Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

DOM JAIR DE LA MANCHA


DOM JAIR DE LA MANCHA
                                                                     por José Plínio de Oliveira*



               O moço Dom Jair del Toboso foi armado Cavaleiro em Santiago de Compostela, com toda pompa e circunstância para servir com esmerada devoção ao Reino e à Sua Alteza Real. Na Homilia Solene, o Cardeal Arcebispo de Madri, que presidiu à celebração, fez longa e merecida homenagem às raízes do Nobre Cavaleiro, enaltecendo a figura memorável de Dom Victor del Toboso, uma espécie de Jessé nas palavras do celebrante. Emocionado, Dom Jair tomou para Senhora de sua cabeça a Infanta Dona Joaquina Esmeraldina de Bourbon; católica fervorosa e de reconhecida caridade e zelo para com os pobres; e poucos dias depois de armado Cavaleiro partiu para o Califado de Andaluzia a ajustar dentre os Mouros um escudeiro leal.
               O Califa recebeu o ilustre visitante com elevada honra e distinção em um imenso salão decorado com motivos árabes, de forma suntuosa e elegante no Palácio destinado ao harém. Mandou servir-lhe tâmaras, frutas cristalizadas, chás de vários aromas e sabores, leite, mel e pães. Depois, fumaram em um aparelho de cano longo exalando vapores inebriantes de tabaco especial. Riram a ilhargas e Dom Jair del Toboso – muito do seu jeito – achou curioso que o Califa de elevada idade e magnífica estatura mantivesse um harém com moças tão jovens e tão belas. O velho governante Mouro caiu na gargalhada.
                – Ah! Dom Jair, essas moças não são destinadas a ir para a cama a satisfazer as taras do Califa; como podeis ver, já de idade avançada. Essas jovens são Mulheres Pensantes, sem as quais o nosso Islamismo não sobreviveria. Pertencemos a uma corrente afro-mulçumana em que as Mulheres é que pensam e auxiliam ao Estado Teocrático a assistir e a administrar as demandas de direito do nosso povo.
                – Como assim, Excelência?
                – Ah! Sim. O que o senhor estranha, e com razão, é que no universo latino, a mulher é um objeto sexual e sensual. Daí símbolos sexuais, “celebridades”, garotas de programas, prostitutas, rainhas de alcova... Do lado de cá não! Óbvio que as nossas Mulheres namoram, fazem sexo, casam, têm filhos e filhas, no entanto, elas não precisam escravizar-se à cama para serem Mulheres no sentido estrito do termo; o são também pelo que Pensam. Objetos de alcova não! Claro que não. Pensam, leem, escrevem, debatem, discutem, produzem e o que é melhor: contribuem para a nossa sociedade com Pensamentos refinadíssimos; sem os quais não seríamos possíveis no mundo.
                – Senhor Califa, agora, há essa questão da poligamia.
                – E no mundo Ocidental a cultura gay... Qual é o problema? São culturas! Veja, no mundo de vocês vem ocorrendo uma tão crescente desvalorização da mulher que, em consequência, os homens vêm preferindo relacionarem-se sexualmente entre si. Fala-se em casamentos de pessoas do mesmo sexo. É possível? A poligamia também com sexos opostos. Fala-se no mundo de vocês em bissexualidades; os indivíduos se relacionam simultaneamente com mulheres e com homens; seria poligamia lá? Em nosso mundo não é possível que um veneno contamine toda a massa. Temos que tomar providências para que isso não ocorra. Do lado do Islã prevalecem homens e mulheres em primazias de relacionamentos, não conhecemos outra via. Não temos problemas de HIVs, DSTs e demais patologias de gêneros. Mas, entretanto, os que nos odeiam e nos criticam não aludem que no contexto Islâmico há monogâmicos convictos e devotados mais que em outras partes do mundo, há muitos celibatários por convicções Espirituais. E a tão propalada poligamia Islâmica não é um atributo machista. Não, o cidadão somente pode ter outras mulheres se a primeira com quem é casado concordar. É um direito do empoderamento feminino autorizar ou não a poligamia. Se a esposa discordar, o marido poligâmico sem a devida autorização é punido com rigor. Outra coisa: se o homem tiver condições de sustentar dignamente suas mulheres. E sustentar uma Mulher Mulçumana é muito caro. O indivíduo tem que ter muito dinheiro. Com isto você impede a Escalada da Prostituição que corrompe o Mundo Ocidental. Não temos mamães solteiras, filhos que sabem quem são suas mães, mas não seus pais. As nossas crianças, conhecem os seus pais e seus irmãos, mesmo quando filhos de mães diferentes. Óbvio que temos alguns problemas que trabalhamos para aperfeiçoar com a ajuda das Mulheres Pensantes. Pode ser que o Pensamento dessas Grandes Mulheres até entendam as poligamias de seus esposos, quando devidamente autorizados, como forma de perpetuação da nossa espécie.
                – Então, como vocês pensam desvios e diversidades?
                – Como assim?
                – Por exemplo, se a sociedade Mulçumana percebe um dos seus membros com características efeminadas?
                – Entre nós são fenômenos raríssimos, mas quando ocorrem não são nos níveis de desregramentos e promiscuidades como nas demais sociedades do mundo. Por isso temos condições de auxiliar na recuperação da pessoa, não a matamos logo, como nos acusam. Oferecemos, pelo menos, oitenta e seis recursos terapêuticos e na maioria dos casos recuperamos...
                – E se o indivíduo resiste à ajuda?
                – Responde perante a Lei, porque a nossa Lei é muito asséptica. Aliás, o Mundo Árabe, de onde provém as nossas Forças Espirituais, é de natureza muito asséptica. Imensas áreas desérticas muito limpas, muito asseadas. A força de um Sol que ultrapassa os cinquenta graus, que destrói miasmas, vírus, micro organismos nocivos, bactérias, micróbios e demais agentes infectantes. Inclusive morais e Espirituais. Para viver o Islamismo o crente tem que assear-se de tudo que é infectado, porque não é só a Religião, é a Natureza que exige do homem uma incolumidade a toda prova.              
                Dom Jair silenciou por um momento, respirou fundo, refletiu e depois trouxe a lume o motivo da sua visita.
                – Excelência, como podeis ver, sou armado Cavaleiro para servir ao Reino de Espanha, entretanto, falta-me um escudeiro à altura das labutas que tenho pela frente. Então, logo pensei em buscar ajuda e soube de um moço daqui, Helius, o Louro...
                – Helius, o Mouro! Não temos louros, temos Mouros...
                – Sim, peço vênia para corrigir-me: Helius o Mouro por quem vos rogo os préstimos de servir-me em Honra e Glória de Cristo e de Sua Alteza Real.
                – Para nós também é uma Honra, mas para responder-vos tenho que consultar os amigos Comendador Soares e Austin, posto ser Helius um moço de reconhecido valor e de uma mentalidade de Infantaria incomparável.
                Dias após, chegava ao castelo de Dom Jair o moço Helius, escudeiro armado e de armas alimpadas. Logo o nobre castelão pôs-se a cavalgar pelas pradarias de Barcelona, secundado pelo seu escudeiro mor, quando chegou-lhe às mãos em Edito del’ Rei. Era uma convocação ao serviço das Cruzadas. O Cavaleiro sentiu-se demasiado honrado porque tinha como missão libertar o Santo Sepulcro e resgatar o Sudário. Por via das dúvidas, enviou Helius ao Califa a pedir carta de apresentação ao Sultão do Egito. Logo depois embarcaram em um navio de Tarsis e viajaram para o Cairo a entrevistarem-se com o Sultão; para que Helius foi de suma presteza por dominar com fluência a Língua e o Pensamento Árabes. Poucos dias depois chegaram a Jerusalém e Dom Jair, com as recomendações do Sultão, deu início a uma das mais brilhantes jornadas diplomáticas da história. Cumpriu a missão e retornou para a Espanha onde o rei o recebeu com subidas honras e grandes homenagens, ainda concedendo-lhe o título nobiliárquico de Dom Jair de La Mancha e o governo do arquipélago do mesmo nome.
                Empossado no governo, Dom Jair de La Mancha presenteou o seu fidelíssimo escudeiro com uma ilha e passou a organizar as pastas da administração pública. Proclamado e feito, o governador dedicou-se com afinco à leitura da obra de Cervantes, logo depois debruçou-se sobre textos do visionário latino Coélius Saulus. Dom Jair enlouqueceu...
                Louco, completamente louco, Dom Jair de La Mancha passou a deflagrar tiros à torta e à direita, andando sempre com uma metralhadora sob o casaco felpudo. Dir-se-ia que ele foi o primeiro a incorporar um espírito das trevas que veio posteriormente a obsedar a Tenório Cavalcanti. E lá se ia Dom Jair tanto a disparar com a ferramenta bélica quanto com expressões gestuais. O dedo do Cavaleiro Armado era o cano de uma arma. Então, ele passou a ser referido pelo epíteto de Jair Tiroteio. O Ferocíssimo.
                Veio a pandemia da Gripe Espanhola, Dom Jair reuniu o corpo de Ministros de Estado e determinou que o vírus letal fosse erradicado à bala. Ele próprio passou a tomar assento à beira-mar e, visualizando os vírus em forma de moinhos de vento atirava contra eles, acusando a Rainha Cristina de os estar projetando para os mares D’Espanha em conluio com o Padre Antonio Vieira. Tentaram ponderá-lo de que poderia não ser verdade.
                – Ele que vá defender-se perante o Tribunal do Santo Ofício...
                Então Dom Jair passou a desconfiar que os seus Ministros estavam conspirando contra o seu governo, logo passando a deflagrar disparos contra eles. Mas, certa feita, atirou contra o próprio pé e saiu pelos campos saltitando e gritando como um Saci Pererê. Logo veio correndo uma boiada e um touro robusto pisou sobre a cabeça férrea de Dom Jair. O touro fraturou as quatro patas e tombou morto pouco adiante; Dom Jair de La Mancha recuperou a sanidade gritando para o Mundo:
                – Fui louco e estou hoje em meu juízo; fui Dom Jair del Toboso, e sou agora, como disse, Dom Jair de La Mancha, o Bom.


                                                     Serrinha, 16/04/2020.


*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XXII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM EUCLIDES DA CUNHA.                        

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