Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

A FELICIDADE

A FELICIDADE
                                                                por José Plínio de Oliveira*



               NAQUELE ANO e na noite em que foram inauguradas As Luzes do Natal em Euclides da Cunha, acenando com uma Felicidade contagiante, Zé Olegário encontrava-se no seu ponto de Mototaxista, na Praça Duque de Caxias. Não se sabe a razão por que o brilhar cintilante das luzes brancas, azuis, vermelhas e lilases fizeram-no lembrar da alma do colega de profissão que havia sido morto por assaltantes na Lagoa da Vaca, para tomarem-lhe a moto com que ganhava o pão-de-cada-dia. Então, Zé Olegário chorou a morte trágica do amigo e colega de profissão. As suas lágrimas confundiam-se com o cintilar das luzes. Não teve mais condições de continuar com o seu trabalho naquela noite e decidiu recolher-se à pobre vivenda em que residia com a sua mãe viúva, Dona Almerinda, na parte mais periférica do Bairro do Dengo. Mas, não obstante a perda de um grande amigo, o cintilar das Luzes de Natal causou-lhe a impressão de que estrelas caíam em forma de poeira sobre o brilho do tanque de combustível da moto e sobre a cidade. Então, o Mototaxista sentiu uma vontade irresistível de procurar a Felicidade a qualquer custo.  

               Na manhã seguinte, Zé Olegário saiu para a área dos fundos da pobre vivenda, para fazer as suas abluções matutinas no tanque que também servia para lavar roupas, louças utilizadas nas refeições, cereais, carnes e legumes para o preparo dos alimentos.

               O quintal da casa era limitado com os lotes adjacentes por estacas espaçadas e um único fio de arame farpado. De sorte que as atividades realizadas naquele espaço de serviços eram observadas pelo público vizinho. Todas as manhãs, logo que Zé Olegário abria a porta dos fundos olhava para a torneira do tanque envolta por tiras de tecidos velhos, para conter o vazamento constante; se houvesse gotejamento na torneira era sinal de que estava caindo água da EMBASA, do contrário o moço tinha que valer-se dos reservatórios que Dona Almerinda sempre mantinha abastecidos quando a água caía. Portanto, ficavam cobertos por plásticos e sobre eles restos de tábuas sobre que pernoitavam os gatos de estimação. Não havendo vestígio de água na torneira, o moço pegou uma vasilha e foi servir-se dos reservatórios, mas quando puxou a tampa um gato preto caiu dentro d’água. Pacientemente, Zé Olegário retirou o animal, coletou o líquido precioso e cuidou da sua higiene. Quando retornou para a cozinha, Dona Almerinda passava o café saboroso cujo aroma inundava toda a casa. Aquela atmosfera tão familiar inebriava o coração do filho.

               A velha matriarca ligou o rádio no programa de Zé Kalisto.

               – Zé Kalisto, quem fala aqui é Benvinda Dantas, daqui de Carnaíba de Baixo! Tá ouvindo?

               – Tô...

               – Passe a música da Banda Cachorra do Caralho...

               – Qual delas, Benvinda?

               – Aquela que fala que as mulé é puta, cachorra, galinha e vagabunda!

               – Vai aí a música que você pediu, Benvinda! Com a Banda Cachorra do Caralho! O maior sucesso do momento!...

               Assim que Zé Kalisto terminou de “passar a música”, Olegário submergiu em uma reflexão profunda: ele mesmo, nascido de uma mulher, gerado no corpo de uma mulher. Como poderia aceitar uma linguagem sórdida tão leviana, execrando e aviltando o corpo da mulher que gera tantas vidas? Como pode uma matriz humana geradora de tantas vidas, ser exposta a tão abjeto aviltamento? Zé Olegário sentiu como que uma espada transpassando o seu coração. Entrou para o seu quarto, trancou a porta, prostrou-se e chorou copiosamente, retendo os soluços para não ser ouvido.

               – Meu fio, a mesa já tá posta.

               – Já vou, Mãinha. Limpando os olhos e dissimulando as lágrimas.  
      
               Findo o café da manhã, a estimada genitora avisou que mais tarde iria à rua resolver uns negócios. Então o filho tirou a moto da sala de visitas onde ficava guardada à noite e partiu para mais um dia de trabalho.

               Dona Almerinda tinha um grande sonho, conseguir uma dentadura. Nas eleições anteriores ela havia conseguido extrair todos os dentes cariados, com a ajuda de um candidato a reeleição. Agora ia “correr atrás” para realizar o sonho; para tanto foi à casa do chefe político da região. Lá encontrou o homem cercado de assessores, correligionários, cabos eleitorais, eleitores e bajuladores. Diante do homem uma mesa repleta de copos espalhados entre três garrafas de whiskies vazias; uma outra já pela metade enquanto o homem mandava o garçom trazer mais uma garrafa cheia.

               – Pra que a senhora quer dentadura? Pobre só precisa ter dois dentes: um pra doer e outro pra roer osso!

               Os companheiros do homem caíram na gargalhada e Dona Almerinda foi saindo humílima e compungida como uma devota da Santa Cruz de Monte Santo.

               As pessoas mais pobres da imensa região do Sertão de Canudos têm uma capacidade extraordinária de não sofrerem com humilhações, maus tratos, truculências, opressões e repressões sórdidas. Aliás, as pessoas mais pobres desta parte do sertão baiano estão tão acostumadas com crueldades que nem sequer percebem a densidade delas. É uma realidade trivial e banal no interior da Bahia, portanto, para os mais pobres, a humilhação não carece de gerar sentimento nem vergonha. Faz parte do cotidiano do pobre. A propósito, aqui neste sertão prevalece um convencimento inabalável de que pobre nasce para sofrer. Com isso, a admirável capacidade de suportar sofrimentos sem queixas transforma os mais pobres em grandes massas de manobras à mercê das Oligarquias Dominantes – a juventude contemporânea é que está fraturando este paradigma, impulsionada pela escalada da violência e pelas drogas –, mas, para os adultos e idosos como as eleições ocorrem de dois em dois anos para reificar as Oligarquias, a pobreza navega nos intervalos eleitorais na perspectiva de alcançar complacência: “favores políticos caritativos” durante campanhas eleitoreiras. Por exemplo: “Sinhá Raimunda da Boa morte, como vai vamicê?” “Eu vou navegando”.

               No caso de “Sinhá Raimunda da Boa Morte”, se conseguir uma consulta médica, através de um candidato a prefeito, e lhe for diagnosticado um câncer de útero ou de mama. Ela será ludibriada por mais dois anos até as próximas eleições; sendo marcados e desmarcados exames pelo SUS, mas nunca realizados. Se a “Sinhá Raimunda da Boa Morte” não morrer durante o período de espera do tratamento médico, poderá ter a chance de conseguir a cirurgia através de um candidato a deputado. Não obstante, vindo a ocorrer complicações pós-cirúrgicas ou outra forma de acidente, ela será levada para agonizar em um hospital municipal enquanto aguarda a Regulação, teoricamente visando a transferência da paciente para alguma unidade especializada na capital do Estado. Todavia grande parte das vagas existentes em hospitais públicos da capital do Estado da Bahia são reservadas para pedidos de deputados da base aliada do governo, para atender a apadrinhados, amigos e correligionários. Portanto, a Regulação Hospitalar, também, é uma forma de impor a prostração de familiares de pessoas gravemente enfermas aos pés de uma potestade política que determine a transferência do doente grave para alguma unidade de saúde de referência. Caso contrário, o doente grave morre à míngua atendido por um falso médico ou deitado em uma maca enferrujada no corredor imundo de um “hospital” do interior. Porque a Regulação, também, além de ser um instrumento de manipulação e retaliação política, é uma forma covarde, cruel e perversa de Homicídio Hospitalar Qualificado.

               Os crimes perpetrados pelos Poderes Constituídos contra a Vida Humana no sertão da Bahia são dissimulados e acobertados pela Cultura do Cinismo Leviano que esses Poderes exploram e impõem às demandas sociais empobrecidas e flageladas; constrangidas a rir da própria desgraça que lhes é imposta. Seja qual for a gravidade da dor. Se uma catástrofe mais hedionda articulada pelo Estado contra a Humanidade sertaneja insinua assumir proporções de indignação social, o governo põe um Trio Elétrico nas ruas e com as massas a rebolar, rir, gritar e aplaudir logo as atrocidades que trucidam os oprimidos são esquecidas. Voltando ao caso de “Sinhá Raimunda”, o Estado nega-lhe o direito a uma “Boa Morte”.


               No caso de mulher abandonada à agonia letal pelo Estado, e “assistida” por falso médico em algum hospital público do Sertão de Canudos, somente pelo fato de ser mulher, o Estado comete crime de feminicído.

               Dona Almerinda ia caminhando para casa e, a seu modo, meditando sobre todas essas coisas, quando lembrou-se de que o político Mané da Jiboia era dono de uma EMPRESA DE COMPRA DE VOTOS.

               – Oxe! Eu vou lá.

               Nascido em terras da Fazenda Jiboia, Manuel Salustiano Pereira Peixoto – Mané da Jiboia – entrou para a política desde muito jovem, levado pelas mãos do caudilho Napoleão Garanhão, uma das maiores lideranças da região de Canudos, que descobriu naquele jovem que cultivava maconha para atender a demandas do comércio insaciável uma grande vocação para a política. Dessa forma, Mané da Jiboia foi presidente de quase todas as câmaras municipais do Sertão de Canudos por mais de trinta anos. Ao longo de sua carreira de edil, conseguiu a façanha de ser fotografado abraçado com Antonio Carlos Magalhães, Emilio Garrastazu Médici – a face mais cruel e hedionda de Adolf Hitler à frente do governo do Brasil – e até abraçado com Luís Carlos Prestes, quando este voltou do exílio e apoiado por Oscar Niemayer proferiu conferências memoráveis por todo o Brasil. Por ocasião da apresentação de Mané da Jiboia, sabendo-o da região de Canudos, o Cavaleiro da Esperança declarou-lhe: “Estive na vossa terra com a Coluna, estive na Várzea da Ema e em Tucano!”

               Aposentado da profissão de vereador, Mané da Jiboia passou a dedicar-se à profissão bem sucedida de Corretor Eleitoral. Na verdade, ele comprava votos muito abaixo do valor de mercado ou os barganhava em troca de favores oferecidos a eleitores miseráveis que lhe imploravam “benefícios”. Assim ele conseguia organizar lotes de votos para vende-los ou leiloa-los a candidatos interessados. Portanto, negociava votos com comunistas, socialistas, facções militares, traficantes de drogas, assaltantes de bancos, petistas, nazistas, fascistas, ultraconservadores e até anarquistas. Porque, no Sertão de Canudos, o político não pode ter escrúpulo ideológico, senão “sobra”. Logo ele terá que inclinar-se para quem tem dinheiro, detém Poder ou tem “a caneta na mão”. Mané da Jiboia costumava afirmar: “Voto é dinheiro”.

               – Dona Almerinda, a senhora já arrancou os dente?

               – Sim sinhô. Na eleição passada.

               – Quantos título de eleitor a senhora pode arrumá com o seu povo?

               Ela foi pronunciando os nomes, e ele rabiscando em um caderno.

               – Dá um total de vinte e cinco. A senhora traga até amanhã que eu já mando a senhora pro dentista. Quem vai dá a dentadura da senhora é o senador Oto.

               Na tarde do mesmo dia, Dona Almerinda havia reunido vinte quatro títulos. Faltava somente o de Zé Olegário quando à noite retornasse do trabalho.

               – Tome, Mãinha, tá na mão.

               Na manhã seguinte, Dona Almerinda depositou os títulos eleitorais nas mãos de Mané da Jiboia. Este a encaminhou ao protético, mas os títulos ficavam retidos com o Corretor Eleitoral. No dia das eleições, os lotes de eleitores eram escoltados para as zonas e secções por jagunços armados que lhes entregavam os títulos na “Boca da Urna”, avisando-os de que caso o voto não aparecesse na urna o eleitor seria morto juntamente com a sua família. À noite, tendo retornado do trabalho, Zé Olegário, depois de considerar toda a difícil labuta da pobre genitora, abriu-lhe o coração:

               – Mãinha, eu vou procurar a Felicidade!

               – E a Felicidade inxiste, meu fio?

               – Mãinha, se ela não existe, terá que ser inventada porque eu vou procura-la... Mãinha, eu estou predestinado a encontrar a Felicidade!

               Uma semana depois, Dona Almerinda chegou em casa de dentaduras novas. O filho admirou-a sem conter a alegria que o tomou de supetão. Depois ela saiu para agradecer aos parentes e vizinhos que se comprometeram em votar com o senador Oto para que ela tivesse dentes novos. Todas as pessoas estavam fascinadas com a expressão saudável e o sorriso feliz da velha amiga. “Até o rosto da senhora tá mais bonito!” A vizinha estava radiante. Até seu Zequinha da Ferbasa em que só restavam os dois dentes caninos, diante da nova face da vizinha, abriu um sorriso esplêndido e manifestou interesse em procurar Mané da Jiboia, no que foi estimulado por todos. As pessoas que se encontram em situações odontológicas semelhantes às de seu Zequinha, no sertão, são apelidadas de mil e um (1001). Então, Zé Olegário, mesmo agradecendo a tantas manifestações de carinho e de solidariedade para com a sua estimada genitora, considerou, entretanto, que um “favor político” não traz Felicidade plena. Portanto, entrou para os seus aposentos, fechou a porta, persignou-se e chorou copiosamente. Voltando para o trabalho, foi transportar um cliente para uma casa comercial na Avenida Almerindo Rehem quando olhou para uma televisão ligada e viu uma Prostituta Feliz convocando a galera para o Carnaval da Bahia.

               A Prostituta Feliz garantia toda a Felicidade do mundo para quem viesse “curtir” o Carnaval de Salvador, e ainda advertia: “Você não pode perder!” Zé Olegário olhou para o aparelho de TV e sentiu-se como que aguilhoado por uma força imperativa de que não conseguiria se desvencilhar. “É pra lá que eu vou!”


               E foi... Dois dias antes do Reinado de Momo, estava ele na capital.

               Do Campo Grande, à Castro Alves, da Castro Alves à Avenida Sete, da Avenida Sete ao Barra-Ondina, do Barra-Ondina ao Dodô e Osmar. Não ficou circuito em que Zé Olegário não saísse pulando atrás do Trio da Prostituta Feliz que vociferava sem parar: Alegria! Alegria! Alegria! Alegria....

               Em dado momento, a Prostituta Apocalíptica completamente hitlerizada, histérica, insaciável, alvoroçada e possessa passou a gritar desesperada e repetitivamente para a galera. Lá embaixo as pessoas se contorciam e gesticulavam estonteadas como que agonizando nos espaços nefandos de uma Câmara de Gás ou de um Campo de Concentração Nazista que ia matando de maneira lenta, sórdida, cruel e gradativa. Explorando a cumplicidade das próprias vítimas, manifestada por gemidos guturais e aplausos frenéticos, exorbitados de “alegria”:

               – Bote as mãos nas cadeiras! Dê uma agachadinha! Bote a mão na boceta! Bote a mão na bundinha! Agora, quero ver todo mundo de pé!  Joga pra cima, joga, joga, joga... Chap! Chap! Chap! Chap! Chap! Bate na palma da mão! Bate na palma da mão! Bate na palma da mão! Bate na palma da mão... Balança a bundinha pra lá, balança a bundinha pra cá, balança a bundinha pra lá, balança a bundinha pra cá...

               Depois a Prostituta ordenou que toda a galera passasse a fazer sexo entre si, independentemente de gênero. Aos olhos de Zé Olegário, a Grande Prostituta do Apocalipse era uma serpente descomunal que havia engolido uma vaca. Entretanto, milhares de pessoas (tietes), seguiam passivamente os passos do Trio Elétrico rindo, rebolando e fazendo tudo que a Grande Prostituta ordenasse. A partir daí, convencida do poder absoluto de manipulação e de persuasão que exercia sobre as massas submissas, a Grande Prostituta do Apocalipse em uma das suas crises de histeria hitleriana depravada pôs-se a proferir blasfêmias abjetas e impropérios repugnantes sobre o sexo da mulher; enquanto que atrás do Trio Elétrico as mulheres riam, rebolavam e ovacionavam calorosamente a Grande Prostituta.

               Um jornalista carioca radicado na Bahia tentava explicar a cultura carnavalesca ao colega israelense Samuel Natan – estarrecido e perplexo – que cobria o Carnaval de Salvador para uma emissora de TV de Jerusalém. O experiente jornalista judeu estava consternado.

               – Cara, eu estudo o Nordeste do Brasil há trinta e oito anos, apreendi a Língua Portuguesa para estudar o Nordeste brasileiro; dadas algumas semelhanças climáticas com o meu país, entretanto, jamais me foi possível presumir que a mulher nordestina fosse capaz de submergir a níveis tão baixos, tão ínfimos.

               – Não! A grande maioria das mulheres que você vê aqui se degradando no Carnaval da Bahia vêm do Rio de Janeiro, São Paulo, Curitiba, Florianópolis, Porto Alegre e etc. Só que nas cidades do Sul e do Sudeste do Brasil isto que você vê aqui é impossível, mas na Bahia tudo é possível em termos de degradação da pessoa humana.

               – Cara, para as mulheres israelitas, Judias principalmente; palestinas, mulçumanas, árabes, do Oriente Médio de modo geral, o que se faz aqui no Carnaval da Bahia com o corpo da mulher, com o sexo da mulher é muito mais grave do que uma hecatombe hedionda perpetrada pelo Estado Islâmico.

               – É o que você pode ver nesta parte do mundo.

               – Isto é muito perigoso, ainda que respeitadas as demandas culturais de um povo. Veja por exemplo, ainda que as elites se dilacerem atrás do Trio, os alvos das linguagens aparentemente “divertidas e lúdicas”, vociferadas pela Grande Prostituta são as mulheres, os pobres, os negros, os homossexuais, os dependentes químicos, os excluídos, os marginalizados. Sempre as extremidades mais vulneráveis da sociedade. É imprescindível lembrar que as grandes catástrofes que violentaram a Humanidade foram sempre precedidas por linguagens erosivas, nefandas, torpes. Muito antes do nazismo, das câmaras de gás e dos campos de concentração que trucidaram parte do meu povo, a Europa deu início a uma pulverização de linguagens antissemitas, preconceituosas e racistas aparentemente amenas, ingênuas, lúdicas e engraçadas que ludibriaram os próprios Judeus radicados na Europa. Ninguém, naquela época, seria capaz de perceber os conteúdos preconceituosos, reacionários, violentos e trogloditas que aquelas linguagens escamoteavam. As consequências daquelas linguagens são hoje objeto da História. A História das Barbáries! Os discursos histéricos que essa Prostituta vocifera agora de cima de um Trio Elétrico é muito perigoso! Lembra a histeria de Hitler vociferada de sobre palanques e tribunas militares ao som de marchas e dobrados, insuflando em mentecaptos e idiotas ódio aos judeus, aos ciganos, aos homossexuais, aos “antissociais” e etecetera; inicialmente de forma imperceptível e eu diria carnavalesca, como agora aqui na Bahia em que as pessoas são condicionadas passivamente a odiarem os seus próprios corpos, os seus próprios sexos. A histeria depravada e debochada com que essa Prostituta do Apocalipse condiciona as massas pode ser o prenúncio de uma Era de Catástrofes que pode vir a abalar toda a Humanidade.

               – Como assim?

               – Quem é Judeu entende as simbologias desses discursos de forma mais nítida, porque de forma assemelhada Adolf Hitler e seus asseclas carnavalizaram o Holocausto, o ódio, a dor, o crime, as torturas, os assassinatos e as grandes tragédias do século vinte; predominantemente manipulando linguagens. Não se trata de pseudo moralismo nem etnocentrismo pasteurizado. Não cara! Você quer ver uma coisa, as palavras de ordem da Grande Prostituta: “Joga pra cima! Joga, joga, joga”. Podem ser analisadas a partir de dois prismas: primeiro a simulação alienada de um arianismo insano e inconsequente, segundo a afirmação de um domínio absoluto sobre as massas alienadas e dispostas a jogar os corpos para atender a determinações de qualquer imperativo ideológico. Parece discurso do Terceiro Reich, cara!

               – Mas você pensa que linguagens carnavalescas podem condicionar a esses níveis?

               – Mas é óbvio! Porque elas incidem sobre mentes de massas submissas e deturpadas que correndo atrás dessa coisa fazem “qualquer negócio”.

               – Aí tens razão! Principalmente massas amorfas e acéfalas. Cara, não há um só dia quando levanto da cama e tomo a escova de dentes que não se abatam sobre mim as dores e as vergonhas do Holocausto nazista.      
    
               Atrás do Trio Elétrico, o moço Zé Olegário fez sexo, fumou maconha, cheirou cocaína, tomou pico e fumou crack. Na manhã da Quarta-Feira de Cinzas, despertou engavetado na bunda de um sujeito loiro de características femininas, tal como Arthur Rimbaud, na suíte presidencial do hotel de Cinco Estrelas mais caro de Salvador. O sujeito declinou chamar-se José Augusto; megaempresário do ramo de comodites, pecuarista, proprietário de uma rede de frigoríficos e laticínios, e de uma grande companhia de taxis aéreos.

               Filho de um banqueiro de Minas Gerais da Tradicional Família Mineira, José Augusto vinha todo ano ao Carnaval da Bahia procurar a Felicidade. Naquele instante, Zé Olegário foi à toilette, prostrou-se e chorou com toda a alma; sentindo que a Felicidade não está no Carnaval da Bahia. Quando voltou para a cama, José Augusto sugeriu:

               – Quer ir para Minas?

               – Minas não há mais, José, e agora?

               – Minas há, Minas existe, e está de braços abertos para te receber.

               Na tarde do mesmo dia voaram para Belo Horizonte no jato particular do megaempresário. Passados alguns dias, foram a um cartório de Goiás e celebraram um contrato Homo Financeiro.

               – De agora em diante, o teu status social muda radicalmente.

              De fato, o ex Mototaxista passou a dispor de contas bancárias bilionárias, Ferrari de luxo, motorista particular e uma mansão suntuosa em um condomínio fechado de alto padrão em Ribeirão da Neves onde passaram a acontecer os seus encontros íntimos com o parceiro Homo Financeiro; visando a garantir proteção absoluta dos possíveis olhares perscrutadores da ultraconservadora e tradicionalíssima Família Mineira domiciliada em Belo Horizonte. Por esse tempo, Zé Olegário passou a melhorar consideravelmente as condições sociais e materiais da amada genitora e da parentela mais aproximada. Corria dinheiro a rodo.

              Em uma noite em que faziam sexo ao som de uma valsa de Strauss, Zé Olegário quis saber do parceiro se o satisfazia plenamente. Este, logo ponderou:
               – Se você gritasse, se você gemesse...

               Então, o moço Olegário jogou pesado. Mas, no meio da noite a segurança do condomínio passou a rondar a mansão e telefonou para saber se estava acontecendo alguma coisa; pois que os vizinhos estavam a reclamar de muito barulho. Não obstante, o moço Zé Olegário foi muito elogiado:

               – Você é duro! José.

               Passados alguns dias, ao chegar em Ribeirão das Neves José Augusto encontrou o companheiro imerso em prantos. Choraram juntos. Ao cabo, o moço confessou que havia chegado à conclusão de que o relacionamento Homo Financeiro ou Homo Afetivo não traz a Felicidade. Conversaram muito e no final da tarde chegaram a um acordo: Zé Olegário não ficaria desamparado, iria para São Paulo colaborar em uma das empresas do Arthur Rimbaud mineiro com altos privilégios, elevada remuneração e participação nos lucros da empresa.

               – Meu caro, eu te fico tão grato, principalmente porque estou predestinado a encontrar a Felicidade.

               No dia que foi embarcar no Aeroporto de Contagem, ainda no saguão, o moço Olegário conheceu uma cigana, empresária da alta costura com atelier matriz no Bairro do Jardins em São Paulo e filiais nas grandes capitais da Europa. Foi amor à primeira vista. Apaixonaram-se e passaram a viver juntos. Do enlace nasceram duas crianças lindas; um casal de gêmeos. A vida foi andando de forma prodigiosa, até que certo dia, porém, ao voltar para casa, a cigana encontrou o marido mergulhado em prantos copiosos, ajoelhado na suíte do casal. Observou atentamente o quadro e deixou-o prantear-se em paz. À noite, depois do jantar e das crianças recolhidas aos aposentos, pediu ao esposo para conversarem e procurou inteirar-se das razões de tantas e tão padecidas lágrimas. O moço abriu o peito: era muito feliz com ela, amava-a devotadamente e adorava as crianças; mas, todavia, chegara à conclusão de que a vida conjugal não lhe trazia a Felicidade.

               – E onde pretendes achá-la?

               – Não sei onde, mas eu estou predestinado a encontrar a Felicidade.

               – Então façamos o seguinte: você volta para a Bahia. E como foste Mototaxista, vou providenciar para que tenhas uma empresa de transportes. Agora, tem uma coisa: todo ano quando as crianças entrarem de férias escolares, irão passa-las com você. És o pai.

               Dito e feito. Certo dia, quando descia pela Avenida Rui Barbosa em direção ao seu escritório, Zé Olegário sentiu uma vontade irresistível de entrar por uma viela perpendicular. Ao passar diante de um prostíbulo, uma jovem que achava-se à janela o arguiu:

               – Você está procurando alguém?

               – Sim, a Felicidade!

               – Ela está no quarto com um cliente. Entre e sente um pouco, quando ele sair, você entra.

               Algum tempo depois, saiu da alcova um cavalheiro esbelto, elegante, empertigado, sarado, de passos firmes e resolutos, e ostentando um estado de altivez jovial e viril admiráveis.    

               – Como foi?

               – Brother! Ela fez uma coisa comigo, não sei bem o que foi, mas foi uma coisa muito gostosa. Eu fiquei virado no cabrunco. Veja, eu tenho, na certidão, noventa e oito anos de idade. Agora estou me sentindo um garoto de quinze anos. Ela é, simplesmente Fantástica, Magnífica...

               Enquanto o homem falava, veio arrastando-se a velha cafetina obesa e de pernas arqueadas, para devolver-lhe o equipamento ortopédico com que ele, apoiando-se com extrema dificuldade, adentrara à casa encurvado, corcunda, gemendo, contorcendo-se de dores e agruras.

               – Jogue esta porra na casa do caralho! Você não está vendo como eu estou não? Você se assunte, viu?

               – Mas aí. O senhor...

               – Brother, eu vim aqui suplicar a Felicidade ajuda para morrer logo. Eu estava no fim da vida, agora saio no início dela. Dá para entender? Agora mesmo vou passar no bairro Nova América, pegar uma menina de dezesseis e passar quinze dias em um Spar na Ilha de Itaparica, fodendo, tomando banho de mar e bebendo água de coco. Pode existir vida melhor?

               – Não! Não pode...

               Logo, veio a moça que estava à janela, parando diante de Zé Olegário.

               – Agora você pode entrar!

               – E aí meu gato, o que é que manda?

               – Eu vim procurar a Felicidade.

               – Você procurou, e encontrou...

               Ao proferir essas palavras, a moça ergueu os braços com graça sensual e sedutora, inclinou a fronte e dos seus cabelos encaracolados emanou um perfume inebriante e envolvente. Linda! Linda! Linda! Linda! Tratava-se de uma prostituta alagoana há muito radicada em Euclides da Cunha. Vestia um elegante penhoar de lingerie transparente, estava sem calcinhas e sem sutiã.

               Alta, elegante, cheirosíssima, charmosa de fazer prostrar de vergonha as modelos mais caras e requisitadas do mundo. Sem nenhum esforço intencional, Felicidade esbanjava a mais elevada expressão da Beleza naquela alcova de prostíbulo de ponta-de-beco. Quando ela se movimentava pela alcova requintada, os seios rijos como estiletes rochosos das serras de Banzaê ameaçavam romper bruscamente as partes altas das vestes maviosas. Então o moço prostrou-se de joelhos, mas não chorou. No entanto, contemplou o sexo da moça e suspirou.

               – Levei tempos da minha vida procurando a Felicidade, jamais imaginei encontra-la de forma tão plena, tão afetuosa, tão sedutora e tão envolvente... Deixai-me penetrar essa Felicidade de maneira erétil e com toda a eroticidade avantajada da volúpia incontida de um homem faminto, sequioso e insaciável.

               – Ah! Bebê, a busca da Felicidade atinge o seu ponto mais elevado quando é o coração que a descobre e não a eroticidade. Essa busca deve ser satisfeita pelo Amor e não pela sensualidade. Ah! Bebê, se alguém ama a Felicidade deve estar disposto a deixa-la entrar no seu coração e nele fazer morada. Veja bem: a tristeza tem fim, mas a Felicidade jamais terá fim se você abre o coração para ela. Bebê, a Felicidade não é algo exterior ao indivíduo, acha-se dentro dele somente esperando ser amada para exteriorizar-se plenamente.

               Então Zé Olegário abriu o coração e revelou todos os caminhos tortuosos percorridos, visando a encontrar a Felicidade.     
  
               – Ah! Bebê, que pena... Nos sistemas e nas coisas do mundo não se pode encontrar a Felicidade.

               Assim falando, Felicidade circulava pela suíte como uma corça em liberdade nas encostas silvestres da Colinas de Golan. Nas eras de Paz.   
   
               – Ah! Bebê, na Felicidade há um espírito muito perspicaz, sábio, ímpar, único, absoluto. Multiplicador de benesses, sóbrio, sutil, sereno, soberano, sossegado, ágil, penetrante, mágico, imaculado. Ah! Bebê, a Felicidade é lúcida, desinteressada, invulnerável, amiga dos homens, adversária do mal e que pode tudo, tudo abrange, tudo concentra e penetra os Espíritos mais inteligentes, despretensiosos e sutilíssimos. A Felicidade é a plenitude do todo que é belo e está em tudo o que é bom.

               Ouvidas essas últimas palavras, Zé Olegário curvou a fronte, fez reverência e deixou a alcova. Saiu pelo corredor pronunciando:

               – Não é à toa que afirmam as Escrituras: “Elas vos precederão no Paraíso!”   


                                                Serrinha, 1º de janeiro de 2018


*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA-UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.                                                                    


Nenhum comentário

Tecnologia do Blogger.