Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

BECO DA FOME


BECO DA FOME
                                            por José Plínio de Oliveira*



               Baleia foi preso no seu bunker, no Beco da Fome, com 600 kg de cocaína pura e 300 de pasta básica. Perplexo em razão das suas excelentes relações e “negócios” com a aparelhagem repressiva do Estado; preso pela primeira vez em 16 anos de atividades; antes de ser algemado pediu para ligar para seus advogados:
               – Para onde os senhores vão me conduzir?
               – Para a Superintendência da Polícia Federal na Praça Mauá!
               Quando o preso ia sendo retirado do camburão para ser conduzido à presença da autoridade, chegaram seus três advogados. Autuado em flagrante de delito, Baleia logo contou com o advogado mais velho do grupo que pediu vênia para conversar com o seu constituinte em sala reservada.
               – Fique frio... tu vais à Audiência de Custódia. Vou conseguir para que sejas arguido por um Juiz de Garantias.
               – O que é um Juiz de Garantias?
               – É um magistrado fabricado pelo Congresso Nacional para assegurar e garantir impunidades a parlamentares e políticos corruptos e ladrões que respondem a processos na Lava-Jato. Só que aprovada e sancionada à toque de caixa, a lei deixa algumas brechas, e então o Juiz de Garantias torna-se “a salvação da lavoura” para grandes traficantes. Convenhamos... é o teu caso.
               – Doutor, ainda bem porque muitos parlamentares do Congresso Nacional são meus clientes. Alguns são meus concorrentes amigos, a minha prisão não interessa a nenhum deles.
               Na área do Fórum do Rio de Janeiro, os federais tiraram as algemas do Baleia e ele subiu a rampa garboso, cercado de advogados e gente da imprensa.
               Mãos nos autos, o magistrado alisou a toga e tomou conhecimento de que o acusado “trabalhava” com cocaína pura. Era o seu maior “barato!” Teve calafrios e suores gélidos.
               O austero magistrado; acima de qualquer suspeita; viveu os seus Anos Dourados em Copacabana com fama de maior cabeção do Posto 6. Mas naquela era só podia consumir um “pó” vagabundo e “batizado” adquirido na Ladeira dos Tabajaras. Somente teve a oportunidade de provar da “pura” em um resto de papelote com a turma do Arpoador. Portanto, naquela solene Audiência de Custódia ele parecia “cheirado” e a esforçar-se para reprimir compulsões agudas. Mas, ainda assim, passou a arguir o preso:                 
               – Vossa Senhoria sofreis acusação de tráfico de drogas, o que tendes a dizer em vossa defesa?
               – Excelência, a vida de um traficante de drogas na Zona Sul do Rio de Janeiro é muito sofrida. Toda a minha clientela é da Classe A. Tenho que me desdobrar para atender às suas exigências; porque na alta sociedade o uso de drogas jamais poderá ser considerado robe, vício, distúrbio, patologia marginalidade. Há imperativos decisivos nos espaços das elites sociais que impõem o recorrer às drogas. Portanto, as drogas são lenitivos auxiliadores na perspectiva de enfrentamento do império de tensões que incide sobre membros da Aristocracia Social. Por isto a minha vida é uma correria. Sofro pressões fortíssimas para mandar entregar produtos de alta qualidade em tempo recorde porque as pessoas têm necessidades prementes...
               – Foi por isso que o senhor também atuou na Bahia?
               – Sim, Excelência, mas quando a “bomba estourou” lá na Bahia, dei cinco relógios de luxo ao cara e ficou tudo certo. Agora, aqui no Rio estou preso à disposição da Justiça.
               – Os relógios eram da grife Rolex?
               – Sim, Excelência.
               – Mas o senhor auferiu lucros vultosos na Bahia.
               – Sim, Excelência... Para o negócio das drogas, o mercado da Bahia é muito promissor. A procura por lá é muitíssimo grande, mas o traficante tem que carregar a política nas costas; aí não há quem aguente.
               – Continue!
               – Para que Vossa Excelência tenha uma ideia, adquiri uma frota de oito Mercedes de Luxo somente para fazer entregas do produto. Não posso mandar atender a um cliente ou a uma cliente em uma mansão suntuosa na Estrada das Canoas, por exemplo, com um motorista dirigindo um Fiat Uno. Tenho clientes que são meninas celebridades com espaços privilegiados nas mídias e na alta sociedade, que me telefonam no meio da noite desesperadas solicitando drogas. Se não forem atendidas imediatamente podem ir a óbito. São moças lindas e elegantérrimas, consideradas altos símbolos sexuais e sensuais. Badaladíssimas, fabricadas por grandes potências midiáticas que centralizam e exploram o sexo das meninas às últimas consequências. O corpo de uma celebridade fabricada é somente um detalhe estético a serviço da primazia do sexo. O sexo está no centro de tudo. Na verdade elas não são reconhecidas como seres humanos, mas como objetos sexuais. Como se fossem feitas de acrílicos brilhantes somente para atrair atenções voluptuosas e eroticidades incontroláveis. Este é o jogo do Capitalismo e a droga está do lado! Por isto essas meninas vivem sob pesados ônus de assédios, volúpias, lascívias, eroticidades e todas as formas de pressões e especulações sensuais e sexuais muito exigentes; tanto da parte de homens poderosos quanto de mulheres influentes. E se não fosse a cocaína para atenuar os impactos? Não há estudos sobre esta realidade! Muitas das celebridades da moda são apresentadoras de programas de televisão, modelos de grifes famosas, garotas-propaganda e estrelas no mundo das artes. A sobrecarga social, erótica e profissional que as esmaga é assaz onerosa e elas não suportariam sem a força do “pó”. O corpo acrílico-sensual de uma celebridade da moda deve brilhar com extrema intensidade: os cabelos, a maquiagem, os decotes, os dentes, as pernas, os seios, a bunda, o biquíni, os olhos, os lábios, os sapatos, as sandálias, as mãos, as unhas. Tudo, tudo, tudo tem que ser atraente para receber flechadas de olhares insaciáveis. Lembro-me de uma jovem musa com cadeira cativa na televisão que ao voltar para casa, depois de um dia movimentado, passou a ter a convicção de que olhos enormes estavam por toda parte fitos nela. Os olhos estavam esparramados pelas paredes, pelos tetos, pelos móveis, pelas peças de decorações, por toda parte. Então, a musa tentou ocultar-se na toilette, os olhos eram maiores ainda e sequiosos, insidiosos, voluptuosos, cínicos, lascivos, levianos. Dali mesmo ligou para mim. Ela ainda não conhecia a cocaína. “Você tem a coisa aí? Traga-me urgentemente!” Hoje é minha maior cliente. Por outro lado, grandes empresários, executivos, CEOs, políticos e até potestades diplomáticas, inclusive estrangeiras, também são meus clientes. Qual a razão de tudo isto? As pessoas acham-se à beira do abismo no mundo contemporâneo. Trepidam no fio da navalha do Capitalismo. Talvez seja fácil atribuir crime a um indivíduo como eu. Ao Capitalismo não! A Lei não leva em conta que todo o glamour e todas as potências da alta sociedade funcionam e prosperam graças a este meu trabalho. Sem ele, teríamos Capitalismo pujante, Bolsas de Valores, Potências Mundiais? O mundo ficou assim, Excelência, e eu sou uma das vítimas.
               – Agora, com todo esse requinte e toda essa lucidez, por que a base de Vossa Senhoria é no Beco da Fome?
               – Por razões estratégicas, Excelência.
               – O Beto da Prado Júnior trabalha para o senhor?
               – Beto da Prado Júnior, Beto da Prado Júnior...
               – Aquele do episódio do Nava.
               – Ah!!! Não.
               – Como foi a vossa prisão?
               – A Polícia chegou, arrombou a porta, deu-me voz de prisão, apreendeu a mercadoria e agora estou aqui...
               – Não pediram licença nem autorização para adentrar ao espaço?
               – Não! Excelência.
               O magistrado decretou a prisão preventiva dos Agentes da Lei por crimes de violações dos Direitos Humanos, Abuso de Poder e Apropriação Indébita. Mandou libertar o acusado, anular o processo e devolver-lhe os pertences.        


                                                Serrinha, 20/02/20

*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECONOLIGIAS – CAMPUS XXII DA UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.




              

Nenhum comentário

Tecnologia do Blogger.