LAGOA DO GUEDES
LAGOA DO GUEDES
por José Plínio de Oliveira*
Carlito adormeceu com a televisão
ligada aos pés da cama, assistindo ao jogo entre Botafogo e Juventus. O volume
do aparelho bem reduzido e os lampejos coloridos da tela bailando no quarto
davam a sensação de se estar em uma arena da Copa do Mundo. Então ele passou a
sonhar com a decisão final entre Brasil e França, estando no meio da torcida em
pleno Itaquerão, torcendo entusiasticamente pela seleção canarinho; mas na
realidade a TV transmitia uma corrida da Fórmula Um já na madrugada bem alta.
No seu devaneio onírico, aos
quarenta minutos do segundo tempo com empate de 2X2, Carlito acompanhava com um
grande público, em estado de desespero, uma jogada fulminante de Neymar para
levar o Brasil ao hexa. E agitava-se e contorcia-se no leito, banhado de suor,
de alucinação, de vibração e de esperança. Assim a madrugada ia serenando
quando o comentarista de televisão pronunciou o nome Roland Garros. Logo aos ouvidos do dorminhoco soou como se no final
da partida decisiva da seleção Campeã do
Mundo o goleiro adversário Roland tivesse agarrado a bola e frustrado para
sempre o sonho do hexa. Isto é, Roland “garrou” a bola e a Copa de 2014 foi para o espaço. Foi a conta, Carlito despertou
atordoado, abriu a gaveta do criado mudo, pegou 7.65 e disparou dentro do
ouvido.
Carlos Apolinário de Santana era
natural de Lagoa do Guedes, nascido de uma família de criadores de cabras. Ainda
jovem migrou do município de Euclides da Cunha na Bahia para a Região Sudeste e
foi parar no Norte Fluminense, trabalhando como peão de boiadeiro no manejo de
gado para Minas e São Paulo. Depois, foi contratado para os serviços de uma
fazenda em Itaperuna onde se casou com uma pernambucana de Garanhuns com muitos
parentes em Diadema, no ABC Paulista. Algum tempo após, pediu as contas do
trabalho e partiu para São Paulo já com a família acrescida de dois filhos
varões e uma menina, tornando-se operário metalúrgico. A nova atividade de trabalho
abriu-lhe as portas para a melhoria considerável da sua qualificação
profissional e também para a sua prosperidade financeira. A vida próspera de
Carlito elevou o padrão social da família, os filhos avançaram nos estudos,
concluíram formações superiores e conquistaram seus espaços na sociedade
capitalista. Tempos depois a esposa pediu o divórcio e foi viver com outra
mulher em Itapecerica da Serra. Então a vida de Carlito foi descambando para o
caos, entretanto, foi inesperadamente nos meandros do caótico que ele veio a
sublimar as agruras do fracasso, da frustração, da dor na alma e da paixão pela
mulher com o Amor inabalável pelo futebol. Tornou-se Corintiano devotado.
No dia em que foram homologadas as
demandas jurídicas da separação consensual, o Corintiano decidiu mudar-se para
um apartamento de solteiro em Mauá. Antes de fazê-lo, porém, mandou proceder a
uma reforma completa e rigorosa, e a uma decoração requintada. Tudo com motivos
do Time do Coração. Logo na sala
principal, na parede frente à porta, mandou pintar com elevado rigor estético um
escudo imenso do Corinthians e dispor nas outras estantes taças, fotos,
medalhas, quadros com o time vitorioso em vários campeonatos, camisas
autografadas por jogadores, bolas, chuteiras, meias, shorts, luvas de goleiros
e tudo mais a que se tinha direito. Do teto da sala ainda pendiam bandeiras,
faixas, recortes de jornais e revistas. Também os demais cômodos do imóvel nada
ficaram a dever. Na cozinha, copa e suíte, todos os revestimentos pias,
utensílios domésticos e equipamentos – inclusive sanitários –, guarnições de
mesa, banho e cama eram decorados com os signos do Time do Peito. Tudo na casa e na vida tinha que estar relacionado
ao clube.
Aos pés da cama, mandou instalar
um telão nas mesmas dimensões da parede, para dormir embalado pelos toques de
bolas e gritos de goooooooool! No teto mandou pintar fotos e frases de efeito
do “Eterno Presidente Vicente Matheus”. Somente escapava o uniforme de trabalho
porque nele não era permitido. Na vida social com os colegas de trabalho não tinha
tempo para nada; todos os seus momentos de laser eram vividos no Parque São
Jorge, de que se tornou sócio. Se no trabalho alguém perguntava:
– Baiano, qual é a tua religião?
– Eu sou Corintiano!
Chegou o tempo da aposentadoria e
com ele uma saudade incontrolável da Bahia.
– O que é que eu faço? Confidenciou ao chefe.
– Volta pra tua terra, rapaz. O
dia que vier a minha eu parto de rota batida pra Campina Grande!
Dito e feito, resolvidas as questões securitárias
e previdenciárias, Carlito liquidou os seus bens em São Paulo e tomou o rumo do
Sertão de Canudos. Na Lagoa do Guedes, adquiriu uma propriedade fora do
movimento do povoado, adequou-a às suas conveniências e isolou-se do mundo para
viver o mais intensamente possível o gosto pelo esporte. O povo só deu fé do
seu óbito quatro dias depois do ocorrido quando os abutres passaram a sobrevoar
a casa e o odor espalhou-se pelo campo.
– O que é que a gente faz?
– Oxi! É chamar a polícia...
Tomadas as providências de praxe,
Zé de Abílio – primo carnal do suicida – pegou a moto e partiu para avisar aos
demais parentes mais próximos. Na casa dos familiares do Kaimbé, alguém
suplicou em lágrimas:
– Zé, faça outra caridade, passe
na casa de Vó Francisquinha lá no Cipó e avise a ela que era madrinha dele.
– Vou sim!
– Morreu naonde?
– Na casa dele, Vó! Deu um tiro
no ouvido.
– Oxi! Aquele fi do cabrunco tava
doidjo?
Sinhá Francisquinha uma velhinha
admirável, descendente dos Índios Kaimbés de Massacará. Elegante e íntegra como
uma imagem do Mestre Vitalino moldada em massapê
de várzea descampada, do alto dos seus 108 anos de idade, ergueu-se da poltrona
em que estava assentada no alpendre da casa e desceu para o terreiro varrido e
asseado como uma mesa pronta para servir a refeição. Trazia na destra o rosário-de-coco e na outra mão o bastão
em que costumava apoiar-se quando necessário. Expressava uma beleza centenária
das mais notáveis do Sertão de Canudos. Trajada com o rigor e o recato da era conselheirista,
com um vestido cinza que descia do pescoço aos tornozelos, com as mangas
estendidas até os punhos, e ainda ostentava na cabeça o célebre lenço tão característico
das mulheres devotas do Belo Monte.
– Fi do cabrunco... Aquele
istrupício era meu bisneto, meu afiado e foi eu qui peguei ele no parto!
Sinhá Francisquinha estava
indignada com o acontecido. Zé de Abílio, encostado na moto, portava-se com se
estivesse diante de uma divindade.
– Bença, Vó! Eu vou andando mode
tomá as providença.
– Você vai armuçá premero.
Qué morrê também é?
– Vá lá dento. Diga as menina pra
botá o di cumê.
Ela foi caminhando lentamente
para a extremidade oriental do terreiro, parou diante de um gigantesco pé de
jatobá em cuja sobra o gado ruminava ao cair da tarde, olhou demoradamente para
o tempo e deteve-se em profundo silêncio. Depois falou para a árvore:
– Ele vivia incanfinfado com time
de futibol. Dispois que separou da mulé e dos fios em São Paulo não largava
esse aperreio. Era por dimais... Falei pra ele tantas vezes: Larga desse
pegadio home... Parece corno véio enceguerado por mulé de
zona! Agora, qui rumo aquela alma vai tomá?
– Vó, eu já vou ir. Tem muita
coisa ainda. O enterro é amanhã. César vem buscar a senhora de carro. Bença Vó.
– Deus te guarde! Que hora vai
ser?
– Treis hora da tarde, lá mesmo
no Guedes.
Na tarde do dia seguinte, quando
Sinhá Francisquinha foi entrando no Campo Santo já o caixão estava à beira da
cova.
– Êpa! Êpa! Pera ái! Abre o
caxão.
Aproximou-se, abriu uma sacola,
tirou uma bandeira do Flamengo e determinou ao coveiro:
– Bote essa bandera in riba do
corpo pra alma achá o caminho...
Serrinha, 10 de junho de 2014.
*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO
CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDAADE DO ESTADO DA
BAHIA – UNEB EM EUCLIDES DA CUNHA.
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