Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

SERRAS DE QUIJINGUE



SERRAS DE QUIJINGUE
                                                          por José Plínio de Oliveira*
 


               

                Eu já nasci aqui em Quijingue. Antes minha família era dos chamados posseiros de Massacará e quando os Índios Kaimbés retomaram suas terras, e o governo institui a Reserva Indígena, minha família foi indenizada e veio para cá. O meu mundo é aqui em Quijingue...

             O nosso povo tinha propriedades na Lagoa do Garrote, então o meu pai adquiriu um pedaço de chão e recomeçou a vida de labutas. Logo que passei a me entender estava cercado de ternuras. Meus avós, bisavós, tios, tias, primos, primas e tantos outros parentes. Era um imenso mar de gentes... Quijingue ainda é para mim um Oceano de Felicidades, porque a imensa rede familiar me favorece a este sentimento.

             O sentir abundância de vida em Quijingue ainda me leva a reconstruir saudades.

             As minhas primeiras leituras, antes de ingressar na escola regular, foram as serras de Quijingue. Serras banhadas por um azul inebriante. Minhas primeiras leituras de mundo. Nesses momentos, o imaginário da criança elabora linguagens inimagináveis para a compreensão dos adultos que a cercam. E na medida em que eu ia me desenvolvendo ia mergulhando naquele azul, naquele oceano de azuis em plenas plagas do Sertão da Bahia. Óbvio que naqueles tempos de infância eu acionava outras paisagens. Levavam-me ao Jorro, ao Jorrinho, às cidades de Tucano, Euclides da Cunha, Feira de Santana, Salvador, mas, nada ainda se compara aos azuis daquelas serras quijinguenses. Meu coração era uma só ternura.

             Quando me foi chegando a puberdade, meu coração foi-se tornando esquisito e sempre insatisfeito. Eu diria que sorumbático. Caía sobre mim uma tristeza inexplicável e eu ficava pelos cantos cismando, calado, pensativo, solitário, arredio. Às vezes caminhava por horas seguidas pela caatinga, pela roça, pelos pastos... Depois voltava para casa e muitas vezes ia para a venda de Zé Bodega, ficava de cócoras apreciando os cabras pronunciarem pabulagens, contarem fatos ocorridos nas feiras da região ou experiências vividas em São Paulo. A minha vida era isso! As percepções da realidade rural em alguns espaços de linguagens desabridas para o público infanto-juvenil, a meu ver, são onerosas.

             Neste Sertão de Canudos, quando os indivíduos vão atingindo a faixa da adolescência, a depender de alguns temperamentos, costumam-lhes ocorrer algumas incongruências internas, talvez de jaezes psicológicos ou espirituais. No sentido espiritual da existência humana neste Sertão de Canudos, é preciso considerar as nossas raízes genéticas de matrizes africanas e indígenas, também europeias. Demandas humanas atormentadas pelos flagelos das diásporas, dos degredos, dos desterros, das escravidões, das erosões das almas. Será que os filhos do Sertão de Canudos carregam as marcas densas das espiritualidades ancestrais? Como explicar essa tristeza amargurada que se abate sobre as nossas almas no limiar do porvir da juventude? Por que no tempo da adolescência tantos de nós éramos levados aos suicídios? A nossa vantagem é que, além do álcool, ainda não haviam chegado as outras drogas, senão teríamos sofrido o pior dos flagelos.

             Minha bisavó materna foi a primeira pessoa da nossa família a perceber que eu corria perigo de morrer enforcado em algum pé de umbuzeiro!

             Afro-indígena, antiga parteira, rezadeira e conselheira da comunidade, passando dos cem anos de idade, minha bisavó nasceu nos tempos em que Quijingue era a Fazenda Triunfo, e na minha adolescência ainda preservava um cabedal de sabedoria de fazer inveja a filósofos gregos e a tribunos romanos. Nos meus verdes anos e no corolário da sua idade avançada, ela cuidava lentamente de uma horta e um pomar onde cultivava remédios para todos os males. Nos momentos de ócios, abençoava o tempo de um espaço reservado para si no extenso varandado da casa. Isso na estação do inverno. Quando chegava o verão, o seu lugar preferido era a sombra generosa de um umbuzeiro frondoso próximo ao curral das cabras. Ela sempre pitando um cachimbo de cano longo, dedilhando o rosário ou recitando orações das Horas Marianas.

             Certa manhã de verão, dirigia-me para o Açude da Quixabeira quando ela chamou-me:

              – João Alfredo, vem cá!

              Aproximei-me da sua cadeira de balanço:

              – Bença Vó!

              – Deus te guarde... Senta aqui. O que é que tá se passando na tua cabeça?

              – Vó, é difícil de explicar, mas eu vou abrir o meu coração para a senhora. Vó, eu me sinto diante de muitas incertezas, como se as coisas da vida não tivessem nenhum sentido para mim. Às vezes sinto um vazio dentro de mim, um oco, como um cortiço de abelha de onde se tira a colmeia com o mel e não se preenche mais. A vida roubou o mel que havia dentro de mim e não deixou mais nada. Vó, a minha alma é como um oco que nada consegue preencher. O meu coração parece vazado por um feixe de espinhos de mandacaru. Parece que o meu espírito está sendo cortado por espinhos de macambira e eu não consigo gritar para a dor. Vó, o grito se calou em mim...

              – E o que é que você pensa em fazer?

              – Eu não sei, vó. Ajudo a cuidar do gado e dos trabalhos da Fazenda como se não fizesse nada. Não sinto interesse nas coisas que antes me atraíam. Vou na venda de Zé Bodega e fico num canto como um demente à toa. Vou no campo jogar bola, não sinto prazer. Vou no açude pescar e tomar banho, a mesma coisa.

              Sinhá Esmeralda, a bisavó, cerrou os olhos, permaneceu em silêncio por algum tempo como se houvesse mergulhado em uma atmosfera de pensamento muito distante do mundo, depois abriu os olhos e contemplou a imensa paisagem que se descortinava diante de si. Até que voltou a dirigir-se ao bisneto:

              – A grande felicidade, Graças a Deus, é que você não bebe cachaça, do contrário estava derrotado.

              – É, minha vó, eu não gosto de bebidas.

              – Agora, neste momento, você me faz lembrar de uma história muito antiga: quando eu era menina vivia um caboclo velho muito sabido ali pros lados da Serra Branca; meu povo ia sempre falar com ele. Uma vez ele contou a meu pai que lá em Massacará, num lugar que os índios chamam A Ilha e que é sagrado para eles, sempre aparecia o espírito de uma cabocla muito vistosa com os cabelos pretos como frutos de quixaba. Os cabelos batiam nos quartos da cabocla. Uma noite de lua cheia em que os índios ofereciam sacrifícios para o descanso eterno dos espíritos ancestrais, o caboclo velho entrou rio adentro em direção a uma cachoeira que tem lá, para consagrar uma oferenda. Então a Índia Encantada apareceu para o caboclo. Ele perguntou a ela porque não se despachava para o mundo dos espíritos, para o descanso eterno. Ela respondeu: “Não posso, tenho uma missão espiritual neste mundo”. “Qual?” Quis saber o homem. Então ela esclareceu que quando as almas descem para a Terra é como uma queda dolorosa. No princípio, até que as almas se engabelam com as novidades do mundo. É a fase que vai da infância à adolescência, mas quando passa daí a alma pode ir entrando em crise. A vida passa a não ter sentido e o cabra vai definhando, e se não houver cuidado ele chega à morte antes do previsto, por isso, a missão da Índia Encantada de Massacará era amparar as almas nessas crises da vida.

              – É, minha vó, parece que eu estou sentido a dor da queda... Sinto-me caindo em um poço que não tem fundo, só tem paredes rochosas para me arranhar.

              – Como é que você sente essa dor?

              – Eu sinto como que uma gastura fria ao redor do meu umbigo, depois sobe para a mente. Aí eu sinto uma saudade irresistível de um mundo que não sei onde fica, de pessoas que não sei quem são. Quando a dor aperta mais e eu estou em um ponto em que posso olhar para o azul das serras, alivia mais. Parece que o lugar de que tenho saudades é azul.

              – Ah! Já sei... Bote sentido: ande sempre com uma folha de papel e um lápis na algibeira; quando o frio for chegando na barriga não se enfade, vá anotando tudo que sentir. Anote todas as impressões! Depois pegue uma telha, deite brasas nela e o papel escrito a queimar. Quando tiver somente cinzas, volte a fronte para as serras e sopre as cinzas na direção delas.

              Foi a minha salvação! Depois da terceira vez eu não sentia mais nada. A minha vida tornou-se um mar de Felicidades! Cresci, aprumei-me, fui-me embora para São Paulo, trabalhei, tornei-me empresário próspero, constitui família, enriqueci. Assim que a minha idade assentou prumo e os meus filhos tiveram condições de assumir os nossos negócios decidi voltar para Quijingue. Agora eu peço encarecidamente que no fim da minha jornada, quando eu mergulhar no Mistério da Eternidade, deem-me sepultura aos pés daquelas serras. Deixem o meu corpo inebriar-se naquele azul tão azul quanto os Céus sonhados pelas Almas.

              Aleluia!!!                             
              
                  
Serrinha, 05 de outubro de 2017
(Data final da Guerra de Canudos em 1897)



*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.

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