Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

RIACHO DAS PEDRAS

                                                       RIACHO DAS PEDRAS por José Plínio de Oliveira*
             
         
          – Coronel, tá vindo uns cabras descendo lá na porteira da pedra!
          – Estão em armas?
          – Parece que sim.
          – Então disponha os homens e bote sentido na estrada...
          Com pouco estavam já os cabras bem nas proximidades do curral. Eram dois cangaceiros. O que estava em montaria mais vistosa foi adentrando ao terreiro, fazendo saudação.
          –Vosmicê é o coroné Fragoso?
          – Para servir-vos! Em pessoa. Apeiem-se, por favor...
          – Carece não! Nóis só veio trazer esse escrito.
         O destinatário recebeu a missiva e os cabras puseram-se em retirada. Assim achava-se no texto:

          

“Coronel Fragoso, é meu desejo fazer uma visita a Vossa Senhoria. Sei muito das vossas posses, e não sou homem de pabulagem.
                                                  Virgulino Ferreira da Silva – vulgo Lampião.”


          O coronel Genilson Fragoso Lantyer de Castro era um grande latifundiário nas regiões de Queimadas, Itiúba, Monte Santo e Jacobina. Descendia diretamente da família do poeta Castro Alves e tinha relações de parentesco distante com Gregório de Matos pelo lado materno. Homem de esmerada cultura e de muitas esposas havia há pouco retornado da França, onde passou longa temporada. Naquele momento, achava-se na Fazenda Riacho das Pedras em companhia da jovem esposa Clara Inocência e das crianças que tinha com ela. No entanto, ele costumava permanecer por mais tempo na Fazenda Serra Branca; perto de Queimadas e da companheira Pureza dos Anjos, uma mulata de rara beleza: Pérola da África, conforme o coronel costumava nomeá-la.        
              Naquele período, o coronel Fragoso vivia uma realidade de tensão com a sociedade sertaneja e o recebimento do bilhete trouxe-lhe um pouco de apreensão:
          – Compadre Marcolino, traga uns homens da Serra Branca mais os da Umburana; depois passe no Lagedo. Traga as armas e as munições. Deixe tudo a postos para eventuais empenhos!
          – Sim, sinhô.   

              Na Festa de Santo Antônio das Queimadas do Ano da Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo de 1928, o coronel Fragoso foi atraído pelos encantos de uma jovem rapariga que circulava por aqueles espaços festivos; quis insinuar-se, mas conteve-se a tempo por solicitado a integrar-se à roda de pessoas distintas da sociedade postas em torno do intendente. Os seus olhos – no entanto – vagueavam inquietos vigiando a moça. Até que a viu com outras da mesma idade aproximar-se da banca de Chiquinha Doceira. De onde estava ele ouvia os risos das meninas e sorvia o cheiro bom de corpos aprumados. Chiquinha percebeu-lhe o desassossego, trocaram olhares confidenciais e logo que a roda de amigos se dispersou, Fragoso chegou-se à banca. As moças passeavam por entre as novidades da festa.
          – Quem é?
          – É gente do povo dos Cardozo. Do Sítio.
          – Oh! Como se chama?
          – Anunciação.
          Depois das celebrações litúrgicas, veio a parte profana.
          Os carros-de-boi que traziam as famílias vindas das fazendas das redondezas ficavam parados nas proximidades do Rio Itapicuru e as montarias vistosas que traziam os cavaleiros estavam atadas sob os arvoredos em torno da capela. Depois a Filarmônica veio para o largo, iniciaram-se os leilões. Então o coronel Fragoso passou a arrematar as mais caras e finas prendas de toucador que eram apresentadas; mandando-as entregar na banca de Chiquinha.
          No meio da noite, a doceira mandou chamar Anunciação:
          – Isto aqui é tudo teu!
          – Quem mandou?
          – Depois eu te conto.
          As duas abraçadas riram-se a valer.
          – Eu quero saber, viu?
          Daí há dias pela mesma Chiquinha, o coronel Fragoso enviou uma extensa missiva a Anunciação. Não obtendo resposta, valeu-se outra vez dos préstimos da boa doceira. Então deu-se início a uma tímida e recatada correspondência trocada entre os dois, e quando Anunciação deu fé, estava apaixonada pelo moço fazendeiro e coronel da Guarda Nacional. No mês de fevereiro de 1929 embarcaram para a Europa, deixando sob consternação a nobre população de Queimadas.
          Na verdade, Genilson Fragoso Lantyer de Castro tinha o hábito de casar-se no exterior toda vez que conquistava uma jovem amante. Havia sido dessa forma com Pureza dos Anjos em 1918 em Buenos Aires; com Clara Inocência em 1921 em Londres. Quando dali vieram diretamente para São Paulo em fevereiro do ano seguinte onde assistiram a todos os eventos da Semana de Arte Moderna e aproximaram-se de suas principais estrelas.
          Seguindo a tradição baiana, antes de tornar-se grande latifundiário, Lantyer de Castro havia estudado direito em Pernambuco, onde foi colega de Assis Chateaubriand; transferindo-se depois para a Faculdade de Direito de São Paulo. Ali conheceu Oswald de Andrade de quem se tornou um grande amigo. Naquele tempo, o futuro ícone do Modernismo no Brasil lia vorazmente Os sertões, de Euclides da Cunha. Logo, tendo sabido que o jovem estudante baiano era natural da cidade de Queimadas, quis inteirar-se de todos os pormenores ligados à Guerra de Canudos. De sorte que a presença discreta de Lantyer de Castro no Teatro Municipal de São Paulo por ocasião do lançamento das idéias modernistas foi um deleite para Oswald. Na oportunidade discutiram amplamente as idéias Socialistas em debate na Europa e na América Latina; de que Lantyer de Castro declarou-se convicto simpatizante. Naquela mesma Semana, esteve com Chateaubriand e Graça Aranha; ocasião em que foi alertado quanto a uma possível crise econômica no mundo ocidental já em adiantado estado de gestação. De volta à Bahia, o jovem fazendeiro reordenou os seus negócios, organizou grandes reservas de capital e melhorou a expansão dos seus rebanhos de gado bovino. De tal sorte que o ano de 1929 veio a encontrá-lo tão bem sucedido na vida financeira quanto também na vida amorosa, não fosse apenas algum descontentamento latente no contexto da sociedade queimadense.
          Ora, Maria da Anunciação Moreira Cardozo era filha do major Clementino Cardozo, proprietário da Fazenda Sítio e antigo correligionário do coronel Leitão, homem forte da política regional. Por isso, no dia em que o casal desembarcou do trem noturno na estação de Queimadas teve início uma torrente de hostilidades contra a pessoa do coronel. Antes do meio dia, o coronel Fragoso recebeu em casa um emissário do Conselho Municipal que lhe entregou a carta de seu desligamento daquela importante instância de poder, as senhoras da sociedade passaram a desviar-se da calçada de sua casa, a professora que atendia aos filhos das suas esposas da Serra Branca e do Riacho das Pedras retornou para a cidade. E na missa do domingo seguinte o Padre Rabelo – pessoalmente – solicitou do coronel e de Anunciação que se retirassem daquele espaço sagrado. Foi a gota d’água: o coronel levou Anunciação para uma de suas fazendas ao pé da serra de Itiúba, mandou buscar duas professoras em Salvador para, às suas expensas, atender às suas crianças e às demais residentes na Serra e no Riacho e, como se não bastasse, adquiriu mais terras e deu início a um trabalho de assentamento de comunidades rurais autônomas. Assistidas entre os vales dos rios Jacurici e Itapicuru. Então, os membros das oligarquias políticas e econômicas se reuniram e deliberaram tomar todas as providências para que as loucuras comunistas do coronel Fragoso não viessem a assolar toda a região. Para tanto, acordou-se contratar os serviços de Lampião para lhe dar um ensino.
          Desde o recebimento do bilhete que os homens do coronel mantinham cobertas de forma muito discreta as posições estratégicas da propriedade. Quando ia se aproximando o Natal de 1929, os cangaceiros chegaram ao terreiro da fazenda. O coronel Fragoso lia Flaubert cercado de livros e espichado em uma espreguiçadeira sob a árvore frondosa que dava sombra à casa.
          – Desculpe a demora, coroné!
          – Se achegue, capitão. Que o senhor é muito bem vindo a esta casa.
          Clara Inocência chamou as criadas e correram para o oratório. O coronel olhou discretamente para o oculto de uma água furtada e vislumbrou o cano do fuzil de Marcolino apontado para a cabeça de Lampião.
          – Clara, ande! Mande-me trazer café para as visitas.
          – Pelo que vejo, coroné, vosmicê é um home de muito recurso e de muita leitura...
          Os cangaceiros estavam perplexos com aquela quantidade de livros arrumados em uma pequena mesa e ao alcance da mão do coronel. Muitos deles jamais haviam tocado em um livro. Zé Baiano lembrava-se de ter visto um nas mãos de um frade capuchinho por ocasião de uma Santa Missão em Chorrochó. Nunca nas mãos do povo, das pessoas comuns, dos menos favorecidos. Portanto, Genilson Fragoso fez questão de que aqueles rudes bandoleiros dos sertões tomassem, por um momento em suas mãos, aquelas obras literárias. Quando o faziam, era como se elas pesassem como chumbo. E como meninos em tempos de folguedos juvenis riam-se uns dos outros; do jeito desengonçado, das dificuldades de trato com aquelas obras. O próprio Lampião contemplava em silêncio aqueles textos como que muito mais eficientes do que as suas armas de combates, depois pediu ao coronel que lesse alguma coisa para eles.
          As meninas da casa trouxeram bules de leite e de café, biscoitos, pães, bolos e novidades. E o coronel pôs-se a fazer a leitura da Sétima Novela, da Primeira Jornada do Decameron, de Boccaccio. Daí a pouco começaram a chegar as crianças que saíam da aula e vinham tomar a benção ao coronel. Não faziam nenhum caso dos cangaceiros.
          – Aqui tem escola do governo?
          – Não, capitão. Quem dá escola ao povo aqui sou eu.
          Então o cangaceiro quis saber como era aquela história. O fazendeiro foi explicando e convidou-o a conhecer o estabelecimento de ensino a poucos metros da sede da propriedade. No momento em que iam caminhando, duas meninas aproximaram-se do coronel e do chefe do bando:
          – Coronel, o que é o que é: uma caixinha de bom parecer, não há carpina que saiba fazer?
          – Ave Maria! Eu não sei...
          Aí as crianças gritaram: “É amendoim’’...
          – Ah! Então é?
          – Pois me diga, coronel: qual é a coisa que só funciona com um buraquinho no fundo?
                                                                                                                               

          – Valha-me Santo Antonio das Queimadas!
          – É a agulha! As crianças gritaram.
          – Então, coronel, me diga pela última vez...
          – Por hoje! Sentenciou o fazendeiro.
          – Qual é o bicho que só enxerga o mundo se tiver fogo no rabo!?
          Lampião caiu na gargalhada...
          – É o vagalume. Gritou a criançada.
          – Coroné, que povo é esse?
          O chefe dos cangaceiros ficou embevecido com o trabalho social do fazendeiro. Quando foram para a janta com a noite caindo, o coronel fez um leve sinal que Marcolino entendeu
repousar as armas.
          Dois dias depois, Lampião invadiu e saqueou a cidade de Queimadas e quando passou de volta pelo Riacho das Pedras fez questão de deixar a maior parte do dinheiro arrecadado para o coronel financiar as escolas do povo.


                                                                                                      
                                                                     para José Brás, José Raimundo e Sandra Peixinho.


                                                                    Serrinha, 13 de dezembro de 2005.




*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECONOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EUCLIDES DA CUNHA.                       


























  
        
           
            

























































                                            










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