Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

ROSA DE DUBAI

ROSA DE DUBAI 
                                                                          
                                                                           por José Plínio de Oliveira* 

– Primo, o Richa caiu! 

– Caramba! Não me diga uma porra desta... 

– Eu estava indo para o escritório... Quando o helicóptero foi sobrevoando a João Gualberto, vi uma porrada de carros da Federal cercando o edifício. Então, ordenei ao piloto que fosse manobrando como a simular pouso no heliporto do edifício, e foi aí que vi a minha secretária, já algemada, sendo colocada em um carro da polícia. Olhei de novo e observei as demais pessoas do escritório na mesma situação. Mandei tocar para o aeroporto, peguei um avião de carreira e vim para o Rio. Estou agora sob a proteção do Abraão Ibrahim Aziz Abdulah. 

– É um grande libanês. Aliás, é o maior coração libanês que já conheci em toda a minha vida. Banqueiro, dono da maior rede de casas de câmbio do Ocidente e de um coração maior que o mundo. Podes ficar tranquilo, estás em ótimas mãos! Conheço-o há mais de trinta anos. Ele tem parentes no Iraque, inclusive, o ministro de Saddam Hussein, Tariq Aziz, era da família dele. Gente finíssima, o Abraão já me quebrou grandes galhos. 

– Por medida de segurança, ele me botou com os mano; estou em uma comunidade carioca, guardado a sete chaves. Se a Polícia Federal me pegar e me botar sob a caneta do Moro eu tô fodido... Por isto, preciso que ajas rápido. 

– Cara, quando eu vi você botar as tuas empresas naquelas maracutais do Beto, eu disse: “Isso vai dar merda!” Porque o Beto é safado. A esta altura, ele e seus asseclas já devem ter passado todas as falcatruas para as tuas empresas; os nomes deles estão limpos. Te digo mais: não vão ficar dois dias presos; a bomba explodiu na tua mão. O que vais fazer agora? 

– É o seguinte: o Abraão tá tomando as providências. Na noite de hoje os mano vão me levar pra São Paulo, porque o Abraão já tem um plano, mas eu quero te pedir para falar com o Guyl e arrumar logo um habeas corpus pra mim. Eu quero ir pra Dubai, ficar com a Rosa. Agora, preciso organizar as minhas coisas aqui no Brasil, minhas empresas, meus negócios, meus investimentos e depois transferir tudo para os Emirados Árabes. 

– Que tipo de habeas corpus você quer, Murilo? 

– Porra, eu conheço só um tipo de habeas corpus. Há outros? 

– Sim. Agora eles inventaram uma porrada! Tem o habeas corpus de ofício, tem o conjuminado, tem o deliberado e tem, também, o abrangente. Este último, solta o cara e libera todos os seus bens e pertences. 

– É esse que eu quero! Fale com o Guyl! 

– Você sabe que é caro. Tenho que negociar com o Bofe dele... 

– Peraí... O cara é paca? Senta na boneca? Eu só sei que ele tá arregado com os mano, soube aqui. 

– Que ele tá arregado, pra mim é novidade. Sei de longas datas que ele senta na boneca e mama a cabeça da criança; Isso daí não é novidade pra ninguém. Aquilo é uma prostituta vulgaríssima. Mas habeas corpus é um outro papo. Você sabe que o Poder Judiciário do Brasil é a vergonha da humanidade. 

– Dinheiro pra mim não é problema. Compre a minha Liberdade, não quero saber quanto irá custar! Porque aquela porra é uma Indústria de Habeas Corpus. Na casa dos meus velhos em Maringá tem um cofre em um subterrâneo do porão, abarrotado de dólares. Mamãe te diz onde fica, o segredo está dentro daquele nicho de santos na sala de visitas. Pegue tudo o que for necessário; eu preciso de Liberdade. Agora, você tem conhecimento de causa: a Justiça brasileira é vagabunda, corrupta, venal, leviana. Temos que tirar proveito disso. Eu quero Liberdade! Agora, ponho-me a pensar o cara que não tem dinheiro para fazer frente às corrupções e às maracutais da Justiça... 

– Se fode. O pobre, o negro, o favelado, o morador de morro se fodem... Veja uma coisa que me tem indignado desde os tempos de estudante: a fabricação do delinquente pela polícia e pela Justiça. Estagiei em uma Defensoria Pública do Rio de Janeiro. Você sabe que estudei e me formei aí. Eu era muito jovem, discípulo do Doutor Heráclito da Fontoura Sobral Pinto; tinha razões excessivas para me indignar, porque as Defensorias Públicas não defendem porra nenhuma, são um engodo, uma aparelhagem ideológica do Estado para ludibriar e manipular o pobre, o miserável, o excluído. Então eu ia ao Fórum acompanhar interrogatórios de presos pobres, fodidos. Em geral moradores de morros, favelas ou da Baixada Fluminense. O juiz ia arguindo ao réu e traduzindo as suas palavras para um escrivão forense, e o escrivão ia manipulando as palavras do depoente com a cumplicidade do magistrado, para forjar crimes e contravenções penais nos discursos dos sujeitos. Ora, as línguas de morros e favelas, e das próprias periferias da Baixada são de dificílima compreensão para um indivíduo de fora daquelas comunidades linguísticas. Muito do que aqueles infelizes declaravam não era da nossa cultura linguística padrão, da norma culta. Eram códigos estranhos ao léxico do Judiciário. Entretanto, o magistrado ia se apropriando do discurso do sujeito. Literalmente praticando crime de apropriação indébita. A Norma prescreve que o discurso proclamado ao mundo é um bem, é uma coisa de propriedade do emissor. Só que o Judiciário não respeita a essa prerrogativa, o juiz não julga e condena o réu pelo que ele declarou em juízo, mas pelo que o magistrado manipula, prevarica e subverte. Sob os ônus da persuasão espúria, assisti inúmeras vezes a indivíduos pobres e negros assumirem crimes que jamais cometeram. Ao pobre, a Justiça impõe medo, pânico, desespero e precisa fabricar condenados para superlotar presídios e garantir lucros exorbitantes para fornecedores que na grande maioria são parentes ou amantes de juízes e desembargadores. Eu sabia disso como Estagiário de Direito. Entretanto, sob o peso da manipulação e da persuasão, o réu assumia reponsabilidades por todos os crimes perpetrados pelo Poder Judiciário, pelo Crime Organizado Oficial do Estado. 

– É uma porra, cara, é uma safadeza! 

– Só que agora, comigo eles tomam é no cu, eu tenho a rabo deles nas minhas mãos. 

Na manhã seguinte, Murilo voltou a telefonar para o primo Abílio, estabelecido em Brasília como advogado e lobista: 

– Primão, já estou em São Paulo. O Abraão conseguiu um atestado de óbito para mim no Sírio-Libanês, em nome de um velho beduíno, antigo patriarca do Grupo Sarkis que antes de morrer manifestou o desejo de ser enterrado no Deserto da Arábia. No papel, o corpo do “velho beduíno” está clinicamente preparado para o translado. Hoje à tarde serei colocado em uma urna funerária com oxigênio, água e tudo, e levado para Foz do Iguaçu. Em lá chegando, será realizada uma longa cerimônia, segundo os preceitos da religião, somente depois a urna será embarcada em voo comercial. Os mano não saem da minha cola. Como andam as coisas por aí? 

– Impetrei o habeas corpus, vai sair agora. Fiz os contatos e adiantei logo para ganhar tempo. Você tem pressa; depois irei ao Paraná e a gente acerta. 

– Impetraste o abrangente? 

– Óbvio! Não é o que queres? 

– Sim. 

Dois dias depois de celebradas as exéquias, o “morto” estava pronto para o embarque. Na entrada do saguão, veio uma moçárabe toda vestida de negro, coberta com uma burca que só lhe deixava ver os olhos. Ela deitou uma flor sobre a urna funerária. 

– Eu te ofereço esta Rosa de Dubai! Rosa do Deserto, do deserto da minha terra. Tu ficarás com a Rosa e o seu aroma abrirá os teus caminhos; trilharás sendas iluminadas e pavimentadas com diamantes reluzentes. Então, serás apresentado aos atributos ou princípios divinos inatos em todo ser humano. Assim chegarás à perfeição do Divino Princípio e te libertarás. 

Prestes a ser embarcada a urna fúnebre, foi se aproximando para o mesmo voo o sábio e velho Rabino Yirmeyahu Rosenthal, acompanhado do devotado discípulo Nilton Bonder. 

Nascido em Alexandria, da mesma estirpe de Eric Hobsbawm. Desde os tempos de Golda Meir, o jovem Rabino Rosenthal foi a personalidade judia mais incansavelmente atuante e mais resolutamente comprometido com o estabelecimento da PAZ entre Árabes e Israelenses, entre Judeus e Palestinos. No Egito, foi o principal articulador do Diálogo Pacífico que incentivou o presidente Anwar al Sadat a visitar Israel e a celebrar um acordo de PAZ. 

Naquela manhã, quando ia tomar lugar no avião com escalas em Barcelona e Tel Aviv, o velho Rabino observou o caixão do “morto” e logo demonstrou a sua generosidade, solidariedade e respeito para com o Mundo e o Povo Árabe, estendendo a mão para auxiliar na acomodação da urna; mas ao fazê-lo, caiu no chão sob o peso excessivo do “corpo”. Então, um agente federal a serviço da Alfândega veio em socorro do ancião religioso. Mas ao segurar na alça do caixão, também caiu sob o peso e atraiu os seus colegas; um deles abriu logo o caixão de forma precipitada e, com isso, passou a mão na bunda do “falecido” que pulou para fora indignado, e com o dedo em riste pôs-se a proferir injúrias, ameaças, palavrões, blasfêmias e impropérios contra os Federais: 

– Sabes com quem estás falando? 

Resolveram abrir a urna fúnebre; um fundo falso ocultava quatrocentos quilos de cocaína pura. Algemaram o “morto”, e dois dos agentes conduziram o Venerável Sacerdote Judeu para o embarque com outros passageiros, pedindo desculpas pelo lamentável incidente e desejando Boa Viagem! 

Chegando na Delegacia, já lá estava o titular de posse de um Habeas Corpus Abrangente, libertando o preso e devolvendo-lhe a urna funerária, a cocaína, o Atestado de Óbito, o passaporte, o visto de entrada no exterior e a Rosa de Dubai. 







Serrinha, 18 de dezembro de 2018. 





*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.

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