Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

O ANJO SEBASTIÃO





               NAQUELA TARDE, Seu Zeca do Paredão, quase aos 90 anos de idade, antigo vaqueiro das caatingas de Uauá, contemplava a imensa vegetação acinzentada que chegava às bordas do terreiro de sua vivenda, de onde assentado em uma cadeira confortável, passava os dias do ócio forçado; por não ter mais condições de vestir a indumentária de couro ocre, arrear o campião, montar e avançar caatinga adentro aboiando para o gado e para os ouvidos do mundo. Quanta saudade! Na parede da sala-de-visitas ainda podia-se ver a perneira, o guarda-peito, as luvas, o jaleque, o gibão e o chapéu-de-couro aposentados em torniquetes de baraúna.

               O verão vinha chegando a passos claudicantes de azêmola cansada, e o vento ondulante trazia os acordes harmoniosos de uma compassiva sinfonia silvestre; como se viesse devolver a Seu Zeca todos os aboios melódicos que ele cantou para a caatinga ao longo do tempo. Então, o Velho Vaqueiro pressentiu que a seca avançava, galopando no dorso da música do vento para circular na medula da saudade. Com pouco, o gado começou a descer para o açude do Paredão e Seu Zeca ouvia os sons dos chocalhos das rezes, identificando cada uma delas pelo vigor dos significantes metálicos.



               O Paredão é uma grande barragem de pedras, construída por escravos de origem africana no século XIX, com todos os traços e requintes arquitetônicos das aguadas similares da Tunísia; para “segurar” as águas das “trovoadas de dezembro” e garantir segurança hídrica para aquela parte das terras do sertão de Uauá.

               O Paredão esteve ligado à vida de Seu Zeca desde a mais tenra idade. Nascido em uma família da Sociedade dos Vaqueiros, ainda criança, vestindo um pequeno jaleque e coberto por um chapéu-de-couro que lhe descia até aos ombros pequeninos, ele começou a acompanhar o pai, os tios e o avô, vaqueiros, montado em um potro alazão especialmente adquirido para o menino iniciar-se nas grandes labutas do campo. Pondo-se jovem, assumiu a vaqueirice de corpo e alma. Tomou tino e coragem. Mas, em uma tarde de outono ao pôr-do-sol saiu de casa a pé para trazer as vacas de leite de uma roça perto do curral para apartar os bezerros. Para tanto, ia ele caminhando por uma estrada aberta no meio de densa mata de caatinga quando foi abordado pelos cangaceiros Arvoredo e Calais. Lampião havia sido morto com parte do grupo e os cangaceiros sobreviventes estavam dispersos pelo sertão como ovelhas desgarradas do rebanho. A primeira iniciativa de Arvoredo foi a de tomar-lhe o facão Jacaré.



               Apesar da idade avançada do Sr. Zeca quando conversamos, ele ainda se recordava da tarde do encontro com os cangaceiros e de haver uma mulher junto com os dois homens. Arvoredo pediu-lhe para ir comprar mantimentos para o grupo, dando-lhe dinheiro para tanto. O jovem vaqueiro ponderou a sua impossibilidade de prestar o serviço em face das “obrigações” que teria pela frente. O cangaceiro entendeu, mas fez-lhe uma advertência:

               – Então você não diga a ninguém que viu a gente aqui!
               O vaqueiro tomou coragem e respondeu em cima da bucha:
               – Se me perguntar, eu falo.
               – Apois, vá simbora! (Mas não lhe devolveram o facão).

               Pouco tempo depois, Arvoredo foi morto em outro lugar da mesma região, pelos agricultores João de Donana e Belo Cardoso, quando o cangaceiro tentou assalta-los.

               Passado algum tempo, João de Donana vinha da feira de Monte Santo para a localidade de São Gonçalo e Bento, no município de Uauá, onde tinha propriedade e residia; escoltando um animal de carga e montado em seu cavalo predileto. Quando deu fé, um jovem cangaceiro solitário pulou no meio da estrada de clavinote em punho e punhal atravessado na cintura.

               – Sabe quem sou eu?
               – Não senhor!
               – Canjica!
               João de Donana não se avexou:
               – Canjica é bom, é doce, é bom de se comer...
               – Mas esta aqui é amarga. Passe a montaria!

               Seu Zeca do Paredão que ao longo da vida acompanhava a caminhada histórica, cultural e espiritual do seu povo, também lembrou-se das “ferras de gado” na Fazenda Acaru e das Romarias de Devoção à Santa Cruz de Monte Santo que tanta Memória legou à sua trajetória de vaqueiro e homem de Fé. Seu Zeca suspirou e quedou a fronte, mas quando a ergueu e voltou a contemplar a flora caatingueira, teve a sua atenção concentrada nos pés de juazeiros que nas entradas das secas renovam as folhagens com tamanha abundância, tamanha juventude e tão efusivo brilho que fascinam as vistas argutas do homem caatingueiro.



               O juazeiro é uma árvore característica do Nordeste do Brasil – e denominação de municípios da Bahia e do Ceará – que nos tempos de estiagem se reveste de um verde tão intenso a ponto de aparentar-se áureo, de tão agressivamente verde, e de uma juventude típica da memória do Padre Cícero Romão Batista. Portanto, os juazeiros são verdadeiros monumentos ecológicos e Espirituais de resistência às secas e de valorização da Vida. Logo, o viajante que peregrina pelos sertões do Nordeste nos rigores dos dias irrespiráveis dos estios prolongados, estacionando no cume de uma serra serpenteada por uma estrada banhada de Sol e ladeada por estruturas rochosas escaldantes; lançando o olhar sequioso para o imenso lençol de paisagem a perder de vista, ao primeiro golpe de olhar tem a sensação de que a terra foi trucidada por um grande sinistro apocalíptico. Mas, entretanto, na proporção em que aguça o olhar insaciável começa a perceber pontos verdes, escandalosamente verdes, demasiadamente brilhantes, cintilando no imenso panorama da massa cinzenta da caatinga. São os juazeiros que nos pontos acentuados da terra escaldante sinalizam o vigor da ESPERANÇA. Também o mandacaru com a sua floração escarlate. Daí os sertanejos chegam ao convencimento de que as chuvas podem até tardar, mas não deixarão de vir irrigar e rejuvenescer a Terra. São principalmente a exuberância verde dos juazeiros que asseguram essa certeza. E quando chega o outono; carregados de frutos amarelos, os juazeiros apascentam a criação doméstica, sustentam a fauna silvestre e satisfazem ao gosto das crianças.



               A infância mesológica do território de caatinga, compreendido entre os municípios de Monte Santo e de Uauá, que faz a terra renascer menina a cada período de estação das chuvas, ainda oferece uma outra forma de acolhimento surpreendendo ao estudioso atento. Por exemplo: em muitos casos, se um habitante do meio rural ou do campo é acometido de patologia mental, tornando incômodo o seu convívio entre outros seres humanos, logo ele rompe mato adentro e avança para o coração da caatinga onde permanece até alcançar a cura. Parece estranho porque os familiares não fazem absolutamente nada para trazê-lo de volta à casa ou procurar tratamento médico para o enfermo. Pelo contrário, levam-lhe na caatinga alimento, água, peças de vestuário e outros materiais de primeira necessidade. De modo geral, a pessoa enferma abriga-se sob uma árvore frondosa: uma quixabeira, um juazeiro ou pé de umbuzeiro, ou ainda em outra copa que lhe propicie abrigo noturno, proteção à canícula ou a chuvas torrenciais. Dessa forma, o indivíduo circula pelo entorno da árvore-abrigo e assim permanece por longo tempo até que lhe venha a cura. Alcançando-a, volta para o regaço familiar e retoma as “obrigações” de homem trabalhador como se nada lhe tivesse ocorrido. As pessoas mais próximas não comentam o fato, todavia, deixam evidente que deve haver, e há no Universo da caatinga uma ECOLOGIA ESPIRITUAL que atende às expectativas existências prementes do povo, mas, não obstante, a Indústria da Seca, a serviço da Aristocracia Burocrática do governo, que se locupleta na capital do Estado para saquear o erário público, tenta ofuscar estas culturas caatingueiras para explorar as demandas humanas do Sertão de Canudos de forma implacável. Foi nesta perspectiva de leitura de mundo, na itinerância que empreendemos, no dorso do eixo rural cultural entre Monte Santo e Uauá que tivemos a oportunidade de constatar dois casos de pessoas que se refugiaram na caatinga em busca da cura de suas patologias mentais, também por falta de políticas públicas de atenção à saúde das demandas rurais. Neste sentido, fomos levados ao convencimento de que a busca da cura na caatinga ainda advenha das culturas indígenas e africanas, portanto, mais identificadas com a Natureza Viva e mais distanciadas das atrocidades perniciosas perpetradas pelo Estado. Aliás, tais atrocidades levaram o povo de Antonio Conselheiro à Revolta de Canudos. Outras tantas realidades surpreendentes ainda se nos depararam no curso da itinerância naquele contexto humano do Sertão de Conselheiro.

               Realidades preponderantes verificadas principalmente nas localidades de São Gonçalo e Bento e, São Paulo e São Paulinho, no município de Uauá. Pessoas que nascem desprovidas de pelos e são obrigadas a fazer usos de perucas para suprir as suas necessidades, inclusive estéticas. Também casais falantes que concebem filhos surdos-mudos e casais surdos-mudos que concebem crianças falantes, dotadas de um repertório admirável. Nos âmbitos dessa realidade funciona um código cultural de sinais semelhantes ao da Libra Oficial, mas um código que somente funciona naquele contexto linguístico-cultural. E não obstante os desafios enfrentados, é um povo muito nobre: generoso, prestativo, solidário, hospitaleiro, religioso e resignado. Uma resignação de natureza monástica perante a realidade da vida cotidiana. Um povo de uma juventude MORAL e ESPIRITUAL digna de reverência e de contemplação.   

               Naquele momento de contemplação, a juventude da Terra atraiu o olhar sereno de Seu Zeca do Paredão, e quando ele o aguçou no sentido da caatinga foi tocado no âmago da alma pela beleza extasiante da paisagem histórica. Então ele lembrou-se do Anjo Sebastião, quase ofuscado na memória remota dos tempos da caatinga. Duas lágrimas robustas deslizaram pela face acobreada do Vaqueiro do Paredão e ele chorou uma dor que pensava morta.

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               Sebastião Paulo – o Anjo Sebastião – nasceu no dia 20 de janeiro de 1957; um dia de domingo; na Fazenda Boa Vista dos Alves de propriedade dos seus pais, próxima à Barragem do Paredão, no município de Uauá, e veio a óbito no dia 13 de agosto de 1961, também dia de domingo. Contava pouco mais de quatro anos de idade quando veio a falecer.

               O senhor Isaías Coelho, pai de Sebastião Paulo, relata em uma produção manuscrita que no dia 11 de agosto de 1961, dia de Nossa Senhora da Boa Morte, por volta das oito horas da manhã, o menino acompanhou o seu irmão Antonio, então adolescente, que foi cuidar de três jumentos e dessedentar-lhes em uma fonte situada a poucos metros da casa da Fazenda. Na ocasião, estando um dos animais um pouco desgarrado dos outros, Antonio deixou o irmãozinho próximo de uma ponta de caatinga e em alguns instantes tomou o jumento para conduzir-lhe ao aprisco, mas quando olhou para o lugar em que havia deixado o menino não o viu mais. Antonio correu para o lugar, gritou em vão chamando o irmãozinho, procurou-o desesperadamente, mas somente encontrou pegadas leves, indicando que Sebastião Paulo havia adentrado à mata de caatinga.

               Antonio correu para casa e pediu ajuda às Mulheres da família. Seu Isaías estava fora a trabalho, somente tomou conhecimento do fato às duas horas da tarde quando retornou para casa, e logo saiu em busca de Sebastião Paulo; acompanhado de cinco filhas e o do filho Antonio. A filha mais velha levava um copo com água. A propósito, convém não esquecer de que nas situações de adversidades, lutas e percalços nas plagas muito remotas deste Sertão de Canudos, as Mulheres são as primeiras pessoas a alevantarem as mãos para enfrentar e superar os desafios. Se as sociedades caatingueiras erguerem a clava forte clamando por Justiça – não a justiça do Estado que muitas vezes no Sertão é uma excrecência – mas a Justiça da Caatinga; logo verão que uma filha delas não foge à luta, nem teme, a própria morte em defesa da Vida. O protagonismo da Mulher do meio rural e do campo vivifica a terra sertaneja.

               Sertão adentro, tierra adentro, testemunhamos e tivemos conhecimento de feitos grandiosos de Mulheres Valorosas deste imenso rincão sertanejo. Agora, lembro-me de Donana Guimarães – matriarca dos Guimarães das localidades de São Gonçalo e Bento no município de Uauá –, já falecida, de cuja saudosa memória tratarei em outro trabalho escrito. Mas devo rememorar que foi em uma conversa com Donana, quase centenária, que comecei a refletir mais profundamente sobre o sentido místico entre a Mulher e a Vida, entre a Mulher e a Água nos âmbitos deste Universo Caatingueiro. Neste Universo Água tem sentido de Maternidade.

               A Maternidade da Água simbolizada no mito da nossa querida Mãe D’água, mantenedora e guardiã dos mananciais potáveis e da nascentes dos rios tem uma aura de mistério. Também, o Mistério da Água erigido pelas mãos da Mulher tem um sentido litúrgico e mariano, da Feminilidade de Maria. Até pelo legado devocional da Santa Cruz de Monte Santo, monumento místico por excelência do grande Sertão de Canudos.           

               No contexto místico do Sertão de Canudos, a água também tem atributos espirituais mais efetivos: é o símbolo do Batismo que torna o indivíduo cristão e membro da comunidade. É também símbolo do líquido que jorrou do lado do Corpo de Cristo no momento em que o soldado romano o feriu com a lança. Por isso, ela é propugnada em forma de aspersão, e com isso santifica a Terra e nela recupera a ovelha que se perdeu. Por isto, nas ocasiões em que o sertanejo é acometido por agruras e aflições espirituais uma cuia ou um copo d’água é um refrigério para a alma e um norte para a busca de um valor afetivo que se perdeu. Dessa forma, Antonio apontou o lugar em que o irmãozinho adentrou à caatinga e os familiares encontraram os seus pequenos rastros que demandavam na direção de um serrote, distante cerca de doze quilômetros do lugar de onde partiu. Passaram a segui-los. Seguiram-nos até o final da tarde quando o ocaso deitou sobre a paisagem o seu lençol escarlate e a noite imensa foi cobrindo a caatinga e o sertão inteiro.

               Com o cair da noite daquela sexta-feira 13 de agosto, Seu Isaías pediu que as mulheres retornassem para casa, com pouco chegou-lhe um filho trazendo alimentos e água para provisão da noite de busca. Então, os homens fizeram um fogo para iluminar o mato e favorecer a procura da criança. Seu Isaías foi em busca de Seu Zeca do Paredão, conhecedor profundo daquelas caatingas, exímio rastejador, interprete meticuloso e arguto dos Mistérios do Mato que veio imediatamente para auxiliá-los. Assim que Seu Zeca chegou ao mato desaconselhou uma fogueira que estava sendo acesa, e recomendou reduzi-la o suficiente para controle do grupo e para iluminar a base de trabalho, porque na época havia muita macambira que é de muito fácil combustão, portanto, o fogo podia esparramar-se com o vento da noite e queimar o menino Sebastião Paulo.



               Assim que os demais vizinhos tomaram conhecimento da procura do menino, vieram ajudar. E quando a noite fechou por completo os membros da família contavam com mais vinte e dois companheiros para auxiliá-los na busca. No correr da noite começaram a aparecer “visagens”, no dizer do Sr. Isaías Coelho, uma delas assemelhava-se a uma raposa; mas quando os homens atentaram mais para a forma verificaram que não se tratava de uma espécie da fauna da região; era um ente de natureza desconhecida. Na mesma ocasião, Seu Isaías observou que a sua camisa estava completamente ensanguentada, sem que ele tivesse sofrido qualquer ferimento, e quando olhou para o chão havia uma “poça de sangue” diante de um companheiro integrante do grupo chamado João, também manchado de sangue sem ter sido ferido. Depois dessas percepções – alta noite –, os homens passaram a ouvir o som de uma campanhia; um chocalho de gado; e uma cabra começou a berrar até de madrugada na direção seguida pelo menino. E na manhã de sábado, liderados por Seu Zeca do Paredão, os homens continuaram a seguir os rastros de Sebastião Paulo, chegando a um acidente geográfico denominado Pedra Grande e bem no meio da caatinga. Passados mais de 40 anos do episódio, Seu Zeca nos revelou em uma conversa: “Nunca perdemos o rastro do menino, mas a gente não conseguia chegar a ele”.

               Na Pedra Grande, os homens verificaram que o menino havia parado e construído dois brinquedos semelhantes a currais de terra, enchendo-os de pedras brancas e búzios do mato, simbolizando gado bovino. É um brinquedo muito preferido por crianças que vivem em Fazendas de Gado no imenso Sertão de Canudos. Os homens do grupo comentaram com Seu Isaías que aqueles brinquedos eram lembranças que o filho havia deixado para ele.

               Os homens avançaram e chegaram ao sopé de um serrote longínquo. Neste ponto caiu a noite de sábado, 12 de agosto de 1961, e como estavam próximos da casa do Sr. Antoninho, procuraram-no e este ofereceu os seus préstimos para que sua casa servisse de base de apoio. Em nenhum momento foi solicitada a ajuda das instituições do Estado. E quando o Sr. Isaías chegou com o grupo à casa do amigo Antoninho, contou um total já de 52 companheiros entre vaqueiros, lavradores e trabalhadores rurais, prestando adjutório na procura do menino Sebastião Paulo; sem incluir as Mulheres que constituíam o apoio logístico de alimentação, água e Orações.

               Não foi difícil concluir na itinerância geográfica que empreendemos entre os municípios de Monte Santo e de Uauá que a figura do Estado dito de Direito e Democrático é demasiado deplorável e suspeita. A história da atuação do Estado naquele contexto do sertão baiano é caracterizada pela repressão implacável, pela violência, pela covardia institucional, pela corrupção endêmica, pela truculência, pela delinquência fardada, pela desconfiança, pelo ódio e pelo despropósito nefando. Canudos de Antonio Conselheiro, Caldeirão de José Lourenço, Cangaceiros de Lampião, Volantes Policiais perpetrantes de latrocínios e outros delitos hediondos, Coluna Prestes – que os sertanejos denominavam “Os Revoltosos” – e que chegou a confundir-se com o próprio Estado dito de Direito; até pelas atrocidades que alguns dos seus integrantes praticaram contra famílias de trabalhadores rurais e do campo naquele contexto caatingueiro, cravando estigmas indeléveis na Memória do Sertão do Conselheiro. Talvez o fato de que Luiz Carlos Prestes, Juarez Távora e outros membros da Coluna tenham sido oficiais e praças do Exército Brasileiro, tornaram-nos idênticos aos trogloditas que trucidaram o povo de Antonio Conselheiro e massacraram o do beato José Lourenço. Portanto, nestas terras ignotas do sertão baiano as fronteiras históricas que deviam apartar o Estado Democrático de Direito do crime avassalador não são visíveis, segundo a Memória do Sertão de Canudos. A propósito, há uma carta do vaqueiro Domingos Vitor de Jesus, datada de 05/12/1896 e endereçada ao barão de Jeremoabo, publicada por Consuelo Novais Sampaio na sua obra Canudos: cartas para o barão, que relata o confronto sangrento entre a Expedição Pires Ferreira e combatentes conselheirista na localidade de Uauá. A missiva do vaqueiro deixa mais do que evidente que a cultura do governo para com os povos oprimidos do sertão do Estado da Bahia sempre foi a cultura da repressão implacável, da bala e da impunidade assegurada aos seus correligionários, apadrinhados, protegidos, grileiros, latifundiários, exploradores, escravagistas e etc. Ainda recentemente os conflitos travados por posses de terras nas áreas de Fundos de Pastos – terras devolutas e secularmente ocupadas por famílias de camponeses – foram assaz nefastos, principalmente no município de Monte Santo. Há relatos fidedignos de que muitos trabalhadores pobres de Fundos de Pastos foram assassinados diante de esposas e filhos menores de idade; a mando de grileiros e latifundiários. Nestes casos, historicamente as instituições do governo inclinam-se a favor dos poderosos e os delitos jamais são investigados com imparcialidade e seriedade, responsabilizando os seus autores e mandantes. Daí a consolidação da Cultura Popular da Resistência e o presumível distanciamento estratégico, e a desconfiança das populações sertanejas para com a lei e o governo do Estado. Aliás, estas distâncias e desconfianças são ampliadas pela péssima qualidade da educação escolar pública que o Poder do Estado impõe às demandas humanas deste sertão; além do descaso para com a saúde, somada à perversidade da regulação hospitalar que restringe o direito constitucional de assistência médica a pessoas agonizantes; deixando-as perecer à míngua ou submetendo-as a Homicídios Hospitalares Qualificados, muitas vezes perpetrados por falsos médicos em nosocômios públicos. Talvez essa distância tenha preservado a Memória incólume do Anjo Sebastião da interferência indesejável da parte dos órgãos do governo oficial.

               Foi a governança de homens do campo solidários e abnegados que possibilitou o encontro do corpo agonizante do Anjo Sebastião naquele dia 13 de agosto de 1961 (domingo) em uma ponta aprazível de caatinga laureada por Juazeiros, Juremas e Umbuzeiros frondosos. O senhor Isaías Coelho, genitor do Anjo Sebastião, narra o episódio daquela manhã de domingo:

Voltamos a procurar às 5 da manhã, este que se ensanguentou comigo estava em cima do serrote. Como vinha vendo a criança na frente, chegou onde ela estava morto debruço.

               Quando o corpinho foi encontrado em decúbito dorsal, o homem que o localizou observou que o Anjo Sebastião havia-se despido da camisa branca com que havia saído de casa, amarrando-a à cintura como uma faixa. O senhor Isaías prossegue em sua narrativa, esculpindo um quadro comovente:

Ele tirou a roupa, e a camisa branca ele passou na cintura, fez uma faixa, estava morto de fome e sede, ele passou três dias e duas noites sem comer e sem beber. Quem achou deu um tiro avisando para todos que estavam caçando, era uns 100 homens, o tio chegou e apanhou a criança, e no pé de um toco tinha 3 umbuzeiros e um pau de rato formando uma cruz, muito bem feita. O pai estava na casa do Antoninho, às 5 horas da tarde ouviu o tiro para o pé do serrote minha irmã estava no terreiro ela falou, seu filho seu irmão vem com ele nos braços, acompanhado um tribunal de homens ela recebeu ele nos braços eu perguntei vem vivo? ela falou (...) se conforme está morto, mandei todos se ajoelharem rezando um pai nosso por nascimento e morte de nosso Senhor Jesus Cristo, me levantei e abracei meu filho que estava com três dias e duas noites que procurava. João Donana (João de Donana, o mesmo que deparou-se com a cangaceiro Canjica na estrada de Monte Santo e lutando ao lado de Belo Cardoso ajudou a matar o cangaceiro Arvoredo) andava montado me deu o cavalo pra eu levar ele para casa, chegando em casa chamei a mãe, venha receber seu filho assim como Maria recebeu seu filho Jesus, quando José de Arimatéia tirou seu filho da cruz e entregou a sua mãe para ser sepultado Sebastião Paulo, nasceu no dia 20 de Janeiro de 1957, um dia de domingo às 2 horas da manhã, faleceu no dia 13 de agosto de 1961 um dia de domingo.

               Das citações acima se depreende que iniciadas as buscas às 05:00h da manhã, um dos homens que integrava o grupo e que havia misteriosamente sido manchado de sangue – tal como o senhor Isaías – sem que tivessem sofrido lesão alguma, resolveu subir a uma pequena serra ou serrote, para melhor observar possíveis movimentos pelo interior da mata de caatinga. Daquele ponto mais alto, o homem avistou o menino ainda caminhando pela mata. Desceu e foi recuperá-lo, mas quando dele aproximou-se verificou que terminara de vir a óbito, tombando sob a proteção de três arbustos em forma de cruz: três pés de umbuzeiros e um pé de pau-de-rato. Estando o corpo despido da camisa, pois antes de vir a óbito, a criança prendera à cintura.



               Os homens haviam estabelecido um acordo tácito no sentido de que o primeiro a encontrar a criança deflagraria um disparo de espingarda para o alto, avisando aos demais companheiros. Eram 5 horas da tarde quando o tiro de aviso foi deflagrado, Sebastião Paulo havia sido encontrado, pelo homem que o avistou do alto de um serrote, mas logo que aproximou-se ele exprimiu o último suspiro. Alertado pelo tiro, chegou um tio do menino, tomando o corpo e erguendo-o nos braços, para entrega-lo ao pai. O menino havia sido oferecido em holocausto, misteriosamente, sem ter sofrido o mais leve arranhão; apesar de haver peregrinado entre os espinhos da caatinga por três dias e duas noites.

               O senhor Isaías Coelho achava-se no interior da residência do amigo Antoninho e uma tia da criança estava no terreiro da casa. Então ela avistou outro irmão trazendo o corpinho do Anjo Sebastião, acompanhado (de) um tribunal de homens. Era um séquito. Logo ela tomou o corpo da criança nos braços e o pai quis saber a verdade: vem vivo? Ao que a irmã replicou: se conforme está morto.

               A expressão se conforme é uma forma de (re)significação da dor crucial para os povos das plagas deste Sertão. Também é uma manifestação de solidariedade e comunhão da dor (re)significada. Desta forma, no contexto do Sertão de Canudos, essa expressão jamais pode ser presumida na perspectiva do conformismo passivo e subserviente, mas de uma tomada de consciência das agruras da vida e da força humana para superá-las.



               Propugnar pelo mistério dor não significa render-se a ela, mas, apesar dela, perseverar na oração e encontrar o sentido da VIDA.  Portanto, o pai do Anjo Sebastião mandou a todos se ajoelharem rezando um pai nosso por nascimento e morte de nosso Senhor Jesus Cristo. Levantando-se, abraçou o corpo do menino que estava com três dias e duas noites que procurava. Naquele momento, João de Donana cedeu a sua montaria e o corpo do menino foi levado às mãos da sua genitora como oblação do Mistério da Cruz de que o próprio pai foi porta voz: venha receber seu filho assim como Maria recebeu seu filho Jesus, quando José de Arimatéia tirou seu filho da cruz e entregou a sua mãe para ser sepultado.

               O corpo de Sebastião Paulo foi sepultado no antigo cemitério bizantino da localidade de São Gonçalo e Bento, e no lugar em que foi encontrado o senhor Isaías Coelho construiu um Memorial, incluindo as árvores dispostas em forma de cruz, sob que o menino expirou o último fiapo de vida. Pouco tempo depois, o cineasta Glauber Rocha chegou a Monte Santo com equipe técnica e elenco para rodar o clássico do Cinema Novo, Deus e o diabo na Terra do Sol.

               É muito provável que Glauber Rocha não tenha tomado conhecimento da história do Anjo Sebastião; certamente a teria incluído em sua película. Apesar de muito recente naquele tempo, a história do Anjo ficou restrita ao pequeno domínio de sua comunidade. Entretanto, no Deus e o diabo uma criança é oferecida em holocausto pelo Beato Sebastião em uma pequena capela. Rosa, esposa do vaqueiro Manuel, tira a vida do Beato pelo fato de haver sacrificado uma criança. Tudo ocorre numa perspectiva típica da religiosidade popular do Sertão do Conselheiro. O próprio Glauber era de formação Presbiteriana e preservava os seus escrúpulos tanto quanto os habitantes do Sertão em que veio trabalhar a Sétima Arte. Quando deslocou-se para Monte Santo, a filha Paloma era muito criança, tal como o Anjo Sebastião, e Glauber não queria que a filhinha pronunciasse o título do filme para não mencionar o nome do diabo, então deixou instruções com a família para os devidos cuidados. Assim, quando alguém perguntava à criança onde estava o pai, ela respondia prontamente: “Meu pai está em Monte Santo, fazendo o filme Deu goiaba na Terra do Sol!”

               A menina tinha razão: a Terra do Sol dá goiaba, mas também nos tem legado este grande patrimônio Espiritual, Cultural e Religioso, o Anjo Sebastião.                                                


                                                               Serrinha, 23 de outubro de 2018.



*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECONOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.
                                 






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