Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

QUIXABEIRINHA

 

QUIXABEIRINHA

                                            por José Plínio de Oliveira*

 


 

               Corria o ano de 1890 quando o peregrino Antonio Vicente Mendes Maciel, o Bom Jesus Conselheiro, descambando com a sua grei apostólica do termo do Itapicuru para o remanso espiritual do Masseté, parou para descanso do seu povo por alguns dias em Quixabeirinha, então minúsculo povoado situado entre a Natuba, atual Nova Soure, e o Junco, atual Sátiro Dias. A propósito, convém esclarecer que o topônimo Quixabeirinha é diminutivo de uma árvore típica da caatinga denominada Quixabeira.

               A Quixabeira é uma árvore providencial! Altaneira e frondosa, seus galhos descem do alto da copa e atingem o chão formando uma estrutura semelhante a uma Oca indígena. Dessa forma, no espaço arrodeando o tronco, circundado pelo emaranhado de galhos, não vicejam ervas rasteiras e daninhas de nenhuma espécie, somente as folhas secas miúdas e misturadas à terra esparramam-se por uma espécie de amplo salão. A terra de quixabeira juntada às folhas secas serve de excelente adubo para jardins e plantas ornamentais. Varrido o chão do seu regaço, a Quixabeira é uma espécie de casa ecológica no meio da caatinga; servindo de abrigo a trabalhadores do campo e, outrora, também servindo de pouso a peregrinos, caçadores, aguardenteiros, foragidos da polícia e da justiça, ciganos, cangaceiros, jagunços e etc. O chefe do cangaço Lampião e o seu grupo tinham preferências pelas Quixabeiras para servir-lhes de espojeiros. Também elas serviram e ainda servem de lugares de coito em que casais enamorados fazem sexo. A propósito, há muitas histórias de trabalhadoras rurais e mulheres viajantes, inclusive ciganas, que deram à luz sob a benfazeja proteção ecológica das Quixabeiras. Conta-se que nos tempos do cativeiro a Quixabeira teria ocultado escravos foragidos e favorecido formações de Quilombos. O fato é que ela foi ganhando espaço estratégico com o desenvolvimento da agricultura e da pecuária no sertão baiano. Além de oferecer abrigo e sombra generosa, ela oferece um pequeno fruto doce e negro, de uma negridade exuberante, brilhante como pérolas de ébano. Os frutos são preferidos por caprinos e ovinos que até sobem pelos galhos para alcança-los com maior abundância. Os homens também os apreciam para mitigar a fome escoteira da caatinga. De sorte que acampando com o seu povo em Quixabeirinha, também, Antonio Conselheiro prestava um grande tributo à flora caatingueira do imenso Sertão de Canudos.     

               Muita gente seguia o Conselheiro, de tal sorte que a estada daqueles fiéis em algum lugar remoto do sertão baiano era um acontecimento excepcional que envolvia e atraía as populações da própria região e de regiões adjacentes. Parecia uma grande festa religiosa. Principalmente interessavam aos povos do sertão as pregações do beato, os Conselhos e as Orações conforme as precisões de toda gente. Era tão bonito aquele mundo, e quando a noite ia caindo acendia-se uma enorme fogueira no cento do descampado semelhante a uma grande praça pública, com as pessoas agrupadas em latadas construídas no entorno; sempre aproveitando o “encosto” de um arbusto venerável da flora caatingueira, por exemplo: um umbuzeiro frondoso, um mulungu, uma quixabeira, um juazeiro, uma cajazeira, uma umburana de cheiro, uma moita de icó... Uma latada maior e mais ao centro era destinada ao Bom Jesus Conselheiro, um “Santuário” provisório. Portanto, os pequenos grupos de seguidores acampavam nas bordas do grande espaço e acendiam pequenas fogueiras, tanto para aquecerem-se quanto para prepararem alimentos. De modo que, quem à distância contemplava o acampamento tinha uma visão extraordinária daquele Mundo de Fé.

               Naquele final de tarde, o povo das redondezas vinha chegando para ouvir o Bom Jesus. Muita gente trazia pessoas enfermas na esperança de curas e milagres. Para tanto, Antonio Conselheiro costumava recolher-se às orações, às leituras e às meditações antes de proclamar ao povo as suas prédicas de copiosa redenção. Portanto, as beatas, os acólitos e os guardas católicos esforçavam-se para preservar o silêncio naqueles momentos de Recolhimento Espiritual. Logo adiante, quando as trevas encabularam a noite e uma lua prateada rajava o céu, o Bom Jesus Conselheiro foi saindo da latada, acompanhado pelas pessoas mais próximas. Ele vinha na frente medindo a passos solenes e cadenciados aquele chão que se tornava sagrado. Alto, magro, cabelos longos deitando aos ombros, trajando uma espécie de longa batina azul que descia do pescoço aos pés, apoiado num cajado com uma mão e dedilhando com a outra um rosário de coco, parou iluminado pela grande fogueira a contemplar a multidão, absorto e em êxtase. De repente, uma moça paralítica de nascença há trinta anos pulou da rede em que foi trazida e correu para o Conselheiro abraçando-lhe as pernas. Este pôs-se a abençoá-la com o Sinal da Cruz. Abençoada, a moça pôs-se a andar, a saltitar e a correr no meio do povo com a desenvoltura de uma atleta de olimpíada. Eclodiu um rumor interminável de orações, benditos e louvores enquanto outros milagres iam-se realizando. E o taumaturgo humílimo com a fronte curvada era como se estivesse em outro mundo, até que chegou a hora da pregação depois de inúmeras curas miraculosas. Então ele caminhou um pouco mais para o coração da assembleia, saudando-a com elevada contrição: “Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo!” E a multidão proclamou em uníssono: “Para sempre seja louvado tão Grande Senhor!” A pregação espraiou-se pela noite...

               Naquela noite, Antonio Conselheiro pregou sobre o Livro de Amós. O fato de que Amós tenha sido trabalhador rural, vaqueiro e cultivador de forragem para o gado era muito do agrado daquele povo trabalhador do campo; na sua grande maioria semelhante ao profeta. A pregação desfiou pela noite adentro até o romper da alva. Com o dia claro, algumas pessoas foram retornando para suas casas e seus afazeres, outras resolveram permanecer ao lado do Bom Jesus Conselheiro. Logo, dentre as almas que seguiram os seus rumos, partiu junto o vaqueiro Belarmino Cardozo, homem muito cordato, crédulo e fidedigno. Respeitabilíssimo em toda a região e homem da mais elevada confiança do Barão de Jeremoabo, Belarmino saiu dali convencido de que Antonio Conselheiro era um Santo. Nunca ouvira falar e jamais assistira com os próprios olhos tantos milagres e tantas maravilhas, não obstante a sua larga experiência de homem de devoção. Sendo exímio conhecedor dos labirintos e dos mistérios das caatingas; afora os mitos, as mandingas, os bentinhos e as rezas, também respeitado como mestre de vaqueiros, ia ele ao passo lento do cavalo de campo meditando e matutando sobre o que presenciara no dorso daquela noite. Até que chegou ao terreiro da vivenda da antiga amiga e comadre Sinhá Maria Francisca da Encarnação, mais conhecida como Sinhá Francisquinha da Natuba.

               Maria Francisca da Encarnação, nome agraciado na Pia Batismal, na verdade era natural da antiga Missão do Saí no termo de Vila Nova da Rainha. Nascida de uma família de escravos africanos a serviço da Companhia de Jesus, tornados “Negros Forros” com a expulsão dos Jesuítas das terras do Brasil pelo Marquês Pombal. Não obstante, Francisca foi levada à escola, ainda como tradição da Companhia, desde a mais tenra idade. Também passando a observar e, portanto, a apreender com os seus antigos os grandes mistérios trazidos da África. Ainda bem mocinha aprendeu a rezar impaludismo, espinhela caída, quebranto e outros males. Logo ficou famosa e passou também a auxiliar a avó materna Sinhá Escolástica da   Anunciação nos trabalhos de parteira. Até quando a velha africana que prestou grande caridade ao povo daquela terra veio a falecer de idade muito avançada.

               Sinhá Escolástica foi Mãe de Parto de brancos ricos, negros pobres, caboclos, índios e retirantes. Não fazia acepção de pessoas. Inúmeras vezes, no meio da noite, chegava um portador a cavalo já trazendo uma montaria escoteira, para chama-la a assistir a mulher de um fazendeiro abastado. Ela não demandava tempo: trajava-se, punha o chalé, tomava o Santo Lenho, os demais recursos, montava no cavalo de sela e partia para servir a uma vida. Mas se chegasse um pobre desvalido carecendo do seu adjutório, não fazia caso e caminhava léguas noturnas para cumprir a “sua obrigação!”  Parece às vezes estranho que uma mulher negra, egressa dos grilhões do cativeiro e dos estigmas da opressão, não levasse em conta todo o sofrimento padecido para servir a quem quer que precisasse. Quando partiu para a eternidade, a neta Francisquinha passou a substitui-la com o mesmo desvelo herdado, prestando os mesmos serviços em toda aquela região. Tempos depois, acompanhando familiares tomou o rumo da região de Natuba onde adquiriram terras e passaram a “botar roça”. Mas, Francisquinha, que havia sido agraciada com esse epíteto por ter nascido de compleição física aparentemente miúda não tinha calibre para a lavoura, portanto, prosseguiu nos antigos ofícios espirituais com o gigantismo próprio da Sabedoria da África; tornando-se muito prestigiada e respeitada em toda a Natuba e adjacências, principalmente por ser mulher afrodescendente de personalidade intrépida, resoluta, decidida, impávida.   

                – Comadre Francisquinha, pois é o que lhe digo, o home levanta até defunto de dentro de caixão.

                O vaqueiro Belarmino havia parado para dar dois dedos de prosa com a velha comadre.

                – É mermo, meu Compadre?

                – Apois! Só vendo pra crer... Me disseram lá que tinha ua mulé que era doida varrida e quando corria pelos mato era preciso mais de vinte home mode pegá a mulé pra amarrá. Apois, levaram a mulé pro Conselheiro e ele mandou tirar as corda. Ela veio e deitou nos pé dele. Ele estendeu a mão na cabeça da mulé e com pouco ela levantou sãzinha, tomando a Bença a ele e conversando tudo direito como se nunca tivesse tido doença. Hoje ela tá botando barraca na feira do Bom Conselho e negociando que é uma beleza. Nunca vi fazer conta de cabeça igual àquela.

                – Oxi!...

                – Comadre Francisquinha, essa noite eu vi aleijado correr, vi cego de nascença enxergar, vi mudo falar e cantar como voz de coro de Igreja, vi cangaceiro botando as armas nos pé do Conselheiro, pedindo perdão e chorando numa latomia de dá pena.

                – Oxi! Eu vou lá... Pois eu vou! Vou conhecer esse home. Eu escutei falar dele, quando ele teve aí em Natuba. Falaram um bando de coisa que ele fazia e eu fiquei curiosa, mas naquele tempo não deu pra ver. Tinha muita obrigação aqui. Agora aliviou um pouco e eu vou lá na Quixabeirinha ver esse home.          

                Naquele tempo, Sinhá Dona Francisquinha dominava o território espiritual daquela terra. As suas rezas, os seus conselhos, os seus remédios, os seus despachos, os seus saberes eram muito procurados pelo povo. Vinha gente de muitas léguas buscar socorro junto de Sinhá Dona Francisquinha, e logo encontrava. De sorte que, a presença de um forte “concorrente” naquela parte do sertão baiano podia fazer declinar o seu elevado prestígio, construído a duras penas. Portanto, dito e feito, três dias depois da conversa com o compadre Belarmino, a sábia curandeira mandou um criado pegar um burro de carga, arreá-lo com cangalha e caçuás, abastecê-los com gêneros alimentícios e outros dons de oferendas, trajou-se com requintes de decência, botou o xale na cabeça e partiu para Quixabeirinha com o criado tocando a azêmola carregada de regalos. E quando já se achava um tanto próxima do Acampamento Sagrado, o Conselheiro chamou um dos seus homens de confiança:

                – Tá chegando uma mulher aqui. Apontando com o cajado a direção donde vinha. Ela vem da parte de Nosso Senhor, mande botar dois bancos debaixo daquela quixabeira grande e quando ela chegar mande tomar assento que logo vou ter com ela.

                O acólito avançou para a direção apontada e não vislumbrou vivalma, quedou a fronte, fez-se pensativo considerando o tino espiritual do Conselheiro e fortalecendo mais ainda as suas convicções de Fé. Como era possível que ele soubesse vir alguém acolá, se não era possível presumir vestígios perante os olhos? Quedou ao chão, colou o ouvido à terra e auscultou rumores de que vinham seres pela estrada, mas ainda distantes. Com pouco a mulher veio chegando e em todo o acampamento passaram a circular saberes de mais um milagre da lavra do Bom Jesus. Logo, com toda a reverência, a visita foi convidada a tomar assento no lugar determinado para aguardar o Peregrino. Depois, este foi chegando lentamente secundado por seus ajudantes. Fez a saudação de praxe: Louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! E assentou-se.

                Sinhá Dona Francisquinha da Natuba estava como que extasiada com tantas pessoas fiéis acolhidas no acampamento. Fez as suas reverências comovidas ao Conselheiro e apresentou-lhe os donativos que trouxera para o povo, ele a retribui com um belo Rosário de Coco tirado da algibeira. Saudados e assentados, iniciaram o diálogo:

 

Sinhá Dona Francisquinha – Seu Bom Jesus Conselheiro, fico até encabulada estando em vossa presença, nesta tarde abençoada em que me apraz tanta crença. Eu não tenho pabulagem e nem tino abestalhado, mas não nego meu espanto diante da vossa graça, eu me sinto apequenada estando em vosso conceito, até pelo meu respeito que não é de pouca monta. Tanta praça já se faz dos vossos feitos no mundo, tantas palavras sabidas, tantas almas resgatadas, tantas peregrinações compridas, tantas lavras de bondade, tantas labutas louváveis nas ações de caridades...           

Seu Bom Jesus Conselheiro – Sinhá Dona Francisquinha, o que faço na verdade, com pedido a vossa vênia, é seguir a Jesus Cristo visto com a Virgem Maria. De sorte que o meu dia-a-dia nas bordas deste Sertão, sustentado em meu bordão, seguido por minha gente eu não faço grandes coisas do que minha alma deseja, mas o pouco que consigo vem da Bondade de Deus.

Sinhá Dona Francisquinha – Seja Deus muito louvado! E quero muito louvar esta Bondade divina que se vê a derramar sobre um povo peregrino que vagueava sem rumo, carregando a sua cruz; um destino tortuoso sacrificava essa gente. Rebanho sem ter pastor, ovelhas soltas na dor até que Deus nos mandou vossos cuidados zelosos, de um Conselheiro firmado nas Palavras de Jesus.

Seu Bom Jesus Conselheiro – Agradeço vossas palavras, Sinhá Dona Francisquinha que provém da vossa alma pela bondade de Deus. Sou devoto da Oração, servo do Senhor Jesus. Vou levando a minha cruz. É só o que sei fazer, no mais é grande virtude que me advém deste povo, alongando-me grandeza na minha simplicidade. Nesta idade em que me acho, fisicamente alquebrado, amparado no bordão que me serve de sustento, reconheço humildemente tenho um Espírito forte e oferto o meu coração para salvar esta terra.

Sinhá Dona Francisquinha – Seu Bom Jesus Conselheiro, nesta terra em

que vivemos temos um quinhão pesado, e tem o pobre esmagado sob o rigor

do flagelo. Nos ofícios de parteira tenho que ser a primeira a labutar pela

vida. Isto tanto me apraz que não tenho outro conselho senão seguir esta sina.

Seu Bom Jesus Conselheiro – Sinhá Dona Francisquinha, há muita sabedoria nos mistérios da existência, e quanto mais ter prudência mais a vida avança a prumo. Tenho comigo este tino de lutar sempre sem trégua, na régua do Evangelho que o Senhor Jesus ensina. Por isto, penso comigo: de um trabalho como o vosso carece tanto o meu povo...

Sinhá Dona Francisquinha – Pois que não seja por isso! Se o povo tem precisão, estou aqui pra servir pois é minha obrigação; tanto aqui nesta Natuba quanto andando no sertão. Se o povo carece de mim, não me faça cerimônia, pois não tenho bajulação.

Seu Bom Jesus Conselheiro – Só Deus há de lhe pagar, Sinhá Dona Francisquinha, por esta Graça Divina de servir à Humanidade, na idade em me acho nunca vi tanta grandeza. Deus lhe pague esta Bondade e lhe dê a Mão Direita.

               À boca da noite, Sinhá Francisquinha mandou seu ajudante ir em casa buscar os seus trens. Na manhã seguinte partiu com povo do Conselheiro a que prestou grandes adjutórios. Além de parteira e rezadeira, também tornou-se Beata. Morreu em Canudos poucos dias antes do fim da Guerra, quando o general Arthur Oscar mandou deflagrar tiros de canhão sobre o Santuário do Conselheiro.    

                                                                                                                     

                                                                                                                                                                                                                                                                         

                                            Serrinha, 21/01/21

 

 

*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAUPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.            

            

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