Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

O CUMBE E O CALMO PENSAR


O CUMBE E O CALMO PENSAR
                                                                          por José Plínio de Oliveira*



                     
“Os fenômenos da vida podem ser comparados a um sonho, a um fantasma, a uma bolha, a uma sombra, a uma orvalhada cintilante ou a um raio luminoso; e como tal deveriam ser comtemplados”.
                                                             Buda, in O Sutra Imutável



               Imagine um empresário muito bem sucedido da cidade de Euclides da Cunha – o antigo Cumbe – que ao despertar no início da manhã abre as cortinas e as janelas de vidro dos seus aposentos no primeiro andar da sua mansão e projeta o seu olhar sobre a cidade. Como serão os fenômenos da sua vida e as percepções de imagens e paisagens da cidade naquele momento? Dificilmente um indivíduo premido pelas exigências do capitalismo competitivo e da sociedade de consumo terá condições de perceber as belezas reluzentes, as grandezas holísticas e a Aura Humana no sentido mais pleno do termo que envolve o seu mundo. A cidade aparecerá como que opacizada no interior de uma bolha cinzenta e intoxicada por fumaças de automóveis, ruídos de máquinas e espectros de fantasmas.


               Pense nas inquietações de uma mente poluída pelas linguagens intempestivas do ritmo acelerado da Economia de Mercado, torturando um homem que passou toda a noite atormentado por sonhos tenebrosos de ganhos e perdas, perdas e ganhos, lucros e acúmulos. Amanhecendo o dia debruçado sobre o peitoril de mármore da janela de uma suíte, tentando contemplar o alvorecer da sua cidade; tentando desesperadamente vislumbrar um símbolo de exorcização das sombras que entorpeceram a sua noite de tormentos. Ora, se esse homem tem compromissos com bancos, altas de juros, folha de pagamento de funcionários, carga tributária onerosa, imposto de renda, multas de veículos, gorjetas e propinas pagas a fiscais e agentes do governo, contribuições para entidades; além de enfrentamentos de concorrentes, trustes capitalistas, exigências sociais, recessões econômicas, assaltos, roubos de cargas, pessoas pobres pedindo esmolas e etc. Sob os ônus opressivos de tais circunstâncias, muitos empresários têm sido levados a práticas de suicídios porque não conseguem produzir subjetividades essenciais para a tentativa de recuperar o equilíbrio dos fenômenos da vida.  

               Como pensar a tentativa de recuperação do equilíbrio da Vida Humana de um empresário mergulhado em uma noite de tantos sonhos assustadores, tantos fantasmas, tantas bolhas e tantas sombras densas que pairam sobre uma vigília angustiante e não permitem como a uma máquina vislumbrar uma orvalhada cintilante ou um raio luminoso em um contexto ocidental de capitalismo selvagem? Nessa situação, o empresário perde a Humanidade e é transformado em uma máquina de processar, códigos, números, linguagens, símbolos e signos exigidos pela engrenagem do capital mercantilista globalizado.    


               Reflita sobre os fenômenos da vida de um empresário bem sucedido que tem uma filha preparando-se para completar 15 anos de idade, exigindo que a sua festa de debutante seja realizada na casa de praia, com as presenças de coleguinhas, parentes mais chegados e pessoas amigas, tendo-se que contratar, para abrilhantar a festa, uma dupla sertaneja e uma celebridade da Rede Globo.

               Medite sobre um homem de negócios no âmbito de uma Economia Globalizada que tem uma esposa a insistir em fazer um cruzeiro marítimo, somente porque uma amiga o fez, postou fotos e mensagens nas redes sociais, enviou postais do exterior, telefonou para as amigas e tendo retornado da viagem visitou a cada uma delas para contar detalhes da viagem. Aliás, em nossa terra, para a grande maioria, o hábito de viajar não significa conhecer outras culturas, outros povos, outras estéticas, realizar outras leituras, refletir sobre conceitos de civilizações mais desenvolvidas e perceber outros fenômenos humanos, mas, curtir, explorar sensualidades, aparentar grandezas e causar invejas em pessoas incautas. Também, postando fotos despidas, mantendo relações sexuais, consumindo bebidas caras, frequentando restaurantes renomados; tudo para dar ênfase às nossas leviandades, às nossas promiscuidades e aos nossos provincianismos ridículos que denotam as nossas identidades no exterior. Estes comportamentos são mais típicos nos âmbitos das sociedades abastadas do nosso Nordeste. E quando essas viagens não são bancadas com recursos próprios, as elites privilegiadas se locupletam com as benesses do Estado, saqueando os cofres públicos, sucateando a Educação Escolar Pública, deteriorando a saúde, impulsionando a escalada da violência, o alcoolismo, o narcotráfico, a prostituição infanto-juvenil e outras mazelas sociais. Por isto o governo brasileiro impõe uma Reforma da Previdência injusta, escravocrata, reacionária, draconiana e arbitrária, visando a penalizar a classe trabalhadora assalariada pobre e oprimida, e a abarrotar as bolsas do erário público, financiando de forma generosa as viagens que as elites dominantes realizam para o mundo consumista. No caso específico das elites dominantes do sertão da Bahia, ainda sacrificando as vítimas flageladas da Indústria da Seca e ostentando requintes de cinismos típicos das Farras dos Guardanapos de grife.

                Agora, perceba a realidade dos trabalhadores e das trabalhadoras que suportam todos ônus opressivos das orgias extravagantes, exorbitadas pelas castas abastadas das aristocracias dominantes e pagam por exemplo, as contas das Farras dos Guardanapos realizadas por políticos e empresários brasileiros em restaurantes requintados de Paris. Além de outros bacanais extrovertidos, também extorquindo a força de trabalho das extremidades periféricas da sociedade oprimida.

                Trabalhadores pobres submetidos a cargas exaustivas, sem registro em carteiras de trabalho, portanto, sem direitos previdenciários, sem cidadania, sem Humanidade, sem Dignidade; recebendo remunerações abaixo do valor do salário mínimo, sem condições de assegurar sustento básico às suas famílias. Essas demandas humanas são a radiografia mais nítida do flagelo abominável.


                Homens magérrimos, desdentados, debilitados e aparentando aspectos deprimidos que mais se lhes assemelham a fantasmas do que a seres humanos. A miséria escaveira-lhes as faces enrugadas. Muitas vezes homens moços aparentando velhice octogenária. Outras vezes, torturados pelo fantasma do desemprego e pelo flagelo da fome, esses trabalhadores pobres que não querem incorrer na vida do crime vão em busca de alívio espiritual nas igrejas. Entretanto, algumas dessas lhes imputam o condicionamento do pecado, como outra forma arbitrária de exploração, coação e opressão. “São pecadores e em consequência do pecado devem suportar passivamente o peso das agruras da exploração implacável”. Além de contribuírem com dízimos e ofertas para a “Obra de Deus”, sob pena de se tronarem ainda mais pecadores. Não há nenhuma dúvida de que as religiões têm um papel espiritual preponderante nas sociedades humanas, mas a alienação do homem pelo homem é uma catástrofe. Outros tantos, à margem da espiritualidade, entregam-se às bebidas alcoólicas e às drogas baratas, para tentar sublimar o pavor do mesmo fantasma do desemprego e da fome. É uma realidade lastimável! A exploração do homem pelo homem é a metástase do Desenvolvimento Humano no interior da Bahia! Neste contexto, o dia de domingo é uma tortura para o trabalhador explorado. Ele não é capaz de presumir o que lhe guarda a segunda-feira. Por isso, no torpor noturno da “ressaca alcoólica ou narcótica”, ele deseja que o dia seguinte jamais viesse a amanhecer e que nuvens negras asfixiassem a cidade, e que jamais se dissipassem as trevas, para que ao chegar no trabalho o patrão não lhe diga que está demitido por conta da “crise”, e que a empresa tem que cortar custos e benefícios para aumentar lucros, adaptando-se à “crise”. Mas se ele quiser continuar colaborando, cumprindo a mesma carga horária e recebendo um terço do salário que vinha recebendo, a empresa pode estudar o seu caso.


                Humilhado, o trabalhador se dobra. Se pleitear direitos na Justiça do Trabalho é perda de tempo. O patrão é quem ganha sempre. E a Reforma Trabalhista passou a amedrontar o trabalhador escravizado no sentido de condená-lo a pagar as custas do processo, porque é certo que ele perca a questão. Além de tudo isso, persiste um cultura instalada no interior da Bahia no sentido de que o trabalhador explorado que ingressar na Justiça contra um patrão injusto nunca mais conseguirá emprego naquela região. Dessa forma, o trabalhador escravizado desta terra subsiste no interior de uma esfera trevosa. A sua visão de mundo é limitada à subsistência minguada, a cidade, as serras, e a natureza para ele estão sempre envoltas em uma neblina turva densa que desafia o Sol. Uma sombra de opressão rouba-lhe a possibilidade da contemplação.

                Um homem que envelhece precocemente, condenado a morrer de fome desde a mais tenra idade, que perdeu a infância quando o mundo lhe devia ter feito desabrochar o Lotus da Vida. Portanto, é um homem sem sonho, sem janela, sem calmo pensar, sem Primavera, sem verde, sem mar, sem montanha, sem azul.                  
                Em uma manhã singular de Primavera euclidense, uma criança paulista deixa guloseimas, frutas, pães, iogurtes e um guardanapo de papel sobre a mesa do café da manhã no restaurante do hotel em que está hospedada com os pais, no centro da cidade, e corre às pressas para uma janela, atraída por um azul inebriante que se descortina à distância. Pouco tempo depois, a menina chama os pais para contemplarem o mar. Dir-se-á que a criança abandona ilusões sobre a mesa, atraída pelo sonho de ver o mar, de contemplar o mar. Neste sentido, o onírico é a realidade mais concreta possível, em oposição a ilusões. Como é possível ver o mar em uma terra em que ele é improvável? Este mar que a criança contempla absorta, extasiada; debruçada sobre o peitoril de uma janela de hotel do Cumbe; é uma área de caatinga que demanda das proximidades da Estrada de Aribicé – por trás do Centro de Abastecimento – para as vertentes da Queimada do Raso e daí abaixo a perder de vista.


                Deste mar percebido pela criança emana uma aura de azul incomparável que inunda todas as manhãs da cidade de Euclides da Cunha e é delineado por uma extensa serrania a espraiar ondas de paisagens e de orvalhadas cintilantes no fulgor deslumbrante do tempo. Este mar não é sacudido por tsunamis nem por ressacas revoltas a erodir e retalhar a terra. E para este mar, principalmente para este mar, a menina paulista oferece um Calmo Pensar, e suscita a curiosidade de alguns outros hóspedes daquele mesmo hotel do Cumbe; homens e mulheres de negócios que se deixam seduzir pelo sereno raio luminoso que se alevanta por sobre o mar e mergulham de corpo e alma na bolha azul-serena do mar euclidense, sem nenhum prejuízo para os seus ofícios e negócios capitalistas mercantilistas. A criança ainda está em transe e as mulheres e os homens de negócios vislumbram nos raios azuis da paisagem de caatinga a possibilidade de resgatar a própria Humanidade de dentro da engrenagem trituradora da máquina capitalista. O mar acena com Esperança.

                Walnice Nogueira Galvão, no seu excelente estudo Metáforas Náuticas, assevera que o sertão já foi mar, e para tanto fundamenta-se em pesquisas científicas, principalmente arqueológicas. A menina paulista não! Ampara-se ela no sonho, no onírico, no êxtase. Que diferença pode haver entre as conquistas da ciência e a primazia do êxtase? Fritjof Capra fundou a Física Quântica partindo da contemplação de um poema sânscrito e a criança paulista descobre o mar na paisagem de Euclides da Cunha por um estado de contemplação, onde o mar é cientificamente improvável. Mas, a propósito, neste texto não há a intensão de se aprofundar saberes budistas, védicos ou orientais. Embora ele se organize a partir de um trecho do Sutra Imutável. Este trabalho é fruto e percepção da Cultura Caatingueira em que são outros os saberes, os mitos, os ritos, as crenças. Todavia, o testemunho, as percepções e as convicções da menina paulista podem e devem, também, nos conduzir a uma leitura ocidental; ou melhor caatingueira; das palavras de Buda. E porque não? Um Sutra Caatingueiro pode ser a antítese do Imutável, mas é um Sutra Possível.


                É possível que o leitor ocidental, principalmente o leitor caatingueiro, ao se deparar com as Literaturas Budistas, Védicas, Sutras e Mantras encontre sérias dificuldades em interpretá-las, e, por isso, seja muito mais atraído pela poética que permeia a superfície dessas obras e, portanto, negligencie para com a sabedoria pura, a filosofia, a espiritualidade, a religiosidade e a mística oriental que subjazem sob as mantas metafóricas que “protegem” essas linguagens. O leitor caatingueiro tem fome de Poesia e porque na maioria das vezes esta não lhe não lhe é plenamente satisfeita no meio em que vive, tenta encontrá-la em culturas que não estão sujeitas às deteriorações da Indústria Cultual Capitalista. Talvez o fato de viver em um contexto tropical em que o sol, o vento, as paisagens da aridez, as montanhas, as estruturas rochosas, as onomatopeias e os aromas das floras espraiem sentimentos difusos, fariam com que o indivíduo caatingueiro fosse muito mais predisposto aos apelos metafóricos mais subjetivos do que à solidez fossilizada das linguagens capitalistas. Entretanto, esse indivíduo não estará inteiramente privado de sentimentos mais espiritualmente profundos na medida em que um despertar leve-o a produzir reflexões, como por exemplo o testemunho da criança paulista, do Calmo Pensar na janela do hotel. Então, no sentido estritamente caatingueiro da reflexão sobre o Sutra: Os fenômenos da vida caatingueira tornam-se tanto mais onerosos porque a nossa cultura é extremamente de significados materiais e muito menos de significantes espirituais, i. e., o homem é a pele, mas não nem sempre é a alma. Por isso, o nosso sonho de Humanidade vai se tornando cada vez mais opaco. É imprescindível que o Poder Superior exorcize o fantasma da opacidade para que a nossa Humanidade brilhe e ilumine tão intensamente como o Sol que encandeia o cume da montanha e descortina o mar perante o Calmo Pensar de uma criança na janela de um hotel do Cumbe.

                                                            
                                                 Serrinha, 20 de fevereiro de 2018.

*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.  


                               
                                                                              


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