CORREIA DO NASCIMENTO
CORREIA DO
NASCIMENTO por José Plínio
de Oliveira*
Ele descendia do clã dos Correia,
da Malhada da Caiçara, terra de Maria Déia e também do povo de Madrinha Dodô.
Mas veio a este mundo em terras do Cumbe,para onde migraram seus pais e parentes
que adquiriram propriedades ruraisna região, para tocar lavouras e criatórios
de gados.Foi levado a Pia Batismal na Igreja Matriz de Massacará em que recebeu
o nome de Correia do Nascimento, tendo como padrinho o peregrino Antonio
Conselheiro, por ocasião de uma das suas muitas passagens por aquela Aldeia dos
Índios Kaimbés. E desde muito cedo Correia do Nascimento foi um menino dedicado
ao trabalho profícuo no campo – além de frequentar com assiduidade e bom
aproveitamento a Escola de Dona Candinha –, mas quando atingiu a faixa etária
dos quinze anos passou a andar sorumbático, ensimesmado, silencioso, arredio,
recolhido pelos cantos. O tio Laurentino Correia, irmão da sua genitora, e uma
espécie de sexólogo dos jovens varões da família Correia, chamou a atenção do
seu pai:
– Compadre Anacleto, tem que levar esse
menino numa casa de mulé pra ele desasnar.
– Compadre Laurentino, dá pra
você tomar essa providência porque eu como pai fico sem jeito.
– Deixe comigo, no dia da feira
do Cumbe eu levo ele.
O menino entrou no prostíbulo um
pouco tímido, ainda que levado sob os cuidados do tio. Todo aquele movimento de
homens e mulheres muito cheirosas; bebendo, rindo, pilheriando, ouvindo e dizendo
dichotes deixou Correia do Nascimento um tanto comedido. Todavia, o tio era um
velho conhecido da “casa”, portanto, foi recepcionado com muita alegria. A dona
do estabelecimento, uma cafetina morena muito bonita não economizava carícias, agrados
e elogiosa Laurentino Correia.
– Venha cá pra dentro conversar
mais eu!– E lá se foi, arrastando-o pelo braço.
Com pouco Laurentino chamou o
sobrinho e entregou-o aos cuidados de uma jovem alagoanaalta, bonita, morena,
de corpo escultural; cheirosa como um pé de Manacáescoteiro
no meio da caatinga; coberto de
flores áureas em pleno cio de Primavera. Ela abraçou o rapaz, levando-o para a
alcova:
– É a tua primeira vez?
– Sim senhora...
Era A Primeira Noite de um Homem. Correia do Nascimento estava um pouco
receoso, mas lembrou-se das instruções prévias que lhes foram ministradas pelo
tio: “– Quando você for usar a mulé, faça uns agrados. Procure beijar a mulé;
seja carinhoso”. Então o jovem, sendo de baixa estatura, em pleno ato
esgueirou-se sobre o corpo da moça, tentando beijar-lhe os lábios rubros como
fruto de mandacaru em tempos de verão.
Ela surpreendeu-se:
– Você desencaixou?...
Deu com as costas da mão na face
do garoto e determinou:
– Vorte pra trais! Vá cuidá da sua
obrigação!
O moço obedeceu cortesmente;deslizou
para baixo e “reencaixou”, e conseguiu embevecido beijar a parte inferior dos
seios da moça, embriagado pelo aroma benfazejo de alecrim do tabuleiro. Seios da cor de entrecasco de jurema, rijos como duas estruturas
rochosas arredondadas dos Lajedos do
Trapagó. No mesmo instante uma nesga de lua pálida esgueirou-se pela brecha
de um pedaço de vidro posto em lugar de telha, e respingou sobre uma cortina
imunda de chita barata, estendida sobre o lugar de uma porta da sala contígua
onde duas moças despojavam um bêbado.
Correia do Nascimento achava-se em transe.Gemeu,
esperneou, proferiu palavras desconexas, gaguejou, chamou a moça de Princesa e
delirou como em estado onírico alucinado.
Correia do Nascimento babujou...
– Minino, tu tem pata com o cão?
Eu gozei quatro veis...
De volta ao seio da família, tornou-se
um palrador irrefreável. Passou a contar causos, piadas, rir, gritar, cantar,
arreliar as pessoas e os animais da fazenda. Então, o senhor Anacleto Correia
foi ao compadre Laurentino:
– Você levou o menino em uma
casa de mulé ou deu água de chocalho pra ele?
Antes de chegar ao meio da
semana, já o rapaz estava ao pé do tio para saber se o levaria ao cabaré do
Cumbe no dia da feira.
– Oxi! Menino, não é assim não.
Você teve lá pra bem dizer ontem.
Mas, Correia do Nascimento
voltou a insistir e o Tio Laurentino não teve outra alternativa senão levá-lo
outras vezes ao prostíbulo. E, sem querer, terminou por pavimentar o caminho do
moço à casa das “meninas” e ele passou a frequentá-las por livre iniciativa.
Quando o rapaz completou
dezessete anos de idade, ganhou como presente uma ida em romaria à Santa Cruz de Monte Santo na Festa de Todos-os-Santos.
No Alto da Santa Cruz inundado de romeiros, o pai tomou-o pelo braço:
– Venha tomar a benção ao teu
padrinho!
O Bom Jesus Conselheiro
achava-se no umbral da nave do templo, repleto de pessoas devotas.
– Bença, meu padrinho.
Correia do Nascimento prostrou-se aos
pés de Antonio Conselheiro que passou o cajado para as mãos de um dos seus
acólitos e impôs as suas mãos sobre a cabeça do afilhado, proferindo prolongada
e comovente oração. Então Correia do Nascimento chorou copiosamente e, ao
fazê-lo, surgiu ao seu redor uma aura resplandecente semelhante a um arco-íris
cravejado de diamantes. O povo devoto ficou em estado de perplexidade.
Percebendo a grandeza do sinal, o Bom Jesus Conselheiro pediu o cajado e foi
vagarosamente peregrinando em direção ao Altar-mor. Persignou-se em oração diante
dele. E quando ergueu a fronte em contemplação jorraram lágrimas copiosas dos
olhos da imagem da Virgem Maria. A igreja entrou em êxtase.
No final da tarde, quando a romaria foi
descendo a Serra de Piquaraçá em
procissão, Correia do Nascimento revelou ao seu genitor:
– Meu pai, eu vou acompanhar o
meu padrinho e o seu povo!
– Siga seu destino, meu filho.
Quando chegar lá embaixo você pegue os seus trens na Casa dos Romeiros.
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Integrado à grei conselheirista, Correia
do Nascimento recebeu o título de Apóstolo em cerimônia celebrada no Santuário. Em face do “Milagre” com que
foi agraciado na Igreja da Santa Cruz de
Monte Santo tornou-se um verdadeiro mito. Muito protegido pelo anonimato em
Canudos. Na mesma ocasião, valendo-se dos ensinamentos de Dona Candinha,
redigia a lápis para os mais letrados uma espécie de panfleto em que publicava
fatos do cotidiano decadente da República, de que era ferrenho adversário. Foi
o primeiro jornalista do Império do Belo
Monte. Participou de todas as lutas de resistência de Canudos contra o
aparelho repressivo do Estado, tendo se destacado no combate contra a I
Expedição Militar Contra Canudos em Uauá. Nessa ocasião, surpreendeu aos
combatentes mais experimentados pela extrema bravura com que lutou contra os
militares. Sempre envolvido por uma aura resplandecente que chegava a alumiar
os combatentes mais próximos. Perdeu alguns companheiros no confronto, mas
dizimou grande parte da tropa de Pires Ferreira, escorraçando-o com o que
restou de soldados no rumo de Juazeiro.
Por ocasião do combate de Uauá,
o Apóstolo Correia do Nascimento recolheu uma grande quantidade de armas e
munições que os soldados abandonaram tanto nas casas que ocuparam quanto na
praça e na estrada de Juazeiro, carreando-as para Canudos. Voltou a Uauá pouco
depois do episódio fatídico – acompanhando Pedrão e outros valentes – para dar
sepultura aos corpos dos companheiros e dos militares que tombaram na luta.Logo
depois de voltar do sepultamento em Uauá, o Apóstolo Correia do Nascimento partiu
em missão de vigilância em que era perito para o Rancho do Vigário. Quando de lá retornou teve conhecimento da
chacina perpetrada contra os varões da família Mota, sob o comando de Pajeú. Ficou
indignado com a extrema covardia e então pontificou:
– Um reino dividido contra
si mesmo não poderá subsistir.
Foi a primeira voz a erguer-se
dentro de Canudos para pontificar que uma possível aniquilação armada daquela
comunidade conselheirista seria consequência do derramamento de sangue dos
membros da Família Mota.O que jamais conseguiu aceitar. Poucos dias depois foi
pilhado na calada da noite pelo próprio Pajeú em um encontro amoroso com uma jovem
da comunidade. A moça foi apreendida pela Guarda
Católica e na manhã seguinte levada à presença de Antonio Conselheiro que
proferiu a legendária e clássica sentença: “– Seguiu o destino de todas”.
Pretendendo afirmar que todas as jovens solteiras de Canudos eram passíveis de
experimentar uma arrebatadora paixão pelo jovem Apóstolo Correia do Nascimento
que questionado sobre o feito libidinoso por João Abade, justificou:
– Ninguém é de ferro!
Entretanto, foi de uma bravura
férrea nas lutas que se seguiram em favor do Povo de Canudos. Ao lado de bravos
combatentes enfrentou a Expedição Febrônio de Brito rechaçando-a de forma heroica;
sempre envolvido pela aura que encantava a todos. Mais adiante, na iminência do
massacre hediondo que seria infligido contra Canudos pelo coronel Moreira
César, comandante da III Expedição Militar, já em vias de atravessar o leito do
Rio Vaza-Barris para consumar a hecatombe macabra, Correia do Nascimento deflagrou
o disparo fatal – com um fuzil tomado do contingente do tenente Pires Ferreira
no confronto de Uauá – que abateu o Corta
Cabeças, deixando-o fora do comando, do combate e da vida. Portanto, foi
ovacionado de forma estrondosa dentro e fora do arraial. Continuou a luta
contra a IV Expedição Militar, iniciada em junho de 1897. Até que no dia sete
de setembro daquele mesmo ano; quando os soldados do general Artur Oscar
sitiaram todo o território de Canudos; foi o Apóstolo Correia do Nascimento
arrebatado para as alturas em um carro de fogo, puxado por cavalos de diamante.
O povo assistiu.
Serrinha, 17 de março de 2015.
*PROFESSOR DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO
DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA
BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.
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