Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

A CIDADE DE UAUÁ E O CANGAÇO CIBERNÉTICO

A CIDADE DE UAUÁ E O CANGAÇO CIBERNÉTICO por José Plínio de Oliveira*

  
O assalto ocorrido com requintes de extrema violência contra a agência do Banco do Brasil no último dia 30/10/2014 – entre outros tantos atentados já perpetrados contra o mesmo estabelecimento – na cidade de Uauá, no alto Sertão de Canudos, pode vir a suscitar uma profunda reflexão sobre a escalada da violência cibernética naquela parte singular do sertão da Bahia.O logradouro público em que fica situada a referida agência bancária já foi interditado ao tráfego de veículos para impedir assaltos. Dessa última vez, embora o aparelho policial tenha atuado com elevada eficiência, segundo a norma vigente, o que de certa forma aparenta para o grande público uma sensação de segurança e do cumprimento do dever por parte do Estado, fica evidente que a erradicação ou controle desses crimes hediondos no Nordeste do Brasil, em última instância, não pode ser uma atribuição única e exclusiva da repressão policial empregada pelo Estado. Embora as ações do aparelho de segurança pública sejam indispensáveis, há muitas outras demandas a serem pensadas, principalmente quando as ações delituosas no contexto de Uauá lembram as práticas arcaicas, trogloditas e grotescas do Cangaço de Lampião na região do Sertão da Bahia, no século passado.

            Todo aquele indivíduo que se dedica a estudar este grande Sertão de Canudosnaatualidade tem que se preocupar com ele!

            Agora no presente século, os atentados terroristas contra estabelecimentos bancários aqui no sertão da Bahia, principalmente caixas eletrônicos,estão sendo praticados de forma insopitável e com um elevado nível de sofisticação tecnológica também acessível ao mundo do crime. Quase diariamente as mídias locais têm noticiado explosões de equipamentos eletrônicos de bancos como se fazem nos shows pirotécnicos,muito ao gosto das culturas caatigueiras da Bahia. É de conhecimento publico que marginais de baixíssima escolaridade básica vêm manipulando substâncias explosivas; de elevado teor químico – de que os Cangaceiros de Lampião não dispunham –,destinadas a empregos específicos, e controladas por profissionais especializados das forças armadas brasileiras. Talvez seja oportuno pensar como é que sobum controle tão inexpugnável, hermético e rigoroso aqueles materiais chegam às mãos de criminosos comuns, transtornando as vidas das pequenas comunidades do interior e atentando contra os patrimônios público e privado. O fato mais contundente a esse respeito é que se tem verificado indícios de emprego demasiado desses materiais para explodir agências e postos bancários em pequenas cidades do interior da Bahia, transtornando as populações desvalidas e também afetando as estruturas de imóveis situados nas proximidades desses estabelecimentos. Daí se depreende que os marginais que se utilizam desses materiais explosivos não têm nenhuma noção preliminar das quantidades a serem empregadas em suas ações terroristas. Tal como profissionais especializados têm no sentido de operações de cunho científico. O que é assaz perigoso porque nas mãos de bandidos constituem verdadeiras ações terroristas que ameaçam também a Segurança Nacional. Essas práticas hediondas vêm assumindo proporções terroristas mesmo!

            Quando os atentados contra bancos foram inventados por membros das chamadas Organizações Terroristas do Brasil, a rede bancária deste país estava restrita tão somente aos grandes centros urbanos. Além disso, os indivíduos que perpetravam aquelas ações eram revolucionários de elevada formação intelectual e de esmerada teorização político-ideológica. Lembro-me de que jovem caatingueiro e vaqueiro, eu havia saído do âmbito familiar da Sociedade dos Vaqueiros no município de Biritinga, aqui na Bahia, e migrado para a Região Sudeste do Brasil onde no Rio de Janeiro ingressei na área do serviço militar quando esta parte da América Latina, tal com outros países do bloco, era sacudida por ações da chamada Luta Armada. Lembro-me ainda de que por aquela época propagou-se um discurso sobre uma famigerada Loura da Metralhadora que, integrando uma daquelas organizações políticas, atuava em ações de assaltos a bancos – principalmente na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro – e apavorava a repressão policial pelo fato de ser exímia atiradora, violentíssima para com a repressão do Estado, estrategista sagaz e malabarista sensual capaz de levar os indivíduos que atuavam na repressão oficial à prostração servil.Portanto, a mesma Loura da Metralhadora era propalada nos espaços públicos como uma jovem muito culta, que fazia uso de um discurso escorreito e elegante, tratando os quadros de funcionários das agências de bancos que ajudava assaltar com muita urbanidade, respeito e educação esmerada assim como o público cliente do banco assaltado,até cuidando da segurança daquele público; em ocasiões possíveis; chegando mesmo a esclarecer sobre o sentido das suas ações revolucionárias para financiar as formas de lutas contra a ditadura militar. É tanto que, naquele tempo, as instruções castrenses que nos eram ministradas não eram no sentido de prender os terroristas, mas apropriarmo-nos dos valores financeiros por eles subtraídos das instituições financeiras para serem divididos nos quartéis, de acordo com a estratificação hierárquica. Naquele contexto da história, as relações entre a corrupção oficial e os crimes hediondos,extra quartéis, assim como ainda hoje, eram muito acentuadas, o que muitas vezes por analogia facilitava as ações dos chamados grupos subversivos. Naquele ambiente da repressão oficial, circulava uma narrativa dando conta de que uma Organização Subversiva criou um Aparelho no bairro de Deodoro, na cidade do Rio de Janeiro, para estocar dinheiro subtraído em assaltos praticados contra instituições financeiras. Ora, por ser o bairro escolhido uma área de grande concentração de estabelecimentos e organizações militares federais ficava assegurada uma camuflagem perfeita. Todavia, em dado momento vazou uma informação acerca da localização do Aparelho Subversivo e do volume de dinheiro nele estocado. Então, agentes de dois Órgãos de Segurança Nacional distintos prepararam em sigilo sem que um desconfiasse das pretensões do outro um assalto à base terrorista para roubar o dinheiro. Entretanto, no momento da operação de assalto os agentes entraram em confronto armado uns contra os outros a guisa de lançar mão do dinheiro. Os Subversivos fugiram pelo interior da noite carioca e um dos agentes da repressão foi mortalmente ferido pelos próprios colegas, durante o roubo do dinheiro.Aqueles criminosos oficiais jogavam na lama o caráter do Estado e os subversivos atuantes – comparados aos assaltantes de bancos e narcotraficantes de agora – utilizavam recursos bélicos ultrapassados e antiquados, apesar de dominarem um discurso civilizado e politizado que se constituía em arma poderosa. Além do dinheiro roubado a propósito de financiar a Luta Armada, também servia para subornar os Órgãos de Segurança Nacional o que permitiu, por exemplo, que o Capitão Carlos Lamarca, caçado por todas as polícias do Estado, fugisse do Rio de Janeiro para o sertão da Bahia subornando policiais rodoviários federais empregados em barreiras montadas nas malhas rodoviárias do país para prender subversivos. Aquele contexto de banditismo organizado foi terrível, apesar de ainda muito arcaico se comparado aos dias de hoje. Mas no contexto contemporâneo, com as pulverizações das linguagens e ferramentas tecnológicas de última geração, os cangaceiros cibernéticos que atentam contra uma agência bancária em Uauá, por exemplo, mesmo semi analfabetos e trogloditas podem dispor de celulares, aplicativos, equipamentos precisos e toda uma parafernália logística de alta complexidade científica, armamentos sofisticados, automóveis possantes, explosivos químicos em forma de gel, tênis e roupas especiais e eficientes para as práticas dos seus delitos. Pensando nesta perspectiva, o que falta agora para que esses indivíduos utilizarem substâncias perigosas de altíssimos riscos em uma pequena cidade do interior, a despeito de rechaçar uma perseguição policial depois da prática de um atentado de extremada barbárie? Embora, infelizmente,já tenha sido comprovado que, na maioria das vezes, agentes policiais corruptos são os principais fornecedores de armas, munições e outros materiais perigosos a bandidos consumados, tal como se fazia na era do Rei do Cangaço.

 Na última semana, a imprensa brasileira noticiou o desaparecimento de 29 armas, munições e carregadores de uma reserva de material bélico no antigo Regimento Caetano de Faria, no Rio de Janeiro. E mesmo antes de se socializar o andamento das investigações por parte do poder público competente; já iniciando este mês de novembro de 2014, o noticiário volta à baila para informar sobre a prisão de um policial suspeito de roubar 80 armas de grosso calibre, privativas do GARRA- Grupo  Armado de Repressão a Roubo da Polícia Civil do Estado de São Paulo. Mesmo aqui na cidade de Serrinha, no Estado da Bahia onde moro, recentemente foram subtraídos armamentos privativos do Exército Brasileiro, a serviço do Tiro de Guerra local, mas felizmente foram logo recuperados.Logo, pensados esses fatos lamentáveis, é imprescindível neles fazer a leitura de indicadores da erosão corrosiva do caráter da autoridade constituída que incide sobre o comportamento do servidor público no exercício da sua função. É demasiado óbvio que sob os ônus decorrentes de relatos de Mensalão, Petrolão e demais catástrofes freqüentes que estraçalham e apodrecem a Instituição Oficial, o funcionário público é diretamente afetado no cerne do seu âmago moral e do seu sistema psicológico. Por isso ele pode imaginar:Por que não tirar um pouco de vantagem dos bens da coisa pública se os que deviam dar exemplos de austeridade e integridade no exercício do poder extrapolam das suas práticas de corrupções e ainda contam com impunidades benfazejas e estimuladoras, para continuarem a erodir a res publica nas plagas do Banditismo Oficial? Quem pode garantir que funcionários públicos corruptos e marginalizados não venham a repassar substâncias de teor radioativo, por exemplo, para as mãos de traficantes de drogas, assaltantes de bancos e demais meliantes? Para um vaqueiro do Sertão de Canudos, cogitar dessa possibilidade de risco hediondo, dói como um espinho de mandacaru cravado no fundo do coração.Mas que exemplos oferece o Brasil contemporâneo para que o servidor público,cuja remuneração é paga também com os recursos do vaqueiro, para que ele aperfeiçoe a sua força moral quando quase todos os condenados do Mensalão estão indo para casa? Pensar o contrário implica mobilizar esforços hercúleos para não se deixar contaminar nem pelas patologias virológicas do Crime Organizado Oficial, nem pelos vícios abjetos que deformam a fisionomia do país.Aliás, este momento é demasiado oportuno para se estudar cientificamente como as bases do serviço público espelham o caráter do poder constituído.

Eu mesmo vi Autoridades dos Poderes Constituídos, acima de qualquer suspeita, degradando-se e promiscuindo-se com Cowboys da Meia Noite, marginais, usuários de drogas, traficantes, garotos de programas, jovens moradores de rua e outras demandas de excluídos nas áreas do Passeio Público e na Cinelândia, nas madrugadas boêmias do Rio de Janeiro, quando nelas trabalhei na condição de soldado, mas tendo saído da Sociedade dos Vaqueiros do Sertão de Canudos ainda muito jovem.Magistrados, médicos, militares, juristas, artistas, políticos, promotores de justiça e demais autoridades do Estado chafurdando-se na lama naquele ambiente de depravação e de desregramento até às últimas consequências nefastas. Salvei a vida de muitas daquelas Autoridades Públicas – ariscando a minha própria – quando ameaçadas de riscos iminentes de agressões, assaltos e assassinatos no estrito cumprimento do meu dever legal de soldado.Foram momentos de consternações cruciais na minha vida que me levavam a refletir como era possível que aquelas Autoridades Constituídas condenassem trabalhadores pobres por bagatelas nos tribunais durante o dia e na calada da madrugada se degradassem nos antros repugnantes e abjetos da promiscuidade sexual. Havia um dado assaz surpreendente naqueles ambientes de depravações humanas: quanto mais elevada a Autoridade daqueles homens públicos, mais taras tinham por relacionamentos com indivíduos de ínfima condição; do mundo do crime e da depravação extrema. Por isso, muitos dos marginalizados quando desejavam abandonar a vida do crime eram impedidos por aqueles que os assediavam para satisfazer as suas taras homossexuais. Tempos difíceis para o soldado que assistia a tudo aquilo no contexto abominável do Regime Militar! E mesmo aqui na Bahia, depois que retornei do Rio de Janeiro, em tempos recentes, tive uma comprovação constrangedora com um representante do Ministério Público Estadual junto à Comarca de Conceição do Coité,que teve a petulância e o descaramento de telefonar para a minha residência convidando-me para tratar de maneira informal de denúncias por mim impetradas naquele órgão do Estado contra irregularidades graves perpetradas por servidores públicos nos âmbitos administrativos da Universidade do Estado da Bahia – UNEB. Entretanto, sendo um promotor de justiça incompetente para o exercício da função, caiu em contradições sobre o objeto abordado e terminou por me fazer revelações aterradoras tanto sobre o funcionamento daquela instituição oficial quanto do caráter do Estado. Alguns dias depois tomei conhecimento de que o referido promotor público teria sido preso por prática de pedofilia. A propósito da atual realidade do mundo, há discursos interrogando a realidade e reconhecendo que as crises mundiais contemporâneas não são econômicas, são morais!Nesta perspectiva de estudo acadêmico, em outro prisma prático da segurança pública, é imprescindível interrogar para onde vão os recursos bélicos – entre outros – subtraídos da Fazenda Estadual, em consequência da degeneração do caráter da Autoridade do Estado? Seria para o combate ao crime de forma mais efetiva? E nessa hipótese o crime estará localizado nos âmbitos Estado de Direito, segundo a ótica do delinquente comum? É nesta dimensão que se verifica o declínio da Autoridade do Estado em face da soberania do crime. Neste prisma, a sociedade civil organizada que é a principal vítima entre a corrupção da Instituição Pública Oficial e a supremacia do crime comum tem o direito de aprofundar o debate, mesmo que a Instituição do Estado se escude em um discurso truculento e reacionário.

            Para o jovem vaqueiro, saído das entranhas das caatingas e tabuleiros do município de Biritinga, toda aquela hierarquização espúria, corrupta, promíscua e leviana que a Instituição Oficial impunha no seu tempo de serviço militar, veio a solidificar o convencimento pétreo de que o ignominioso e degenerado caráter do Estado atenta contra ele próprio e demonstra de forma incisiva que o delinqüente comum e o servidor público bandido somente refletem o caráter mais nítido do Crime Organizado Oficial; de longe o mais perigoso para as sociedades humanas.Pois o vaqueiro tem origem em uma humanidade de estabelecida cultura mítico-religiosa muito profunda, por isto o vaqueiro tem sentimentos, tem remorso, tem pavor do inferno, tem medo da Justiça do Alto, tem um profundo respeito pelas coisas alheias e carrega sobre as dobras do gibão um casuísmo denso. Portanto, o vaqueiro é um ferrenho nacionalista. Tem uma devoção consciente pelo seu país.Nesta perspectiva de leitura, segundo o pensamento do vaqueiro, quando o país detectar índices elevados de escaladas de violências nas ruas, ao invés de nelas aumentar os contingentes de forças policiais, deve interrogar as suas próprias Instituições e encontrará as causas de todas as formas de violências e mazelas que esmagam e dilaceram a população civil.É uma equação de muito fácil solução! Somando-se a degradação do caráter das Instituições Oficiais à violação da Lei, o resultado será a escalada da violência incontrolável nas ruas.Por isso o lamentável episódio ocorrido na cidade de Uauá no último dia 30/10; assim como muitos outros que estão ocorrendo no Brasil – se pensado de forma desassombrada e imparcial – aquele episódio pode e deve ser entendido como uma revelação veraz do caráter deformado do Brasil contemporâneo,em que cada vez que as mídias jornalísticas se expressam trazem a lume um escândalo estarrecedor que incide sobre os ombros de uma população envergonhada, violentada, ameaçada, oprimida e omissa. E nesse caso a omissão é uma forma de cumplicidade com o crime.Neste ponto, é oportuno esclarecer que todas as convicções neste sentido – além da maior experiência da minha vida de vaqueiro sertanejo – são hauridas do estudo devotado da obra do eminente pensador Durval Vieira de Aguiar.

            O pensador baiano e invencível combatente do crime organizado do seu tempo, Durval Vieira de Aguiar,apresenta em sua obra prima,Descrições Práticas da Província da Bahia, os mecanismos institucionais mais eficientes para estabelecer as fronteiras de segurança que apartam a autoridade do Estado do Crime Organizado Comum, leviano e brutal já no século XIX do milênio passado, mas ainda válidos para os dias de hoje.

            Homem de elevada formação intelectual, pensador arguto e meticuloso, Durval Vieira de Aguiar – então Capitão do Corpo Policial da Província da Bahia, atual Polícia Militar – foi convidado pelo então Membro do Conselho Provincial da Bahia, o não menos eminente José Luís de Almeida Couto, amigo pessoal e admirador da inteligência raríssima do Ilustre Capitão Durval Vieira, para que esse percorresse todo o território baiano de 1882 a 1883, valendo-se dos meios de transportes disponíveis na época, do cavalo à canoa fluvial, para estudar meticulosamente todas as suas potencialidades e recursos sustentáveis da época,que demandavam das potencialidades econômicas aos recursos humanos, sem entretanto, deixar de abordar com profundo conhecimento de causa a questão gravíssima da segurança pública e da educação escolar deplorável oferecida pelo Estado ao povo da Bahia já naquela era;para no final do trabalho de pesquisa de campo apresentar um relatório à Assembléia Provincial da Bahia, visando a resgatar esta parte do Brasil das condições nefastas de atraso, analfabetismo, ignorância, violência, marginalidade, mediocridade, provincianismo antiquado, corrupção e impudicícia. Sendo esses os verdadeiros entraves constatados até hoje que obstacularizam o desenvolvimento integral da Bahia em toda a sua plenitude. Portanto, para superar aqueles graves desafios, o Conselheiro Almeida Couto trabalhou exaustivamente naquele contexto do século XIX. O século do Ilustre Capitão Durval Vieira.

Embora tenha nascido na capital do Estado, Durval Vieira de Aguiar conhecia o interior da Bahia como a palma da mão. Quando Aspirante a Oficial estagiou em Jeremoabo onde logo enfrentou o combate direto com o crime organizado nas áreas de caatinga, daí em diante especializando-se em ações de combate foi principalmente oficial de tropa, e mesmo alcançando o posto de Tenente-Coronel quando se tornou Comandante-Geral da Corporação, ainda saia à frente de batalhões para enfrentar o crime com denodo e bravura incomparáveis, bravura sempre comedida por princípios éticos rigorosos de que jamais negligenciou. Paradigma de policial íntegro, honestíssimo e comprometido com o interesse público acima de tudo; do posto de Capitão ao de Major tornou-se o primeiro gerenciador de crises da história policial do Brasil. Talvez tenha sido a missão mais difícil de toda a sua carreira de Policial Militar.

             Como é possível que a Bahia tendo dado à luz a filhos e filhas tão Magnânimos e Magnânimas, e tão Brilhantes em suas vidas não consiga ela própria iluminar-se, nem mesmo com as luzes que emanam desses seus filhos e filhas?

             Por que não obstante tantos esforços, tantos trabalhos, tantos sacrifícios, tantas labutas de filhos tão abnegados a Bahia não consegue superar a mediocridade, o provincianismo, a violência, a injustiça, a corrupção, a devassidão, o desregramento extremado, o crime e a promiscuidade? A Bahia não se desvencilha desses estigmas por quê? Qual o porquê de tamanhas desgraças e tantos tempos difíceis?
Naqueles tempos difíceis, alguns políticos da Bahia membros dos partidos: Liberal e Conservador tinham-se aliado a criminosos e chefes de jagunços, e bandidos dando-lhes tamanha ousadia que ao longo dos anos aqueles marginais foram organizando verdadeiros exércitos de mercenários, salteadores, jagunços, cangaceiros, bandidos e toda a súcia de marginais perigosos a ponto de passarem a ameaçar a própria soberania do Estado de Direito. Período muito difícil aquele!Porque quando a realidade foi-se agravando de maneira exacerbada a autoridade constituída se viu impotente para reprimir aquelas potências delituosas; tanto por ter extrapolado as relações de promiscuidades com as lideranças dos criminosos quanto pelas limitações estruturais do Estado de Direito para enfrentar a problemática. A esse respeito, o autor de Os Sertões assim se expressa para aludir às limitações do governo para intervir em Canudos:

                                         Quando se tornou urgente pacificar o sertão de Canudos, o governo da Bahia es-
                                         tava a braços com outras insurreições. A cidade de Lençóis fora investida por a-
                                         trevida malta de facínoras, e as suas incursões alastravam-se pelas Lavras    Dia-
                                         mantinas; o povoado de Brito Mendes caíra às mãos de outros turbulentos; e em
                                         Jequié se cometia toda a sorte de atentados. O mal era antigo. O trato de territó-
                                         rio que recortam as cadeias de Sincorá até as margens do São Francisco, era, ha-
                                         viamuito, dilatado teatro de tropelias às gentes indisciplinadas do sertão.(CU-
                                         NHA, 2003, p. 135).

O quadro era estarrecedor. O Estado havia criado áspides que agora se voltavam contra ele próprio. Portanto, Euclides da Cunha faz uma arqueologia de saberes sobre o episódio de Canudos, para demonstrar o que havia de gravidade muito antes do tempo de Antonio Conselheiro. Canudos não era problema, “o mal era antigo” e agravava-se desde o século XVIII. Todavia, já no século XIX o crime organizado ameaçava sobrepor-se ao Estado e por pouco não conseguiu. O que pode vir a ocorrer agora se a sociedade civil não debater o problema das grandes facções criminosas “hospedadas” nos presídios do governo, de onde comandam ações nos espaços da vida pública brasileira.

             Quando naquele tempo antigo os ônus das ameaças pesaram sobre os ombros do governo, a única saída encontrada foi a pacificação. Para isso, recorreu-se à competência e à coragem reconhecida de Durval Vieira de Aguiar. Só para ilustrar, ele próprio narra a situação em que encontrou a então Vila de Xique-Xique por ocasião de sua missão pelo interior da Bahia:

                                         Quando em 1882 aportamos a esse infeliz termo, achamos a vila completamente
                                         saqueada. A maior parte das casas estragadas pelo incêndio ou pela   demolição,
                                         as paredes, inclusive as da Igreja e cemitério, esburacadas por balas. Os edifíci-
                                         os mais sólidos estavam sem portas e janelas; as ruas completamente desertas,e
                                         algumas casas que se viam perfeitas estavam brocadas e transformadas em  trin-
                                         cheiras. Os moradores da vila eram os jagunços que a tinham assaltado e os  sol-
                                         dados do numeroso e impotente destacamento, encurralado em uma casa ordiná-
                                         ria e de impossível defesa. Por qualquer estremecimento rompia uma     fuzilaria
                                         sem causa nem efeitos. A vila estava em perfeita penúria, pois que as        barcas
                                         passavam ao largo, e os catingueiros não se atreviam a entrar; pelo que era  pre-
                                         ciso fazer-se suprimento na cidade da Barra. Os cartórios estavam   incendiados,
                                         as coletorias e agências correio perfeitamente liquidadas; as famílias com a   po-
                                         pulação da vila, refugiadas na cidade da Barra, e as autoridades na vila do     Re-
                                         manso. As fazendas de criações devastadas e as estradas cheias de ossadas de  a-
                                         nimais e sepulturas de gente. Eis um ligeiro quadro desta infeliz vila. O    móvel
                                         de tudo é sempre o predomínio partidário dos dois grupos, que sob a  denomina-
                                         ção de Pedra e Marrão, se dizem liberais e conservadores. (AGUIAR, 1979,   p.
                                         59).

Esse quadro delineado por um militar experiente que de Aspirante a Oficial em Jeremoabo a Coronel Comandante Geral do Corpo de Polícia da Província da Bahiana capital não oculta a sua indignação com a violência, a injustiça e a corrupção endêmica; surpreendendo também ao leitor contemporâneo. Uma “vila completamente saqueada”, “casas estragadas pelo incêndio ou pela demolição”, “inclusive” as paredes da “Igreja e cemitério, esburacadas por balas”. Foram quadros degradantes para o que Durval Vieira concentrou a sua verve de negociador de crises e conseguiu armistícios e garantia da Paz nas Lavras Diamantinas. São vários os casos citados na sua obra. O que fica evidente que ele foi o primeiro homem de arma a comprovar que o soldado não é um instrumento da guerra, mas a garantia da Paz. Canudos não teve essa Sorte; Uauá também não!

             A ocupação violenta da vila de Uauá em novembro de 1896 pela I Expedição Contra Canudos,instituída com soldados de linha, do Exército, e comandada pelo tenente Pires Ferreira causou profunda indignação ao vaqueiro Domingos Vitor de Jesus. Em carta datada de 05/12/1896; endereçada ao barão de Jeremoabo; ele quase que manifesta as mesmas indignações de Durval Vieira ao descrever o quadro dantesco traçado em Uauá:  


                                    O fim desta é dizer-vos o que sucedeu no Uauá, no dia 21 do próximo passado,
                                            o que V. Exa. já deve ter sabido; depois do alarme feito fui ver mesmo     para
                                            contar de vista. Contei no pátio da rua do lado do Conselheiro 74, fora os que
                                            estavam por fora mortos e baleadas; creio que segundo o que dizem morreu
                                            mais de cem, os soldados dizem que morreram dez e voltaram alguns   feridos,
                                            as casas de negócios foram queimadas, enfim foi uma derrota; e depois consta
                                            que condenaram os moradores do lugar que foram falsos aos soldados, o que
                                            acho injusto. Consta também que nesta outra batalha, se o governo for     feliz,
                                            manda acabar com os moradores do Uauá depois do acontecido aqui.   (SAM-
                                            PAIO, 1999, p. 125).

Corpos humanos espalhados pelo “pátio da rua”, “as casas de negócios foram queimadas, enfim foi uma derrota”. Segundo a ótica do vaqueiro, Uauá acha-se arrasada, destruída... Os olhares do vaqueiro e do coronel entrecruzam-se a partir de pontos distintos, sob os mesmos ônus de perplexidade e consternação. Mas para o vaqueiro Domingos Vitor aqueles ônus esmagavam ainda mais o orla do guarda-peito porque os homens do Exército “condenaram os moradores do lugar” e anunciaram outra hecatombe em Uauá e, portanto, “consta também que nesta outra batalha, se o governo for feliz, manda acabar com os moradores do Uauá”. Dessa forma, pensar uma Uauá que foi atormentada por bandoleiros em tempos muito remotos, pela Expedição Contra Canudos, pelos cangaceiros de Lampião, pelas Volantes do Estado, pelos ditos Revoltosos da Coluna Prestes que perpetraram terríveis atrocidades nos termos de Uauá e agora pelo Cangaço Cibernético, dói como um espinho de mandacaru cravado no meio do coração.



                                                                           Serrinha, 05 de novembro de 2014.


*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB EM EUCLIDES DA CUNHA.




REFERÊNCIAS

AGUIAR, Durval Vieira de . Descrições práticas da província da Bahia . 2. ed. Rio de Janeiro: Cátedra, 1979.
CUNHA, Euclides da . Os sertões . São Paulo: Nova Cultural, 2003.
SAMPAIO, Consuelo Novais . Canudos: cartas para o barão . EDUSP/Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999.





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