relâmpagos de linguagens representando todas as Artes, todas as Línguas, todas as Letras, todos os Pensamentos, todas as Filosofias, todas as Teologias, todas as Ciências, todos os Mistérios...  Alguns eu conhecia pelas próprias experiências neste mundo, outros tantos contemplava pela primeira vez; mas todas as suas extremidades luminosas estavam agora em minha mão, beijando a chave do Sacrário. Foi então que o Anjo Forte deslizou comigo sobre as extremidades das luzes e pairamos levitando sobre todas as dimensões da cidade de Tucano. Naquele momento eu recebi uma espécie de Batismo que me habilitava a adentrar aos Mistérios ocultos da Serra de Tracupá.

                 Em Tracupá a Serra tem início como a cabeça de uma cobra gigantesca que se alonga até os confins de Araci, serpenteando as bordas do Quererá.

                 Contava uma antiga lenda dos ancestrais dos Índios Kaimbés, de Massacará, que quando esta imensa região do Sertão de Canudos esteve submersa pelas águas do dilúvio nelas vivia uma serpente de dimensões monstruosas que percorria todos os labirintos do abismo marítimo, alimentando-se de algas e espécies da fauna marinha. Todavia, com o correr das eras, as massas líquidas que cobriam a face do sertão passaram a ser drenadas gradativamente para formar o Oceano Atlântico. As demais espécies aquáticas foram acompanhando o curso das águas, mas, ao tentar fazê-lo, o Grande Monstro da Águas encalhou em uma elevação como a Arca de Noé no Monte Arará. Dessa forma, ela foi se tornado anfíbia e de acordo com a lenda Kaimbé sobreviveu por longas eras de Luas, até que as alterações bruscas das termometrias glaciais fizeram-na contorcer-se, expirar o último silvo pavoroso e ir fossilizando-se bem devagar. De maneira que, segundo os Tesouros Espirituais dos Povos Kaimbé, de Massacará e Kiriri, de Banzaê, os “urros” da Grande Serpente que faziam sair ventanias de fogo de suas narinas monstruosas, produziram estremecimentos e enormes rachaduras na terra, fazendo surgir o Buraco do Vento em Tucano e outras profundezas abismais pela região. Todavia, petrificada, a parte interna do ventre da serpente transformou-se em descomunal universo vazio, semelhante a um longo túnel; lacrado na parte que foi a cabeça do Monstro Marinho pelos rigores da erosão pluviométrica. E quando a Terra do Sertão de Canudos revestiu-se de verde, a Grande Serpente tornou-se uma imensa e alongada serra coberta de folhas, flores e frutos silvestres. Tendo ao largo do pano-de-fundo um horizonte permanentemente azul, demandando para o mar distante. Foi então que os humanos começaram a chegar para povoar esta terra.

                 Nos tempos em que Pirro, rei de Épiro, deu início a suas campanhas militares no Velho Mundo e alcançou o Norte da África, desterrou alguns povos, forçando-os a migrar para outras regiões do Planeta. Principalmente, indignado com as safadezas de Safo, Pirro lançou o seu aparelho repressivo contra algumas ilhas do Egeu, do Jônico e do Mediterrâneo. Naquele contexto de repressão implacável, o rei de Épiro ainda forçou grandes contingentes de cartagineses a migrarem para esta parte do que é agora o sertão baiano. Entretanto, graças à Diáspora Cartaginesa, esta terra alcançou um nível inicial espiritualmente iluminado com a chegada de grandes sábios e místicos, cujas luzes espirituais ainda se refletem sobre a cidade Tucano. Foi então que aquela Fraternidade de homens de elevada sabedoria e espiritualidade veio a descobrir o que hoje é a serra da Grande Serpente de Tracupá; adentraram ao que foi o seu ventre e dele fizeram o Centro Ocidental da Elevada Sabedoria.            

                  Quando dei por fé, estava com o Anjo Forte frente à cabeceira da serra que em eras remotas fora a cabeça do Monstro Marinho.

                  – Introduza a chave neste orifício! – ordenou-me.

                  Abriu-se uma grande porta, achamo-nos no limiar do Primeiro Umbral. Então, proclamou-me o Anjo Forte:

                  – Vem e vê! 

                  Um homem negro de avançados dias, trajando um longo manto azul de mangas igualmente longas, todo ornamentado com signos místicos bordados com fios de ouro e pedras preciosíssimas, ostentando um turbante amarelo com uma pedra de jaspe à frente, estendeu-nos a mão. Avançamos o passo e entramos em um grande salão de paredes revestidas de alto a baixo de pergaminhos semelhantes a marfim. Passamos a ler os princípios das Artes que levam à Sabedoria. Em uma das paredes laterais Homero escrevia os primeiros versos da Odisseia e em um ângulo do teto Dante Alighieri erigia A Divina Comédia. No ângulo oposto, Moisés redigia O Pentateuco; o Padre José Gumercindo achava-se prostrado diante de Moisés. O piso do salão era de mármores sóbrios. A parede do fundo era ornamentada com um quadro da rainha Nefertiti em toda a sua extensão, sendo que na extremidade do lado esquerdo da parede e do quadro havia uma porta discreta, trabalhada com motivos do próprio quadro, e nele incluída a porta como uma outra Obra de Arte. Era da lavra de Michelangelo. Toda a pintura reluzia matizes austeros, muitos deles áureos, outros tantos de ametistas. A Rainha Nefertiti estava viva e a projeção da luz que incidia sobre a tela fazia com que ela se movimentasse pela extensão do quadro. Então o Homem Negro apresentou-nos a um ancião também negro e de barbas alvíssimas. Atentei que o ancião trajava uma túnica cor de âmbar e ostentava um turbante de cor azul com uma pedra preciosa a frontispício. O seu aspecto era de uma beleza incomparável; seus olhos irradiavam uma bondade, uma compaixão, uma paz e uma serenidade que nos envolviam e nos extasiavam. Convidou-nos a tomar assento no piso e ele mesmo o fez em posição de lótus.

                  Fez-se um silêncio profundo... Então a Rainha Nefertiti proclamou:

                  – Tucano está no centro da esfera Holística Ocidental! Outrora, as terras de Tucano irradiaram o Prana que nutriu o Planeta. Este, por gratidão, ofereceu-lhe o Urim e o Tumim do Universo mesológico, portanto, Tucano é a cidade da Luz do Esplendor Místico. Tucano é a alma desta parte do hemisfério tropical. Tucano é o lócus do Mistério da Sabedoria, guardada sob o manto do silêncio. Sendo assim; virando-se para o homem negro; convém que os interrogueis, para instruí-los se for de bom proveito para o mundo.   

                  – A que viestes, Irmãos?

                  – Mestre, viemos em busca do Mistério da Sabedoria...

                  – Sede pois, Bem Vindos a este Universo. Nós vos Amamos... E a vós estendemos as mãos. Antes, porém...

                 Aí eu fui submetido a um ritual de iniciação. O Anjo Forte já era um iluminado. Mas, eu não! Não me recordo bem do que aconteceu durante o processo iniciático, lembro-me somente de haver sido tomado por uma espécie de sono profundo que me prostrou por completo. Depois do que, veio uma voz:

                  – Foste escolhido a vir a este Universo sem nenhum conhecimento ou mesmo instrução prévia acerca da Sabedoria e dos seus frutos, nem mesmo sabias o significado dela. Mas agora estás em plenas condições de contemplá-la.

                  – Mestre, somente depois de ter sido tomado pela mão do Anjo Forte é que passaram-me a ocorrer algumas impressões muito difusas de que há muitas coisas ocultas que o meu mundo desconhecia. Portanto, em termos de Mistérios e Sabedorias, vim a este Universo Espiritual com a alma inteiramente virgem.

                  – Foi melhor assim. Pois para alcançar o Mistério da Sabedoria aqui neste ambiente místico carece que se passe por iniciação, para que, depois dela, possamos pedir obsequiosamente que se tenha o coração e a mente sequiosos para com a ESPERANÇA, a FÉ, a VONTADE, a COMPAIXÃO, a BENIGNIDADE, a LONGANIMIDADE e o AMOR. Como uma criança que abre um grande livro e mergulha de corpo e alma pelos interiores das gravuras, dos signos e dos símbolos que ela desconhece, mas não perde a esperança de compreendê-los. Neste Primeiro Umbral achamo-nos em face da ESPERANÇA. Se porventura compreenderes as Verdade que serão reveladas, adentrando aos Seis Umbrais que te restam, terás alcançado o Mistério da Sabedoria.

                  Proferidas essas palavras, logo o ícone de Nefertiti fez um breve gesto. Abriu-se um quadro em que se via a viúva de Naim diante do profeta Elias que lhe pedia pão para comer, mas a viúva argumentava suas necessidade materiais em face da longa estiagem que se abatia sobre aquela região da Palestina e, também, discorria sobre a escassez de víveres de que dispunha naquele momento para matar a sua fome e a do seu filho adolescente, logo depois aguardando a morte.

                  Na verdade a viúva somente tinha na dispensa um recipiente contendo um punhado de farinha e uma botija com uma pequena porção de azeite, apenas suficientes para uma refeição. Entretanto, à insistência do profeta a mulher aquiesceu, preparando e oferecendo-lhe pão e água.

                  O profeta Elias tomou o bocado oferecido, e satisfeito pediu à viúva que retornasse à dispensa e procurasse pão. Ela encontrou as mesmas quantidades de azeite e farinha com que preparou mais alimento para si e para o seu filho; alcançando ainda a garantia de sustento durante todo o período de estio; sempre encontrando na dispensa as mesmas porções de farinha e azeite. Diante disto, o profeta arguiu a mulher:

                   – A senhora falou-me em tomar a última porção de pão, para depois recolher-se com o filho e aguardar a morte...         
                                                 
                   – Sim! Mas a morte enquanto ESPERANÇA definitiva é inexaurível. Iria me faltar azeite e farinha, mas a ESPERANÇA não escasseia, não se extingue, não se exaure...

                   – Como assim?

                   – Eu me explico: eu sou uma judia, uma filha de Abraão e Abraão é o pai da ESPERANÇA! Da mesma forma em que o é da FÉ. Veja, por exemplo, a gravidez de Sara e a consequente concepção de um filho, já em idade avançada do casal. O que era impossível do ponto de vista biológico foi possível à epifania da ESPERANÇA no sentido judeu do termo. Eu disse, “vou apanhar lenha no campo, assar um pão com os ingredientes que me restam, comer com o meu filho e esperar a morte”. Dizer a morte, no sentido judeu do termo, implica ousar a desafiar o limbo e transcende-lo. O que é ser judeu se não ser uma certeza de superação de adversidades e uma capacidade extrema de transcendência? Do contrário não haveria judaísmo... Doravante, os que lerem a minha história de viúva pobre, faminta e mãe materialmente desassistida hão de pensar uma rendição incondicional perante a morte ou um estado de inércia absoluta perante a fome, ou um conformismo apático e perplexo perante a vida. Não! Não é nada disso... “esperar a morte” nessa iminência, significa vislumbrar para além das trevas macabras a elevação gradativa da Luz da ESPERANÇA. Portanto, “esperar a morte” para mim é um estado de meditação que antecede à redenção das peias do mundo. E o pão material é também uma peia! Somente a ESPERANÇA supera a peia. Penso que quando um indivíduo chega ao extremo da impossibilidade de solucionar um problema, por mais grave que seja, oferecer resistência no sentido intrépido do termo é inútil. Então o que fazer? Entregar-se ao silêncio meditativo da ESPERANÇA. Tenho consciência de que não é fácil pensar assim, mas é possível. Nesta perspectiva de pensar, a meditação é a mãe da ESPERANÇA. É a Sara da ESPERANÇA. Foi isto que me ocorreu naquele momento. Se fosse apenas para ter pão para comer, eu poderia ter peregrinado ao Templo de Jerusalém, ao palácio do rei, ao vale fértil do Jordão ou ter migrado para o Egito, ou para o Vale de Bekaa, no Líbano. Nesses lugares não falta pão. Entretanto, deixando-me arrastar pela diáspora, eu correria o risco de ficar com os pés imensos, enquanto que a minha cabeça ficaria semelhante à borda de um alfinete. Mas eu desejava tanto ter uma cabeça capaz de pensar, por isso esperei a ESPERANÇA. A ESPERANÇA é a chama viva que jamais se extingue!

                  Proferidas essas palavras, a viúva abriu a porta e acenou-nos. Então o Anjo Forte proclamou:

                   – Vem e vê!

                   Adentramos ao Segundo Umbral e alcançamos um salão muito semelhante ao anterior. Neste, Tarsila do Amaral traçava as linhas sublimares do Abapuru na imensa parede do fundo. Mário de Andrade silencioso e meditativo contemplava o trabalho da Artista, assentado no ângulo esquerdo do Salão. Mas, na proporção em que a imagem foi assumindo forma, Mário observou:

                   – Tarsila, querida, será que os pés ficarão desproporcionais à cabeça?

                   – Sim! Mário. É uma profissão de FÉ na Arte Moderna. Também...

                   – Como assim?

                   – A Arte Moderna vem suprir a fome de estética. O Abapuru é o pão metafórico de que a Arte tanto carecia. Ele é a figura poética de Snorri Sturluson que teve fome de estética no século XIII, mas não perdeu a FÉ na Poesia que se lhe afigurava como pequenas porções de farinha e azeite, entretanto, não havia chama possível para coser o pão. Neste sentido, o Abapuru é a chama do nosso Modernismo que assa o pão, mas também simboliza o corvo que levava pão e água ao vate nas agruras do deserto artístico. Ora, o Poeta Sábio da Islândia buscou encontrar em inúmeras gravuras o corvo astuto para pô-lo à busca incerta de pão para nutrir a arte esmaecida, sem jamais perder a FÉ. A FÉ é a última instância da Sabedoria.

                   Proferidas essas palavras, Tarsila do Amaral inclinou o cavalete. Abriu-se uma porta estreita e o Anjo Forte tomou-me pela mão. 
            
                   – Vem e vê!

                   Adentramos ao Terceiro Umbral e achamo-nos em um salão mais amplo que o anterior, todo decorado com imagens de Deus e o diabo na Terra do Sol. Glauber Rocha lia a sua Estética da Fome para Sófocles; no ângulo oposto Sócrates examinava minuciosamente uma câmera cinematográfica. A VONTADE do Filósofo em conhecer a máquina surpreendeu o cenógrafo. Sófocles, o pai da cenografia, passou a oscilar entre a leitura, o palco e a tela falando ao cineasta que a VONTADE na Arte é a mais elevada das virtudes humanas e o conhecimento da Arte é a mais elevada disposição de servir ao mundo. Então, disse Glauber: “se a Arte é também conhecimento, e se é a mais elevada VONTADE de servir ao mundo, e ‘se a Arte existe porque a vida não basta’. Então a Arte é menos do gênio do artista e mais do outro no panorama do mundo” e pôs-se a explicar a ambos que a VONTADE profícua do Cinema Novo, a priori, é ter uma ideia no coração e uma câmera na cabeça. Logo os gregos concordaram e passaram a persuadir ao criador de A Idade da Terra a produzir um longa-metragem sobre a Teogonia, de Hesíodo, pela sua VONTADE Helênica de servir a um povo. Glauber concordou, então Sócrates desistiu de beber a cicuta, e quando foi atirar o cálice para longe de si, feriu a parede e então abriu-se uma imensa porta e através dela uma página de Cervantes na sala contígua.

                  O Anjo Forte pôs a mão sobre o meu ombro:

                   – Vem e vê!

                   Avançamos para o Quarto Umbral e fomos conduzidos para um momento de Dom Quixote em que uma trupe de artistas-de-rua encontra o Cavaleiro Andante em uma estrada real de Espanha. Um dos artistas percebe a loucura de Quixote e o atrai para o centro do palco aberto no caminho empoeirado, e todo o elenco é tocado pela COMPAIXÃO. Então a Arte e a Loucura irmanam-se para encenar o mais belo e mais atraente espetáculo da Terra. Dom Quixote deita a Loucura sobre a Arte e a Arte deita a lucidez sobre o louco. De tal maneira que findo o espetáculo, naquele momento, a Compaixão pulveriza loucura sobre todas as Artes e lucidez sobre todos os loucos. Então o Anjo Forte, sentindo-se um tanto enlouquecido, abriu precipitadamente a porta da sala seguinte, mas, ainda assim, gritou alucinado para mim:

                   – Vem e vê!

                   Ingressamos no Quinto Umbral. A BENIGNIDADE vestida de mendiga pedia pão a um rico avarento. Este atirou-lhe uma grande pedra pensando feri-la de morte, mas quando a pedra caiu à mão da indigente transformou-se em Ouro de Ofir. Desesperado, o rico avarento correu para tomar a grande fortuna de ouro, entretanto, este lhe queimou as mãos como matéria incandescente e aquele homem saiu a correr desesperado pelas ruas a pedir socorro. Assim que o conseguiu e voltou para casa, foi informado de que havia perdido toda a sua fortuna, inclusive a mansão em que morava. Então ele passou a esmolar pelas ruas da cidade. Até que um dia ao passar por ele senhora BENIGNIDADE, estendeu-lhe as mãos pedindo ajuda. Ela depositou em suas mãos duas grandes pedras de ouro puro. O homem, outrora rico e avarento, recuperou o dobro da riqueza que havia perdido e passou a praticar a BENIGNIDADE em toda a sua plenitude.

                   Abriu-se a porta de outro salão e o Anjo Forte me tocou:        

                   – Vem e vê!

                   Adentramos ao Sexto Umbral. Um ladrão flagrado no seu ofício, foi preso e torturado pela polícia que apropriou-se de todos os produtos dos seus roubos. Atirado em uma cela em estado deplorável, o ladrão quedou-se inerte sobre o chão imundo. Logo que passou a locomover-se com dificuldade, teve a sua atenção voltada para a seguinte inscrição fixada na parede do cárcere: No mundo tereis aflições, tende bom ânimo, eu venci o mundo. A autoria ou bibliografia da frase estava ilegível, o ladrão não se preocupou com isso, mas guardou o sentido das letras em seu coração. Depois foi conduzido ao cartório da delegacia de polícia para que a “autoridade policial” lavrasse o flagrante de delito. Entretanto, arguidas as provas dos crimes, não foram encontradas as tais; os policiais já as havia comercializado com receptadores que também compravam produtos de outros ladrões, além da polícia, e o delegado não tinha como lavrar os autos, pois o ladrão poderia pedir ajuda e ser submetido a exame de corpo de delito, comprovando os crimes que lhe foram perpetrados pelo Estado de Direito. Portanto, não podia libertar o meliante.

                   Reconduzido à cela, pôs-se o ladrão a refletir sobre a frase escrita na parede, estando assentado no mesmo chão de onde o retiraram por algum tempo.

                   – Ah! A LONGANIMIDADE! Gritou para a parede. Por que nunca me dei conta antes? Então passou a refletir sobre a sua vida de ladrão: quantos riscos de morte, quantos sobressaltos, quantas prisões, quantas torturas, quantas extorsões por parte da polícia e da justiça, quantas desgraças inauditas...

                   O ladrão chorou.     

                   Quando recobrou o ânimo, comtemplou a inscrição e gritou para a parede:

                   – A LONGANIMIDADE é um princípio da Sabedoria que leva o homem a recuperar forças da exaustão absoluta para recriar a vida em plenitude de virtude. A LONGANIMIDADE é a força impávida que ergue o homem do pó para conduzi-lo à plenitude da Liberdade. Prostrou-se de joelhos e voltou a chorar.

                   Passados quatro dias, libertaram o preso, ele foi a pessoas honradas que conhecia, pediu dinheiro emprestado para pagar com trabalho digno, foi ao receptador, adquiriu os materiais que havia roubado e a polícia vendido, devolveu a cada um dos seus legítimos donos, pedindo perdão de joelhos e depois converteu-se ao Evangelho, atirando uma flor para o mundo. A flor acariciou a porta. Abriu-se o último salão.

                   Eu achava-me como que extasiado. O Anjo Forte tirou-me do êxtase:

                   – Vem e vê!

                   Uma criança de peito brincava com uma víbora perigosa que nas mãos da criança demonstrava inércia. A criança de peito deixava-a estendia no chão, mas quando a víbora tentava escapar, a criança voltava a puxar-lhe pela cauda e a serpente a ficar inerte e inofensiva. A criança cansou de brincar e a cobra escapou por entre as flores de um jardim. Então a deusa Afrodite apareceu no meio do salão e profetizou:

                    – O AMOR ágape é despretensioso como uma criança e inerte como uma serpente inofensiva.   

              
                         IN MEMORIAN dos meus ancestrais maternos: Felisberto José Praxedes, Maria da Conceição Praxedes (Mãe Santa), Martiniano José Praxedes e Elvyra Nery Praxedes.
 

                                                         Serrinha, 22 de agosto de 2017.                                              
              
                             
*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.                                               

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