Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

DONA MARIA PUREZA

DONA MARIA PUREZA por José Plínio de Oliveira*


Dona Maria Pureza,

E se o sertão virar mar
Se as alturas das vertentes
Descambarem para cá
Se um dilúvio inaudito
Cobrir a face do solo
E no colo da paisagem
Deitar um vazio perene?

Dona Maria Pureza,
Eu saí pela covanca
Porque o dia era feio,
No meio daquelas águas
Tomei o caminho do meio
E me lancei pra diante
Por julgá-lo mais prudente.
E se a gente não andar
Pela parte mais segura?
Jumento com pisadura
Não pode acertar o passo.
Eu vivo nesse compasso
Desde o dia em que nasci,
Nesse remanso tardio
Que atormenta o meu viver.
Vou-me embora pra São Paulo,
O gringo tira o meu couro
Retorno para Canudos
Dou de cara com o flagelo.
Então eu não saio mais
Venha lá o que vier.
Solange das Umburanas
Botou vistas para mim
Deu que tenho aqui futuro
Eu não vou mais desistir...
Quando eu vim de Biritinga,
Truve uma mulé comigo
Venci Antonio Galego
Mas bateu outro castigo.
Na cheia do gravatá
Eu perdi a pobrezinha,
Arrastada rio abaixo
Da soleira do alpendre.
Jogada por rente às pedras
Gritava de fazer dó
Mas quem podia com as águas
Naquela fúria medonha?
Ainda lançamos no leito
Seis toras de mulungu
Só pra ver se ela agarrava,
Pelo menos uma só.
Mas aí veio o relâmpago
Faiscando feito o cão.
Na quarta margem do rio
Vivi perigo maior
Um garrancho de jurema
Arrastou meu paletó
Oh! Dia, meu Santo Antão,
Que a vossa mão me suporte
Eu sei que beiço de jegue
Não pode ser arroz doce.
A força daquele coice
Me jogou a trinta braças
E acharam o corpinho dela
Já pra baixo do Canché
Envolto em espumas brancas
Sem uma orelha e um pé
Colheram o corpinho dela
Puseram numa mortalha
Uma florzinha tão cálida
Como na palma da mão
Ainda olhei seus cabelos
E depois caí no chão
Vim despertar com três dias
Numa rede de caroá
Aquele mar inda urrava
Para mais me azucrinar.
Ao redor de trinta léguas
Não ficou curral nem cerca
Até a Várzea da Ema
Se acabou naquela perca.


Dona Maria Pureza,
Nunca mais que fui o mesmo
Andei pelo mundo a esmo
Sem destino nem descanso
Inda cacei distração
No cabaré de Alzira
Mas doeu-me o coração
E eu voltei para a cisma.
Quando foi na quinta-feira
Logo depois da novena
Eu botei flores pra ela
Num jarro novo de louça
Tinha uma poça na estrada
De água clara como a luz
Quando eu olhei para dentro
Vi a imagem de Jesus
Então prostrei-me por terra
Orei pela minha amada
Minhas lágrimas caíram
Naquele espelho de graça
Então deitei minhas mágoas
Sobre a face do meu Cristo
Nisto veio um passarinho
E assentou-se no meu ombro
Quando eu dei fé do ocorrido
Tinham sumido os escombros
E na parte que os havia
Nasceu uma cruz de bronze.



                                                                               Serrinha, 22 de julho de 2014.

*PROFESSOR DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS E TECNOLOGIAS – CAMPUS XII DA UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB – EM EUCLIDES DA CUNHA.

                                 

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