A CIDADE DE UAUÁ E O CANGAÇO CIBERNÉTICO
A CIDADE DE UAUÁ
E O CANGAÇO CIBERNÉTICO por
José Plínio de Oliveira*
O assalto ocorrido com requintes de
extrema violência contra a agência do Banco do Brasil no último dia 30/10/2014 –
entre outros tantos atentados já perpetrados contra o mesmo estabelecimento –
na cidade de Uauá, no alto Sertão de
Canudos, pode vir a suscitar uma profunda reflexão sobre a escalada da
violência cibernética naquela parte singular do sertão da Bahia.O logradouro
público em que fica situada a referida agência bancária já foi interditado ao
tráfego de veículos para impedir assaltos. Dessa última vez, embora o aparelho
policial tenha atuado com elevada eficiência, segundo a norma vigente, o que de
certa forma aparenta para o grande público uma sensação de segurança e do
cumprimento do dever por parte do Estado, fica evidente que a erradicação ou controle
desses crimes hediondos no Nordeste do Brasil, em última instância, não pode
ser uma atribuição única e exclusiva da repressão policial empregada pelo
Estado. Embora as ações do aparelho de segurança pública sejam indispensáveis,
há muitas outras demandas a serem pensadas, principalmente quando as ações
delituosas no contexto de Uauá lembram as práticas arcaicas, trogloditas e grotescas
do Cangaço de Lampião na região do
Sertão da Bahia, no século passado.
Todo aquele indivíduo que se dedica
a estudar este grande Sertão de Canudosnaatualidade
tem que se preocupar com ele!
Agora no presente século, os
atentados terroristas contra estabelecimentos bancários aqui no sertão da Bahia,
principalmente caixas eletrônicos,estão sendo praticados de forma insopitável e
com um elevado nível de sofisticação tecnológica também acessível ao mundo do
crime. Quase diariamente as mídias locais têm noticiado explosões de equipamentos
eletrônicos de bancos como se fazem nos shows pirotécnicos,muito ao gosto das culturas caatigueiras da Bahia. É de
conhecimento publico que marginais de baixíssima escolaridade básica vêm
manipulando substâncias explosivas; de elevado teor químico – de que os Cangaceiros de Lampião não dispunham –,destinadas
a empregos específicos, e controladas por profissionais especializados das
forças armadas brasileiras. Talvez seja oportuno pensar como é que sobum controle
tão inexpugnável, hermético e rigoroso aqueles materiais chegam às mãos de
criminosos comuns, transtornando as vidas das pequenas comunidades do interior
e atentando contra os patrimônios público e privado. O fato mais contundente a
esse respeito é que se tem verificado indícios de emprego demasiado desses
materiais para explodir agências e postos bancários em pequenas cidades do
interior da Bahia, transtornando as populações desvalidas e também afetando as
estruturas de imóveis situados nas proximidades desses estabelecimentos. Daí se
depreende que os marginais que se utilizam desses materiais explosivos não têm
nenhuma noção preliminar das quantidades a serem empregadas em suas ações
terroristas. Tal como profissionais especializados têm no sentido de operações
de cunho científico. O que é assaz perigoso porque nas mãos de bandidos constituem
verdadeiras ações terroristas que ameaçam também a Segurança Nacional. Essas
práticas hediondas vêm assumindo proporções terroristas mesmo!
Quando os atentados contra bancos
foram inventados por membros das chamadas Organizações
Terroristas do Brasil, a rede bancária deste país estava restrita tão somente
aos grandes centros urbanos. Além disso, os indivíduos que perpetravam aquelas ações
eram revolucionários de elevada formação intelectual e de esmerada teorização
político-ideológica. Lembro-me de que jovem caatingueiro e vaqueiro, eu havia saído
do âmbito familiar da Sociedade dos Vaqueiros
no município de Biritinga, aqui na Bahia, e migrado para a Região Sudeste do
Brasil onde no Rio de Janeiro ingressei na área do serviço militar quando esta
parte da América Latina, tal com outros países do bloco, era sacudida por ações
da chamada Luta Armada. Lembro-me ainda de que por aquela época propagou-se um
discurso sobre uma famigerada Loura da
Metralhadora que, integrando uma daquelas organizações políticas, atuava em
ações de assaltos a bancos – principalmente na Zona Sul da cidade do Rio de
Janeiro – e apavorava a repressão policial pelo fato de ser exímia atiradora, violentíssima
para com a repressão do Estado, estrategista sagaz e malabarista sensual capaz de
levar os indivíduos que atuavam na repressão oficial à prostração servil.Portanto,
a mesma Loura da Metralhadora era propalada
nos espaços públicos como uma jovem muito culta, que fazia uso de um discurso
escorreito e elegante, tratando os quadros de funcionários das agências de bancos
que ajudava assaltar com muita urbanidade, respeito e educação esmerada assim
como o público cliente do banco assaltado,até cuidando da segurança daquele
público; em ocasiões possíveis; chegando mesmo a esclarecer sobre o sentido das
suas ações revolucionárias para financiar as formas de lutas contra a ditadura
militar. É tanto que, naquele tempo, as instruções castrenses que nos eram
ministradas não eram no sentido de prender os
terroristas, mas apropriarmo-nos dos valores financeiros por eles subtraídos
das instituições financeiras para serem divididos nos quartéis, de acordo com a
estratificação hierárquica. Naquele contexto da história, as relações entre a corrupção
oficial e os crimes hediondos,extra quartéis, assim como ainda hoje, eram muito
acentuadas, o que muitas vezes por analogia facilitava as ações dos chamados grupos subversivos. Naquele ambiente da
repressão oficial, circulava uma narrativa dando conta de que uma Organização Subversiva criou um Aparelho no bairro de Deodoro, na cidade
do Rio de Janeiro, para estocar dinheiro subtraído em assaltos praticados
contra instituições financeiras. Ora, por ser o bairro escolhido uma área de
grande concentração de estabelecimentos e organizações militares federais
ficava assegurada uma camuflagem perfeita. Todavia, em dado momento vazou uma
informação acerca da localização do Aparelho
Subversivo e do volume de dinheiro nele estocado. Então, agentes de dois
Órgãos de Segurança Nacional distintos prepararam em sigilo sem que um
desconfiasse das pretensões do outro um assalto à base terrorista para roubar o
dinheiro. Entretanto, no momento da operação de assalto os agentes entraram em
confronto armado uns contra os outros a guisa de lançar mão do dinheiro. Os Subversivos fugiram pelo interior da
noite carioca e um dos agentes da repressão foi mortalmente ferido pelos próprios
colegas, durante o roubo do dinheiro.Aqueles criminosos oficiais jogavam na
lama o caráter do Estado e os subversivos
atuantes – comparados aos assaltantes de bancos e narcotraficantes de agora –
utilizavam recursos bélicos ultrapassados e antiquados, apesar de dominarem um
discurso civilizado e politizado que se constituía em arma poderosa. Além do dinheiro
roubado a propósito de financiar a Luta Armada, também servia para subornar os
Órgãos de Segurança Nacional o que permitiu, por exemplo, que o Capitão Carlos
Lamarca, caçado por todas as polícias do Estado, fugisse do Rio de Janeiro para
o sertão da Bahia subornando policiais rodoviários federais empregados em
barreiras montadas nas malhas rodoviárias do país para prender subversivos. Aquele contexto de banditismo organizado foi
terrível, apesar de ainda muito arcaico se comparado aos dias de hoje. Mas no
contexto contemporâneo, com as pulverizações das linguagens e ferramentas
tecnológicas de última geração, os cangaceiros cibernéticos que atentam contra uma
agência bancária em Uauá, por exemplo, mesmo semi analfabetos e trogloditas podem
dispor de celulares, aplicativos, equipamentos precisos e toda uma parafernália
logística de alta complexidade científica, armamentos sofisticados, automóveis
possantes, explosivos químicos em forma de gel,
tênis e roupas especiais e eficientes para as práticas dos seus delitos. Pensando
nesta perspectiva, o que falta agora para que esses indivíduos utilizarem
substâncias perigosas de altíssimos riscos em uma pequena cidade do interior, a
despeito de rechaçar uma perseguição policial depois da prática de um atentado
de extremada barbárie? Embora, infelizmente,já tenha sido comprovado que, na
maioria das vezes, agentes policiais corruptos são os principais fornecedores
de armas, munições e outros materiais perigosos a bandidos consumados, tal como
se fazia na era do Rei do Cangaço.
Na
última semana, a imprensa brasileira noticiou o desaparecimento de 29 armas, munições
e carregadores de uma reserva de material bélico no antigo Regimento Caetano de
Faria, no Rio de Janeiro. E mesmo antes de se socializar o andamento das
investigações por parte do poder público competente; já iniciando este mês de novembro
de 2014, o noticiário volta à baila para informar sobre a prisão de um policial
suspeito de roubar 80 armas de grosso calibre, privativas do GARRA- Grupo Armado de Repressão a Roubo da Polícia Civil
do Estado de São Paulo. Mesmo aqui na cidade de Serrinha, no Estado da Bahia
onde moro, recentemente foram subtraídos armamentos privativos do Exército
Brasileiro, a serviço do Tiro de Guerra local, mas felizmente foram logo
recuperados.Logo, pensados esses fatos lamentáveis, é imprescindível neles
fazer a leitura de indicadores da erosão corrosiva do caráter da autoridade
constituída que incide sobre o comportamento do servidor público no exercício
da sua função. É demasiado óbvio que sob os ônus decorrentes de relatos de Mensalão, Petrolão e demais catástrofes freqüentes que estraçalham e
apodrecem a Instituição Oficial, o funcionário público é diretamente afetado no
cerne do seu âmago moral e do seu sistema psicológico. Por isso ele pode
imaginar:Por que não tirar um pouco de vantagem dos bens da coisa pública se os
que deviam dar exemplos de austeridade e integridade no exercício do poder
extrapolam das suas práticas de corrupções e ainda contam com impunidades
benfazejas e estimuladoras, para continuarem a erodir a res publica nas plagas do Banditismo Oficial? Quem pode garantir
que funcionários públicos corruptos e marginalizados não venham a repassar
substâncias de teor radioativo, por exemplo, para as mãos de traficantes de drogas,
assaltantes de bancos e demais meliantes? Para um vaqueiro do Sertão de Canudos, cogitar dessa
possibilidade de risco hediondo, dói como um espinho de mandacaru cravado no
fundo do coração.Mas que exemplos oferece o Brasil contemporâneo para que o
servidor público,cuja remuneração é paga também com os recursos do vaqueiro,
para que ele aperfeiçoe a sua força moral quando quase todos os condenados do Mensalão estão indo para casa? Pensar o
contrário implica mobilizar esforços hercúleos
para não se deixar contaminar nem pelas patologias virológicas do Crime Organizado
Oficial, nem pelos vícios abjetos que deformam a fisionomia do país.Aliás, este
momento é demasiado oportuno para se estudar cientificamente como as bases do
serviço público espelham o caráter do poder constituído.
Eu mesmo vi Autoridades dos Poderes Constituídos,
acima de qualquer suspeita, degradando-se e promiscuindo-se com Cowboys da Meia Noite, marginais,
usuários de drogas, traficantes, garotos de programas, jovens moradores de rua
e outras demandas de excluídos nas áreas do Passeio
Público e na Cinelândia, nas
madrugadas boêmias do Rio de Janeiro, quando nelas trabalhei na condição de
soldado, mas tendo saído da Sociedade dos
Vaqueiros do Sertão de Canudos ainda muito jovem.Magistrados, médicos,
militares, juristas, artistas, políticos, promotores de justiça e demais
autoridades do Estado chafurdando-se na lama naquele ambiente de depravação e
de desregramento até às últimas consequências nefastas. Salvei a vida de muitas
daquelas Autoridades Públicas – ariscando a minha própria – quando ameaçadas de
riscos iminentes de agressões, assaltos e assassinatos no estrito cumprimento
do meu dever legal de soldado.Foram momentos de consternações cruciais na minha
vida que me levavam a refletir como era possível que aquelas Autoridades Constituídas
condenassem trabalhadores pobres por bagatelas nos tribunais durante o dia e na
calada da madrugada se degradassem nos antros repugnantes e abjetos da
promiscuidade sexual. Havia um dado assaz surpreendente naqueles ambientes de
depravações humanas: quanto mais elevada a Autoridade daqueles homens públicos,
mais taras tinham por relacionamentos com indivíduos de ínfima condição; do
mundo do crime e da depravação extrema. Por isso, muitos dos marginalizados
quando desejavam abandonar a vida do crime eram impedidos por aqueles que os
assediavam para satisfazer as suas taras homossexuais. Tempos difíceis para o
soldado que assistia a tudo aquilo no contexto abominável do Regime Militar! E
mesmo aqui na Bahia, depois que retornei do Rio de Janeiro, em tempos recentes,
tive uma comprovação constrangedora com um representante do Ministério Público
Estadual junto à Comarca de Conceição do Coité,que teve a petulância e o
descaramento de telefonar para a minha residência convidando-me para tratar de
maneira informal de denúncias por mim impetradas naquele órgão do Estado contra
irregularidades graves perpetradas por servidores públicos nos âmbitos
administrativos da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Entretanto, sendo um
promotor de justiça incompetente para o exercício da função, caiu em
contradições sobre o objeto abordado e terminou por me fazer revelações
aterradoras tanto sobre o funcionamento daquela instituição oficial quanto do
caráter do Estado. Alguns dias depois tomei conhecimento de que o referido
promotor público teria sido preso por prática de pedofilia. A propósito da
atual realidade do mundo, há discursos interrogando a realidade e reconhecendo
que as crises mundiais contemporâneas não são econômicas, são morais!Nesta
perspectiva de estudo acadêmico, em outro prisma prático da segurança pública,
é imprescindível interrogar para onde vão os recursos bélicos – entre outros – subtraídos
da Fazenda Estadual, em consequência da degeneração do caráter da Autoridade do
Estado? Seria para o combate ao crime de forma mais efetiva? E nessa hipótese o
crime estará localizado nos âmbitos Estado de Direito, segundo a ótica do
delinquente comum? É nesta dimensão que se verifica o declínio da Autoridade do
Estado em face da soberania do crime. Neste prisma, a sociedade civil
organizada que é a principal vítima entre a corrupção da Instituição Pública Oficial
e a supremacia do crime comum tem o direito de aprofundar o debate, mesmo que a
Instituição do Estado se escude em um discurso truculento e reacionário.
Para o jovem vaqueiro, saído
das entranhas das caatingas e tabuleiros do
município de Biritinga, toda aquela hierarquização espúria, corrupta, promíscua
e leviana que a Instituição Oficial impunha no seu tempo de serviço militar, veio
a solidificar o convencimento pétreo de que o ignominioso e degenerado caráter do
Estado atenta contra ele próprio e demonstra de forma incisiva que o delinqüente
comum e o servidor público bandido somente refletem o caráter mais nítido do
Crime Organizado Oficial; de longe o mais perigoso para as sociedades humanas.Pois
o vaqueiro tem origem em uma humanidade de estabelecida cultura
mítico-religiosa muito profunda, por isto o vaqueiro tem sentimentos, tem
remorso, tem pavor do inferno, tem medo da Justiça do
Alto, tem um profundo respeito pelas coisas alheias e carrega sobre as dobras
do gibão um casuísmo denso. Portanto, o vaqueiro é um ferrenho nacionalista.
Tem uma devoção consciente pelo seu país.Nesta perspectiva de leitura, segundo
o pensamento do vaqueiro, quando o país detectar índices elevados de escaladas
de violências nas ruas, ao invés de nelas aumentar os contingentes de forças
policiais, deve interrogar as suas próprias Instituições e encontrará as causas
de todas as formas de violências e mazelas que esmagam e dilaceram a população
civil.É uma equação de muito fácil solução! Somando-se a degradação do caráter
das Instituições Oficiais à violação da Lei, o resultado será a escalada da violência
incontrolável nas ruas.Por isso o lamentável episódio ocorrido na cidade de
Uauá no último dia 30/10; assim como muitos outros que estão ocorrendo no
Brasil – se pensado de forma desassombrada e imparcial – aquele episódio pode e
deve ser entendido como uma revelação veraz do caráter deformado do Brasil
contemporâneo,em que cada vez que as mídias jornalísticas se expressam trazem a
lume um escândalo estarrecedor que incide sobre os ombros de uma população
envergonhada, violentada, ameaçada, oprimida e omissa. E nesse caso a omissão é
uma forma de cumplicidade com o crime.Neste ponto, é oportuno esclarecer que
todas as convicções neste sentido – além da maior experiência da minha vida de
vaqueiro sertanejo – são hauridas do estudo devotado da obra do eminente pensador
Durval Vieira de Aguiar.
O pensador baiano e invencível
combatente do crime organizado do seu tempo, Durval Vieira de Aguiar,apresenta em
sua obra prima,Descrições Práticas da
Província da Bahia, os mecanismos institucionais mais eficientes para
estabelecer as fronteiras de segurança que apartam a autoridade do Estado do Crime
Organizado Comum, leviano e brutal já no século XIX do milênio passado, mas ainda
válidos para os dias de hoje.
Homem de elevada formação
intelectual, pensador arguto e meticuloso, Durval Vieira de Aguiar – então Capitão
do Corpo Policial da Província da Bahia,
atual Polícia Militar – foi convidado pelo então Membro do Conselho Provincial
da Bahia, o não menos eminente José Luís de Almeida Couto, amigo pessoal e
admirador da inteligência raríssima do Ilustre Capitão Durval Vieira, para que
esse percorresse todo o território baiano de 1882 a 1883, valendo-se dos meios
de transportes disponíveis na época, do cavalo à canoa fluvial, para estudar
meticulosamente todas as suas potencialidades e recursos sustentáveis da época,que
demandavam das potencialidades econômicas aos recursos humanos, sem entretanto,
deixar de abordar com profundo conhecimento de causa a questão gravíssima da
segurança pública e da educação escolar deplorável oferecida pelo Estado ao
povo da Bahia já naquela era;para no final do trabalho de pesquisa de campo
apresentar um relatório à Assembléia Provincial da Bahia, visando a resgatar
esta parte do Brasil das condições nefastas de atraso, analfabetismo,
ignorância, violência, marginalidade, mediocridade, provincianismo antiquado,
corrupção e impudicícia. Sendo esses os verdadeiros entraves constatados até
hoje que obstacularizam o desenvolvimento integral da Bahia em toda a sua
plenitude. Portanto, para superar aqueles graves desafios, o Conselheiro
Almeida Couto trabalhou exaustivamente naquele contexto do século XIX. O século
do Ilustre Capitão Durval Vieira.
Embora tenha nascido na capital do
Estado, Durval Vieira de Aguiar conhecia o interior da Bahia como a palma da
mão. Quando Aspirante a Oficial estagiou em Jeremoabo onde logo enfrentou o
combate direto com o crime organizado nas áreas de caatinga, daí em diante especializando-se em ações de combate foi
principalmente oficial de tropa, e mesmo alcançando o posto de Tenente-Coronel
quando se tornou Comandante-Geral da Corporação, ainda saia à frente de
batalhões para enfrentar o crime com denodo e bravura incomparáveis, bravura sempre
comedida por princípios éticos rigorosos de que jamais negligenciou. Paradigma
de policial íntegro, honestíssimo e comprometido com o interesse público acima
de tudo; do posto de Capitão ao de Major tornou-se o primeiro gerenciador de
crises da história policial do Brasil. Talvez tenha sido a missão mais difícil
de toda a sua carreira de Policial Militar.
Como é possível que a Bahia tendo
dado à luz a filhos e filhas tão Magnânimos e Magnânimas, e tão Brilhantes em
suas vidas não consiga ela própria iluminar-se, nem mesmo com as luzes que
emanam desses seus filhos e filhas?
Por que não obstante tantos
esforços, tantos trabalhos, tantos sacrifícios, tantas labutas de filhos tão
abnegados a Bahia não consegue superar a mediocridade, o provincianismo, a
violência, a injustiça, a corrupção, a devassidão, o desregramento extremado, o
crime e a promiscuidade? A Bahia não se desvencilha desses estigmas por quê? Qual
o porquê de tamanhas desgraças e tantos tempos difíceis?
Naqueles tempos difíceis, alguns
políticos da Bahia membros dos partidos: Liberal e Conservador tinham-se aliado
a criminosos e chefes de jagunços, e bandidos dando-lhes tamanha ousadia que ao
longo dos anos aqueles marginais foram organizando verdadeiros exércitos de
mercenários, salteadores, jagunços, cangaceiros, bandidos e toda a súcia de
marginais perigosos a ponto de passarem a ameaçar a própria soberania do Estado
de Direito. Período muito difícil aquele!Porque quando a realidade foi-se
agravando de maneira exacerbada a autoridade constituída se viu impotente para
reprimir aquelas potências delituosas; tanto por ter extrapolado as relações de
promiscuidades com as lideranças dos criminosos quanto pelas limitações
estruturais do Estado de Direito para enfrentar a problemática. A esse
respeito, o autor de Os Sertões assim se expressa para aludir às limitações do
governo para intervir em Canudos:
Quando se tornou urgente pacificar o
sertão de Canudos, o governo da Bahia es-
tava a
braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por a-
trevida malta de facínoras, e as suas
incursões alastravam-se pelas Lavras
Dia-
mantinas; o povoado de Brito Mendes
caíra às mãos de outros turbulentos; e em
Jequié
se cometia toda a sorte de atentados. O mal era antigo. O trato de territó-
rio que recortam as
cadeias de Sincorá até as margens do São Francisco, era, ha-
viamuito,
dilatado teatro de tropelias às gentes indisciplinadas do sertão.(CU-
NHA,
2003, p. 135).
O quadro era estarrecedor. O Estado
havia criado áspides que agora se voltavam contra ele próprio. Portanto,
Euclides da Cunha faz uma arqueologia de saberes sobre o episódio de Canudos,
para demonstrar o que havia de gravidade muito antes do tempo de Antonio
Conselheiro. Canudos não era problema, “o mal era antigo” e agravava-se desde o
século XVIII. Todavia, já no século XIX o crime organizado ameaçava sobrepor-se
ao Estado e por pouco não conseguiu. O que pode vir a ocorrer agora se a
sociedade civil não debater o problema das grandes facções criminosas
“hospedadas” nos presídios do governo, de onde comandam ações nos espaços da
vida pública brasileira.
Quando naquele tempo antigo os
ônus das ameaças pesaram sobre os ombros do governo, a única saída encontrada
foi a pacificação. Para isso, recorreu-se à competência e à coragem reconhecida
de Durval Vieira de Aguiar. Só para ilustrar, ele próprio narra a situação em
que encontrou a então Vila de Xique-Xique por ocasião de sua missão pelo
interior da Bahia:
Quando
em 1882 aportamos a esse infeliz termo, achamos a vila completamente
saqueada. A maior parte das casas estragadas pelo incêndio ou pela demolição,
as
paredes, inclusive as da Igreja e cemitério, esburacadas por balas. Os edifíci-
os
mais sólidos estavam sem portas e janelas; as ruas completamente desertas,e
algumas casas que se viam perfeitas estavam brocadas e transformadas
em trin-
cheiras. Os moradores da vila eram os jagunços que a tinham assaltado e os sol-
dados
do numeroso e impotente destacamento, encurralado em uma casa ordiná-
ria e
de impossível defesa. Por qualquer estremecimento rompia uma fuzilaria
sem
causa nem efeitos. A vila estava em perfeita penúria, pois que as barcas
passavam ao largo, e os
catingueiros não se atreviam a entrar; pelo que era pre-
ciso
fazer-se suprimento na cidade da Barra. Os cartórios estavam incendiados,
as
coletorias e agências correio perfeitamente liquidadas;
as famílias com a po-
pulação da vila, refugiadas na cidade da Barra, e as autoridades na vila
do Re-
manso.
As fazendas de criações devastadas e
as estradas cheias de ossadas de a-
nimais e
sepulturas de gente. Eis um ligeiro quadro desta infeliz vila. O móvel
de
tudo é sempre o predomínio partidário dos dois grupos, que sob a denomina-
ção de
Pedra e Marrão, se dizem liberais e conservadores. (AGUIAR, 1979, p.
59).
Esse quadro delineado por um militar
experiente que de Aspirante a Oficial em Jeremoabo a Coronel Comandante Geral
do Corpo de Polícia da Província da Bahiana
capital não oculta a sua indignação com a violência, a injustiça e a corrupção
endêmica; surpreendendo também ao leitor contemporâneo. Uma “vila
completamente saqueada”, “casas estragadas pelo incêndio ou pela demolição”, “inclusive”
as paredes da “Igreja e cemitério, esburacadas por balas”. Foram quadros
degradantes para o que Durval Vieira concentrou a sua verve de negociador de
crises e conseguiu armistícios e garantia da Paz nas Lavras Diamantinas. São
vários os casos citados na sua obra. O que fica evidente que ele foi o primeiro
homem de arma a comprovar que o soldado não é um instrumento da guerra, mas a
garantia da Paz. Canudos não teve essa Sorte; Uauá também não!
A ocupação violenta da vila
de Uauá em novembro de 1896 pela I Expedição Contra Canudos,instituída com
soldados de linha, do Exército, e comandada pelo tenente Pires Ferreira causou
profunda indignação ao vaqueiro Domingos Vitor de Jesus. Em carta datada de
05/12/1896; endereçada ao barão de Jeremoabo; ele quase que manifesta as mesmas
indignações de Durval Vieira ao descrever o quadro dantesco traçado em
Uauá:
O fim desta é
dizer-vos o que sucedeu no Uauá, no dia 21 do próximo passado,
o que V. Exa. já deve ter sabido; depois
do alarme feito fui ver mesmo para
contar de vista. Contei no pátio da rua
do lado do Conselheiro 74, fora os que
estavam por fora mortos e baleadas; creio que segundo o que dizem morreu
mais de cem, os soldados dizem que
morreram dez e voltaram alguns feridos,
as casas de negócios foram queimadas,
enfim foi uma derrota; e depois consta
que condenaram os moradores do lugar que
foram falsos aos soldados, o que
acho injusto. Consta também que nesta
outra batalha, se o governo for feliz,
manda acabar com os moradores do Uauá
depois do acontecido aqui. (SAM-
PAIO, 1999, p.
125).
Corpos humanos espalhados pelo “pátio da
rua”, “as casas de negócios foram queimadas, enfim foi uma derrota”. Segundo a
ótica do vaqueiro, Uauá acha-se arrasada, destruída... Os olhares do vaqueiro e
do coronel entrecruzam-se a partir de pontos distintos, sob os mesmos ônus de
perplexidade e consternação. Mas para o vaqueiro Domingos Vitor aqueles ônus
esmagavam ainda mais o orla do guarda-peito
porque os homens do Exército “condenaram os moradores do lugar” e anunciaram
outra hecatombe em Uauá e, portanto, “consta também que nesta outra batalha, se
o governo for feliz, manda acabar com os moradores do Uauá”. Dessa forma,
pensar uma Uauá que foi atormentada por bandoleiros em tempos muito remotos,
pela Expedição Contra Canudos, pelos cangaceiros de Lampião, pelas Volantes do
Estado, pelos ditos Revoltosos da
Coluna Prestes que perpetraram terríveis atrocidades nos termos de Uauá e agora
pelo Cangaço Cibernético, dói como um
espinho de mandacaru cravado no meio do coração.
Serrinha, 05 de novembro de 2014.
*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO
DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB EM EUCLIDES
DA CUNHA.
REFERÊNCIAS
AGUIAR, Durval Vieira de . Descrições práticas da província da Bahia
. 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979.
CUNHA, Euclides da . Os sertões . São Paulo: Nova Cultural,
2003.
SAMPAIO, Consuelo Novais . Canudos: cartas para o barão . EDUSP/Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 1999.
Leave a Comment