LAGOA DA EMA
LAGOA DA EMA por José Plínio de
Oliveira*
– Oxi! Levanta vô! Não tá escutando o Alberto
falando não? Tá caducando é?
– Chispa! Chispa daí já...
O Sr. Jaconias Pereira de
Vasconcelos, homem negro de elevada reputação moral, evangélico, do alto dos
seus 74 anos de idade, despertou sobressaltado, ergueu-se com dificuldade e
sentou-se na cama como que desorientado. Eram quase cinco horas da manhã;
momento em que ele obtinha o melhor do sono da madrugada, já que ao longo da
noite não conseguia dormir com as dores por todo o corpo.
– Venha, meu Velho... O jeito é
ir pro quarto dos meninos. Deixe que eu levo os remédios.
Dona Francisca Vasconcelos tinha
vindo em socorro do marido, porque a neta que ia completar a idade de 13 anos havia
chegado da Vaquejada de Serrinha, com o namorado de 45 anos; 20 dos quais
cumpridos em um presídio de segurança máxima do Estado de São Paulo. E enquanto
aquela velhinha negra tão franzina, remanescente do povo de Antonio Conselheiro,
trajada desde as primeiras horas da manhã com o recato das senhoras idosas da
região de Quijingue, conduzia o esposo para outro aposento, o casal
esparramava-se na cama da suíte, construída com tanto desvelo e tanto gosto por
Seu Jaconias, “para viver os últimos dias de vida”. Conforme costumava dizer.
– Fique aí, meu velho bem
agasalhadinho... Eu vou lá pra dentro preparar o almoço, senão quando ela
acordar pode achar ruim.
O dia foi se esparramando pelo
sertão e Dona Francisca foi já cuidando do café da manhã e dos preparativos
para o almoço. Belmiro já tinha ido tirar o leite e a lembrança do curral
chegava com o cheiro bom do gado, que o vento vinha açoitando casa adentro. À
noite tinha o Culto de Senhoras na
Igreja Evangélica da Queimada dos Crentes. Ela mesma, Dona Francisca, uma
crente fiel e estrita cumpridora da Palavra de Deus, não podia faltar ao
compromisso, apesar do estado em se achava o esposo.
Todo vigor da Consciência Negra Sertaneja achava-se naquele corpo aparentemente
tão frágil de mulher trabalhadora rural.
– Zuzinha, vá chamar José Vicente!
Diga a ele que prepare o carro. Nós vamos cedo para a Igreja.
– Oxi! Derna de ontonte que o carro
já tá é pronto!
– Abaixo de Deus, quem me salva é
José Vicente.
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Há muito tempo que a população afrodescendente
do meio rural e do campo, do imenso Sertão de Canudos, vem enfrentando um
acirrado conflito de gerações. A Diáspora Sertaneja nos rumos do Sudeste e do
Sul do Brasil, a Indústria da Seca, a baixa escolaridade, as manipulações
perversas das estiagens por parte do governo, as formas abomináveis de
exclusões sociais, os flagelos premeditados pelas prefeituras municipais, as
politicagens provincianas e trogloditas, as ações truculentas do aparelho repressivo
do Estado da Bahia – principalmente contra índios, negros e pobres – arrastam demandas
numerosas de migrantes, empurrados como que para uma enxurrada no seco,
banindo, banindo, banindo vidas humanas para os Infernos Periféricos de São
Paulo.
Ora, nos espaços periféricos dos
grandes centros urbanos do Brasil, essas grandes demandas de trabalhadores
excluídos e explorados geram outras vítimas. E tem sido dessa forma que
milhares de filhos e filhas de famílias sertanejas da Bahia, nascidos em São
Paulo, por exemplo, vão sendo vitimados pelas drogas, pela violência, pelo
crime, pela gravidez na infância e na adolescência. Além das meninas negras
abandonadas, os meninos, principalmente perambulando pelas ruas de São Paulo,
passam a ser assediados tanto por traficantes de drogas quanto por interessados
nos serviços sexuais.
A dimensão histórica da exploração sexual de Garotas e Garotos de Programas de origem nordestina bem que merece estudo
científico meticuloso. Entretanto, parece que a ciência é cúmplice daquela
forma de exploração. Há nos grandes centros metropolitanos do Brasil uma
cultura instalada naquele sentido da exploração sexual de jovens e adultos
desassistidos, oriundos do Nordeste brasileiro, principalmente. Portanto, considerando
que as classes abastadas que submetem e dominam as estruturas econômicas e
financeiras daqueles grandes centros mais industrializados do Brasil são da
etnia branca e rica, principalmente de origem européia, o indivíduo
afro-indígena naqueles contextos sociais desperta sobremaneira a gula sexual daquelas
elites brancas e dominantes. Nesta perspectiva de dominação, com o sexo no
centro, os nordestinos no Sudeste e no Sul eram inicialmente corpos dóceis para as hostes poderosas.
E é aí que na maioria das vezes se articula a engrenagem da marginalização e da
violência.
Aquela abominável engrenagem lembra que a força de trabalho nordestina
atuou em São Paulo com maior visibilidade na indústria pesada, na construção
civil, na agricultura cafeeira, nos serviços básicos, nas instituições
militares e na economia informal. Esta é a leitura científica que chega ao
conhecimento da sociedade. Mas, a sociedade não reconhece ou não quer
reconhecer a engrenagem opaca que faz circular recursos financeiros vultosos
que impulsionam a economia de São Paulo por
baixo do pano. Talvez até pela nossa cultura judaico-cristã, que trabalha
para ocultar o óbvio sob o estigma do pecado,
São Paulo deixe de contabilizar e de tributar volumes exorbitantes de valores
financeiros que circulam livremente no mercado do sexo alternativo, talvez muitíssimos
superiores aos que circulam nas engrenagens do narcotráfico. E se o pecado alevantar o véu diáfano, expondo
publicamente a face sulcada de flagelos torpes? E se o pavilhão nacional da
torpeza brasileira desfraldar a história nua e crua? Então será o caso de se
revelar um fato histórico ainda envolto em uma farsa ridícula e que envolve a
figura admirável e louvável de um médico humanitário e escritor de renome,
então radicado no Rio de Janeiro.
Narra-se que aquele homem eminente, de elevada compleição moral,
respeitável e muito bem sucedido na vida, bem casado, chefe de tradicional
família e com cadeira cativa no Sabadóile,
sem jamais ter deixado transpirar a mais tênue insinuação de qualquer mácula acerca
do seu caráter de grande homem público, cometeu suicídio sob uma árvore
frondosa, em frente ao edifício suntuoso em que residia na parte mais nobre do
bairro do Flamengo, na cidade do Rio de Janeiro. Aquele dia foi como se uma
catástrofe apocalíptica houvesse desabado sobre a Cidade Maravilhosa. Ninguém
seria capaz de cogitar da possibilidade de que fato tão trágico viesse a
envolver personalidade de tão elevada estatura moral e intelectual. A imprensa
erudita desvelou-se em considerações de um barroquismo ornamental, típico das
igrejas de São João d’El Rei e os Imortais
da Academia Brasileira de Letras, e demais representantes de instituições austeras e completas não pouparam
elogios ao notável suicida. Naquele dia, no Rio de Janeiro, por muito pouco a
prática do suicídio não alcançou os espaços mais elevados da Epopeia Carioca.
Algum tempo depois, o Rio de Janeiro foi
inundado de perplexidade ante as veracidades dos fatos:
Talvez por uma necessidade de resguardo e discrição, o homem costumava
viajar para São Paulo em busca de Garotos
de Programas, até que estabeleceu com um deles relações mais efetivas.
Dessa forma, sempre que desejava, o homem rumava para a Capital dos Bandeirantes,
onde aquela Indústria já se fazia
sustentável. Desde que aquela demanda industrial
assegurava emprego lucrativo e renda fácil para rapazes pobres de
periferias; com isso; eles deixavam de estudar, de aprender profissões dignas, de
inserir-se no mercado regular de trabalho, de especializar-se e de exercer
cidadania plena. Em geral, quando aqueles jovens são assediados para a “vida
fácil” passam a ser impedidos pelo próprio sistema que os explora de buscar os
meios de escolaridade e de desenvolvimento pessoal que os habilite a alcançar
espaços saudáveis na sociedade organizada. Em consequência da exploração e da
ignorância a que são submetidos, aqueles moços passam para a marginalidade e
para o crime. São os casos – por exemplo – da Cinelândia e do Passeio Público,
no Rio de Janeiro, onde nas madrugadas boêmias funcionam aquelas relações. É
surpreendente que personalidades exponenciais da sociedade, autoridades, homens
públicos, doutos, eminentes, milionários e etc. circulem em carrões de última
moda, para assediar rapazes pobres e negros, moradores dos subúrbios cariocas e
da Baixada Fluminense. Dali – na maioria das vezes – eles partem para a
violência, para o crime e em consequência para os estabelecimentos carcerários
do Estado.
O Estado brasileiro jamais controlará
a violência sem a investigação desassombrada dessa cultura que põe em risco as
próprias vidas das potestades brasileiras.
O moço paulistano descobriu a importância do homem que vinha do Rio de
Janeiro para encontrar-se com ele e passou a extorqui-lo e a fazer chantagens.
No início o homem foi cedendo, mas, chegou um momento em que não tendo mais de
onde tirar dinheiro, tirou a própria vida.
– Zé Vicente, se a gente não der um jeito nessa menina, ela vai tirar a
minha vida!
O vaqueiro, motorista e motoqueiro Zé Vicente ouviu as palavras da Tia
Francisca, baixou a fronte e não disse uma palavra. Ele sabia de tantas
famílias daquela parte do Sertão de Canudos que estavam retornando de São
Paulo, trazendo na bagagem filhos marginalizados e filhas prostituídas com
experiências na FEBEM, nas delegacias de polícia da Grande São Paulo, nos presídios
e nos antros do narcotráfico das favelas em que viviam. Muitos “jurados de
morte” pelos próprios comparsas ou na mira das execuções da ROTA. Zé Vicente
sabia que a situação dessas demandas infanto-juvenis marginalizadas piorava
muito mais ainda quando eram levadas a inserir-se nas escolas da rede pública
da região do Sertão da Bahia. O sertão tinha virado um mar de desgraçadas.
– Minha Tia, antes dela desgraçar a vida da senhora tem que buscar a
Deus...
– É o que eu vou fazer! Avia, menina traz a insulina de Jaconias que já
tá na hora.
Quando a Igreja achava-se no
meio do culto, chegou a notícia: Seu Jaconias acabara de vir a óbito.
Depois do sepultamento, ainda no
Campo Santo, Dona Francisca desabafou com uma irmã na fé:
– Foram aquelas duas maldições que mataram Jaconias...
Muito próximo das irmãs, o Evangelista Melquíades escutou.
Irmão Melquíades, muito
respeitado naquela região, era um homem justo. Subtenente reformado da Polícia
Militar converteu-se ao Evangelho ainda na ativa, tornando-se o Evangelista do
Povo. Depois voltou a residir na terra natal, dedicando-se à pregação da
Palavra. Logo que passaram cinco dias das exéquias do “Irmão Jaconias”, foi
visitar Dona Francisca e oferecer-lhe os préstimos.
– Irmão, essa menina nasceu em São Paulo de um relacionamento de minha
filha com um traficante coreano. O sujeito foi morto pela Máfia Chinesa. Ela escapou, mas terminou sendo presa e condenada a
quinze anos de prisão; acharam muita droga no apartamento em que ela vivia com
o sujeito. Aí essa menina foi para uma casa de acolhimento, depois foi entregue
a uma parenta nossa que vive em Itapecerica da Serra e a partir daí caiu no
mundo do crime muito jovem. Foi morar nas ruas de São Paulo, entrou para a
prostituição aos dez anos de idade. Andou pela Cracolândia, entrou para o tráfico e quando a mãe saiu do presídio
tirou das ruas, mas não conseguiu tirar da vida errada. Foi então que trouxe
para cá e deixou na mão da gente, para ver se conseguia recuperar.
– Minha Irmã, quando chega nesse estado, esse povo não tem mais
recuperação. Eu lidei com isso muito tempo. E se a senhora não tomar
providência agora ela vai tirar a vossa vida também; porque o diabo veio para
destruir, roubar e matar.
Dona Francisca pôs-se a refletir por algum tempo, depois interrogou ao
Evangelista do Povo:
– Irmão Melquíades, o que é que eu faço?
– O que se acha na Palavra de Deus: “Pode Deus torcer o direito? Pode o
Todo-poderoso perverter a justiça? Se os seus filhos pecaram contra Deus, ele
já os entregou ao poder dos próprios crimes”. Jó, capítulo oito, versículos
três e quatro.
– E como pode ser?
– Lá por detrás da Terra Branca, naquela ponta de caatinga, no pé
daquele serrote.
– Oxi! Então tá direito... José Vicente!
De madrugada o carro chegou com a menina e o amante amarrados; o
Evangelista do Povo já havia mandado abrir o buraco.
– Não, Meu Irmão! Quem vai atirar sou eu.
– Irmã Francisca!!!
– Não é bom a gente botar uma cruz em riba?
– Deixa de bestagem Zé Vicente, cruz é coisa de católico.
Serrinha, 20 de
novembro de 2012. (Dia Nacional da
Consciência Negra).
*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO
DEPARTAMENTO CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS– CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.
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