RIACHO DE CAMANDAROBA
RIACHO DE CAMANDAROBA por
José Plínio de Oliveira*
– Seu Batista, vamos comer um veado?
– Quando?
– No dia vinte e quatro.
– Onde?
– Na fazenda de painho, lá no
Riacho de Camandaroba.
– Lá nós temos cinco suítes presidenciais,
dois salões de festas, três salões de jogos, duas piscinas olímpicas de padrão
internacional, saunas, quadras de esportes, campo de futebol, pista de
atletismo, salão de ginástica... pô, se eu for falar tudo, passo é o dia e a
noite...
Alexandre Pacheco, jovem
empresário da cidade de Cansanção, havia estacionado a HILUX prata na frente da
residência do velho amigo de infância do seu pai. Amizade antiga e muito
estimada pela família. Além disso, o jovem admirava aquele homem vitorioso,
aquela figura respeitável. Segundo tenente reformado da Marinha, “natural do
Jatobá”; bem ali nas caatingas de Cansanção; mas que viveu no Rio de Janeiro
por tantos anos, viajou pelo mundo, ancorou em tantos portos, viu tantas e
tantas coisas belas em cidades da América, da Europa, da Ásia... Para o moço
Alexandre, era de grande interesse mergulhar por tardes a fio em longas e
proveitosas conversas com Seu Batista; ainda que negligenciando por um pouco na
condução dos negócios da família. Eram momentos de ócios muito produtivos, os
períodos de conversas com Seu Batista. Saber tanto do mundo, das belezas do
mundo, dos encantos de terras tão distantes; mas, principalmente, das condições
de sobrevivência do homem sertanejo fora do seu torrão natal. Como era possível
que um homem saído das entranhas remotas da caatinga conseguisse sobreviver em
outras regiões do país, marcadas por tantas formas de hostilidades ao
nordestino, por tantas formas ostensivas de execração ao povo dos sertões da
Bahia e ainda pudesse retornar para sua terra em condições tão favoráveis? Pois
que, contrariando as narrativas da Diáspora Sertaneja, o velho homem do mar
nunca falava de padecimentos, aflições, misérias. Falava de monumentos
suntuosos, de espaços elegantes, de artes inebriantes, de sítios históricos
extraordinários; também do Tibre, do Danúbio, do Reno. Certa feita, contou-lhe
de uma viagem à Grécia em um navio-escola; de visitas aos monumentos clássicos:
as ruínas do Areópago, o Templo de Apolo e o Teatro de Dionísio. Seu Batista
era assim, um homem querido e respeitado por toda a população do município de
Cansanção, e pelo fato de ser oficial reformado de uma força armada; muito viajado; figurava pessoa muito
importante para aquela sociedade sertaneja. No entanto, para o moço Alexandre –
além dos valores de amizade com a sua família – Seu Batista mais interessava
por uma outra narrativa diaspórica que lhe oferecia. Pois a Diáspora Sertaneja
é uma grande narrativa que interessa às elites que detém poder econômico e
político no contexto social do sertão baiano. A diáspora para “fora” tanto
assusta quanto amedronta às classes dominantes e abastadas do interior baiano. Portanto,
migrar em busca de trabalho e melhores condições de subsistência em São Paulo,
Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Mato Grosso,
Goiás é coisa de pobre, flagelado, miserável. A esses lugares devem ir as
oligarquias sertanejas para assuntos de negócios, turismos, estudos ou
tratamentos de saúde; jamais em busca da subsistência a que são levados os
descamisados. Todavia, persiste uma grande curiosidade da parte dos membros
dessas elites sociais quanto às experiências concretas de vida pobre de “fora”
destes espaços sertanejos. Uma espécie de profilaxia da pobreza. Dessa forma, toda
a pessoa levada pela enxurrada diaspórica que consegue retornar ao sertão em
condições de sobreviver sem recorrer a esmolas e a favores políticos
humilhantes é inquirida exaustivamente pelas hostes dominantes. Portanto, há
uma cultura de escuta permanente dos relatos identitários dos filhos da
exclusão. Eles são enredados em uma trama persuasiva em que, sem perceber,
oferecem toda a materialidade para o aperfeiçoamento dos mecanismos de opressão
com que os poderosos vão continuar fabricando miseráveis para serem lançados à
vala abominável do flagelo premeditado e financiado pela barbárie capitalista.
O capitalista sertanejo de
“dentro”: fazendeiro, comerciante, grileiro, latifundiário, chefe político,
empresário nunca fala ao pobre de si nem de sua condição de abastado, mas da
vida do pobre e do negro tem uma necessidade de leitura incisiva e quer saber
minúcias do que come, de como dorme, de como se veste, de como faz sexo, enfim
de que modo consegue viver, contrariando a lógica da cultura da exploração do homem pelo homem. Principalmente
se ousou viver fora do contexto em que nasceu e de onde foi escorraçado para “fora”
no dorso da Diáspora Sertaneja.
Pensar a diáspora neste contexto do Sertão de
Canudos, interrogá-la, logo implica pensar o negro. Principalmente porque a
população negra foi maioria em Canudos na era de Antônio Conselheiro e da Guerra. A própria Guerra decorreu de um movimento diaspórico. Portanto, negro e
diáspora, neste contexto, são intrínsecos. Neste sertão não há negro sem
diáspora, não há diáspora sem negro.
No sentido de uma leitura inexorável da
Diáspora Sertaneja, a bem da verdade, pode-se afirmar que as potestades
políticas e econômicas têm razão. De fato, a invenção do Sudeste do Brasil
enquanto “fora” desejado e grande centro de desenvolvimento industrial e
financeiro, logo representa para o Nordeste uma imensa bacia de descarte dos
grandes problemas sociais e humanos que esta parte do mundo deveria enfrentar.
Assim é que a fabricação de São Paulo, por exemplo, tornou-se de utilidade
teleológica para as potestades dominantes do universo sertanejo do Nordeste
brasileiro; ainda mais na perspectiva da absorção ou da trituração dos
materiais humanos não nobres,
projetados das esferas sociais do sertão do semiárido baiano para as
engrenagens avassaladoras de São Paulo. Portanto, a Diáspora Sertaneja funciona
como a linha divisória estabelecida entre aqueles que têm o privilégio de
permanecer territorializados e os que são condenados à (des)territorialização, ao
espaço de “fora”. A fronteira da exclusão define a Diáspora Sertaneja. Todavia,
aqui ela também se dobra e institui um “fora”, “dentro”. Portanto, deste
(des)foramento interno se encarrega a Indústria
Cultural. Ela se revigora e se expande no panorama da diferença instituída
no plano binário das articulações culturais, através da oposição muito sutil
entre o nobre, o elegante, o sofisticado. E o grotesco, periférico, sujo,
carnavalesco. Por exemplo, nas ocasiões em que as elites sociais fazem concessões
a grandes demandas periféricas, promovendo festas ou espetáculos de massas,
financiados com dinheiro público. Elas próprias, as elites, insistem em definir,
com o trabalho da Indústria Cultural,
a linha divisória que marca a diferença. Raramente uma pessoa da elite aparece
no meio do espaço público em que se realiza a festa popular sertaneja. Há um
resguardo estratégico. Exceto quando a situação de interesse político exige por
um tempo a aparição apoteótica de alguma representação oligárquica. Neste
sentido, prevalece alguma forma de manipulação, visando à promoção de alguma
candidatura a cargo eletivo ou por força da presença de algum expoente da Indústria Cultural com aparição mais
frequente nas mídias de maior alcance, contratado como grande atração pelo poder público, para vociferar linguagens de
apelo patético às periferias sociais, sempre em tom de bajulação ridícula ao
gestor do erário público que administra o financiamento do evento cultural.
Então, é aí que também se institui um quadro bem delineado para ofuscar a “grande
atração”, de modo que ela jamais venha a ameaçar o brilho das chamadas Pratas da Casa. Tudo é premeditado. Dessa
forma, sobe ao trio elétrico ou ao palco, ao lado da “atração”, que deveria ser
principal, uma jovem branca, filha, neta ou bisneta de quem detém o poder no
momento e que vive na capital do estado a expensas dos cofres municipais, para
“arrasar” na noite sertaneja. O fascínio pela Sinhazinha ou Patricinha branca
é ainda muito pujante neste sertão. Na verdade, nos eventos culturais
sertanejos a Patricinha é que é a
Grande Atração; a outra somente se apresenta para contracenar com ela. E do
alto em que se exibe, sob aplausos histéricos, a jovem funciona como um
significado denso de poder sempre venerado, internalizado e obedecido pelas
demandas sociais subalternas; inclusive o poder sensual. Lá embaixo, condicionada
pelos significantes pulverizados pelos gritos estridentes do fetiche eletrônico,
a galera se esbalda.
A ovação histérica à beleza branca
da Patricinha leva-a a emulações
extremadas. Assim, em estado de alucinação orgásmica, ela se põe a incitar o
povão a extravagâncias de todas as formas. Ela mesma, também, símbolo sexual
por excelência, reina sobre o Império dos
Sentidos, e com requintes de sarcasmo, cinismo e sadismo ordena às meninas
pobres e negras que se escravizem a orgias desregradas e que curtam a noite
como se fosse a última. Afinal, é uma ordem! Além disso, a reificação da Patricinha também é uma relação de
cópula no dorso da diáspora. Literalmente, ela fode a diáspora em plena festa
pública, depois se retira para os ambientes sofisticados e reservados às elites
onde se promovem orgias elegantes, extravagantes e requintadas, patrocinadas
pelo erário público, deixando as massas submissas, no dizer bem sertanejo, do jeito que o diabo gosta. Ora, as
meninas das oligarquias dominantes podem exagerar nos seus desregramentos
obscenos porque contam com o apoio logístico da engrenagem econômica e
financeira do Estado de Direito e Democrático para cobrir seus gastos com
planos de saúde milionários, despesas com abortos, viagens para o exterior em
busca de tratamentos especializados, compras de amantes, longas temporadas em
espaços sofisticados de repousos e de reestabelecimentos de energias. Mas a
realidade da menina pobre de periferia é assaz degradante. Essa vai padecer com
as deficiências de serviços médicos humilhantes em postos de saúde de notória
precariedade, e se consegue sobreviver a um parto de alto risco, realizado em
condições repugnantes em algum hospital público; então; terá que assumir as
responsabilidades de mãe solteira, na maioria das vezes aos treze, quatorze ou
quinze anos de idade. Será que o sexo está no centro do corpo diaspórico e a Patricinha é o seu principal estopim
erótico?
É oportuno ter Consciência Negra de que neste sertão da
Bahia a Abolição da Escravatura,
então vociferada pelo Estado, somente ocorreu em termos de discurso vazio. A
escravidão mental e sexual do negro permanece tão mais perversa quanto foi a da
exploração do corpo do negro enquanto força de trabalho forçado e, nesta
perspectiva de dominação, continua a funcionar a lógica branca, também através
de suas dimensões política, econômica, cultural, lúdica, sensual e estética.
Principalmente, o poder dominante é fossilizado no imaginário lúdico do público
de “baixo”.
No meio do grande público que está embaixo, há
belezas negras de muito maior encanto que a encenação plástica imposta de cima,
mas que ou não são percebidas mesmo pelas massas, ou são desdenhadas por mera
inépcia de reconhecimento do que é mais peculiar. Então convém interrogar: o
que embaça tanto a beleza negra a ponto de torná-la imperceptível, mesmo nos
espaços culturais de maioria negra? Por que a negação intransigente do que é
tão óbvio? Será que a ressonância diaspórica não nos deixa olhar para o lado? Não
que se pretenda construir um discurso preconceituoso ou ressentido com relação
a outras etnias, mas é preciso interrogar o óbvio. É necessário gritar para o
óbvio!
Mas, o sertanejo não grita para a
ressonância diaspórica, por isso o seu
corpo fica marcado por várias identidades.
Policarpo Pereira Anastácio
Batista nasceu na Fazenda Jatobá, no dia 05 de fevereiro de 1938. Descendia de
uma família constituída por um desertor da Guerra
de Canudos e uma negra filha de escravos africanos, remanescentes da
Fazenda Acaru em Monte Santo.
Quando as tropas da Expedição Artur Oscar demandavam de
Queimadas para Canudos, via Monte Santo, um soldado da comissão de engenharia
deu partes de doente na entrada da Fazenda Jatobá. Um dos médicos da força
examinou-lhe, prescreveu-lhe alguns recursos e sugeriu ao comandante que ele
fosse deixado a convalescer até o dia seguinte, quando então acompanharia outro
batalhão. O jovem soldado quedou-se por algum tempo, depois teve sede e dirigiu-se
a uma choupana próxima para pedir ajuda. Veio-lhe em auxílio uma moça negra de
beleza extasiante, trazendo uma cabaça d’água e uma cuia de beber. A febre
evadiu-se e o jovem abriu o coração: não suportava mais “aquela vida desgraçada
que vinha arrastando”. Bebeu a água e contou a sua história.
Era
filho de uma índia da Tribo Itaguaí com
um aventureiro francês. Era um índio de
olhos celestes, tal como no dizer de O
Cativo, de Jorge Luís Borges. Fora recrutado à força na estação ferroviária
de Santa Cruz no Rio de Janeiro e incorporado à expedição, agora queria desertar.
A negra bonita fez uma menção com o lábio inferior apontando-lhe uma nesga de
serra distante no meio da vegetação cerrada.
– Cê vai, tô dia eu levu di cumê e auá!
O homem partiu para o coração da caatinga e a
moça passou a cumprir a palavra. Certa manhã, a saia desfraldada por espinhos
deixou entrever o sexo. Nunca mais se apartaram.
Finda a guerra, as tropas
retornaram para o Sul do país e o jovem casal para o Jatobá, onde passou a
botar roça e a labutar com criação. Foi desse enlace que surgiu A Nação dos Índios Negros do Vale do Jacuricy. Do patriarca nunca se sabia o
nome, era tratado por “O Home”. Até que certo dia um técnico da Inspetoria
Federal de Obras Contra a Seca (I.F.O.C.S.) passando pelo Jatobá para realizar
o censo, conseguiu verificar alguns antigos documentos do “Home” e então o aconselhou
a legalizar a situação da companheira e a registrar os filhos para que pudesse
receber os benefícios mandados pelo governo. Ele o fez de muito bom grado, mas
não se lembrava mais da Guerra de Canudos
e havia apagado para sempre a memória do Rio de Janeiro. Veio a falecer em
uma tarde singular, quando madornava em uma esteira de pindoba no oitão da
casa; pouco tempo depois de haver se tornado viúvo. Passava dos noventa anos de
vida; venerado por filhos, netos, bisnetos e tataranetos. Policarpo Batista era
um dos filhos mais novos. Um Índio Negro.
Quando Policarpo completou
dezesseis anos de idade, um tio que trabalhava na Companhia de Carris e que
veio de férias de Salvador para passar uns dias no sertão argumentou que ele
devia ir para um mundo mais civilizado. “Um menino como este não pode ficar
neste oco de mundo”! Foi assim que ele terminou ingressando na Marinha em
Salvador; sendo removido depois para servir no Rio de Janeiro.
Na capital federal, sem parentes
ou amigos, o jovem Policarpo morava na própria caserna; tal como sucede ao
militar de origem nordestina, deslocado para aquela parte da Região Sudeste.
Por um período de seis meses, o moço não saía das dependências do quartel para
nada. Mas, naquele ambiente disciplinador, logo passou a cultivar boas relações
de amizade com um colega de origem paraibana que se achava naquele serviço há
muito mais tempo, portanto, muito versado nas relações com a grande cidade. Foi
assim que Policarpo foi mergulhando nos labirintos da vida obscura do homem
nordestino no contexto noturno do universo carioca.
Em uma noite de folga chegou-lhe
o colega:
– Tá a fim de dar soco?
– Pô... Barbosa, eu tô na onça...
– Mas é por isso mesmo, cara! É
preciso sair dessa lona...
– Então eu topo!
– Vou te dar os macetes todos.
Primeiro vamos passar na Central do Brasil, e depois dar um rolé pelas bocas.
Diante da antiga estação de
trens da Central do Brasil, Policarpo ficou extasiado com as proporções daquele
edifício suntuoso. Uma obra majestosa, rica, ostentando toda uma austeridade
sisuda, pesada, soberba, imponente com a sua extensa fachada de mármore esmeradamente
polido; contrastando com as sombras fantasmagóricas de homens e mulheres desfigurados
pela noite carioca e refletidos na própria fachada de mármore, arrastando-se por
aquele Mercado do Sexo periférico, centrado no coração da cidade do Rio de
Janeiro. E a Torre da Central, atrevida
como Babel, com o seu famoso relógio luminoso, visto de todas as partes da cidade
e agora a embevecer todo o fascínio do homem simples, descambado da moleira do grande
sertão de Canudos.
– Se toca cara! Qualé? Ficou
abobado? Aqui você só deve vir em uma onça
total. É no mictório que ficam os veados muquiranas, esperando alguém vir
mijar pra eles cantar o cara. Eles ficam lá dentro dia e noite, fingindo que
estão mijando só para olhar o pau de quem entra. Veado pobre, fudido, fuleiro.
Não vale a pena. O máximo que você pega é um troco. Quer ver?
Mais
adiante, os dois marinheiros achavam-se já na Praça Tiradentes.
– Preste atenção! Aqui já
melhora um pouco, mas ainda não é o ideal para um cara safo. Vou te ensinar tudo: olhe! Ali perto do Teatro João Caetano;
boca de travesti. Você é que paga. Aí é foda! Agora vamos para aquela boca: o
Teatro Carlos Gomes, o Café Nathalia. Descendo pra lá, é a Rua da Carioca;
cinema à pampa, cheio de bicha! Melhora um pouquinho. Pode-se arrumar uma
graninha melhor, mas o problema é que as bichas moram nas cabeças-de-porco da Pedro Primeiro. Transar ali é como tocar
punheta em pé de mandacaru. É por isso que você tem que se especializar, conhecer
os melhores lugares e os Boys ricos,
finos, elegantes. Altas contas bancárias. Altas patentes militares, médicos,
artistas de renome, magistrados, parlamentares, ministros de estado. O meu Boy é médico, com consultório na Avenida
Atlântica, filho de um ministro do governo. Eu vou ser promovido a sargento
ainda este ano. Já está garantido. Mas o meu sonho é servir em João Pessoa. A
minha transferência já está assegurada pelo meu Boy. O pai é Ministro, porra! Eu sou de Guarabira. Um dia, eu quero
voltar para Guarabira, reformado como oficial. Eu quero criar cabras, bodes,
ovelhas, bois, vacas. Eu quero andar pela feira de Guarabira todo encourado;
pescar no açude, tomar banho de cuia, beber umbuzada adoçada com rapadura e
dormir em rede de caroá...
– Tudo com ajuda de um veado?
– Mas é claro! Agora é Boy... Aprenda isto: veado é lá na Central. Agora é Boy. Veja, estou te levando aos
territórios hierarquizados do sexo alternativo do Rio de Janeiro. Estamos indo
agora para o Eldorado Carioca, a Cinelândia, o Amarelinho, o Passeio Público,
onde impera o luxo, a grana, o prazer... Pela primeira vez você vai botar a mão
em grana farta e fácil.
– Eu tô precisando. Soldo de
militar é uma miséria; metade do meu soldo fica na cantina. Parte da outra
metade fica nos descontos.
– Mas por que tanta despesa na
cantina?
– E quem consegue comer aquela
gororoba do rancho?
– Não sei. Eu não vou lá!...
– Pois é meu camarada, um dia
desses eu escutei os caras do rancho discutindo porque um recruta sem saber
pegou uma panela de lixo e colocou junto de uma de sopa. Daí não se sabia mais o
que era o quê. Sabe aqueles panelões de aço? Aí o capitão chegou e resolveu o
problema: “Requenta as duas e bota para servir”!
– Porra!... (risos).
– Então de marinha! É por isso
que a gente tem que explorar o Boy. Você...
– Ih! Rapaz!
– Qualé?
– Ou eu perdi a minha
identidade, ou ficou no quartel
– Fique frio. Daqui em diante as suas
identidades serão outras.
Logo há poucos minutos, os dois marujos estavam diante do Bar Amarelinho
na Cinelândia. Barbosa, velho conhecido na área, foi apresentando o Policarpo às
suas antigas relações.
– É recruta?
– Não... Ele veio transferido de
Salvador.
Chopes, uísques, cigarros, conversas,
risos, abraços, e a noite foi avançando... Alta madrugada, despediram-se e os
dois amigos desceram para o Passeio Público.
– Aqui é o seguinte: Fique atento para os
carrões importados. Sempre atento para os mais caros e mais elegantes. É o
pessoal da alta grana e do elevado poder político. Sempre a preferência deles é
por militares, porque são selecionados de acordo com certos padrões de estética
física; já para atender as taras das altas oligarquias; e também por questões
morais. Ora, estão sujeitos a regulamentos, são disciplinados, submetidos
permanentemente a inspeções de saúde e a exercícios físicos constantes. Além
disso, a maioria destes militares são negros e nordestinos; os chamados picões. Agora você também é um picão. (Risos).
– Mas não dizem para a gente nos
quartéis que toda a exigência com o preparo físico e a boa saúde é para nos
aprimorar para a Guerra, a Defesa Nacional?
– Que Guerra porra nenhuma, cara?
Que Defesa Nacional? A Guerra aqui é a da putaria mesmo, cara! Teve um naval
cearense chamado Pica de Jegue que
era disputado à bala aqui neste pedaço. Ele chegou muito bronco do Nordeste e
costumava dizer assim: “Do ar urubu, do chão cururu”. Ele chegou comendo
piranha, veado, travesti, Boy; o que
caísse na rede. Ele dava soco da
Central do Brasil ao Baixo Leblon, por isso chegou a ser considerado muito
promíscuo, inclusive no quartel, o que não é bom. Certa feita, um graduado de
serviço de comandante-da-guarda o surpreendeu na calada da noite entrando
despido no alojamento do oficial-de-serviço. Foi lá e encontrou ele comendo o
oficial. Deu voz de prisão aos dois, tocou o alarme e mandou ligar para o
superior de serviço. Foi um rebu do diabo! Mas; no andamento do inquérito, o
graduado é que foi punido com trinta dias de prisão em solitária, enquadrado no
Regulamento Militar sob a justificativa de “Haver censurado ato superior”. E ainda
foi transferido para o Amazonas. Pica de
Jegue foi promovido a cabo. Então, chamei ele para uma conversa e passei a
instrui-lo. Como estou fazendo contigo agora. Depois ele arrumou um suíço
multimilionário, pediu baixa e hoje vive como um marajá em Genebra. Tirou toda
a família que vivia abaixo da miséria extrema no Quixadá e a levou para a
Europa; hoje vive todo mundo lá nadando em riquezas. Para essa gente poderosa e
milionária, o papel do Estado é fabricar corpos de jovens pobres, negros e
nordestinos para satisfazerem as suas taras. Veja esse carrão! Vai parar, pode
ir fundo que eu vou no outro que vem logo atrás. Fique frio!
Apresentaram-se muito
cordialmente, o que Barbosa exercia com maestria, acertaram preços e afetos,
rumaram para uma boate caríssima em São Conrado, depois foram cumprir deveres
em uma mansão ultra suntuosa no Grumari.
Poucos meses depois, o jovem cansançoense
Policarpo Batista estava escolado no ramo. O fato de ser um negro de
reconhecida beleza, ampliava-lhe as portas. Não carecia mais da ajuda do amigo
Barbosa, que logo foi movimentado para servir em João Pessoa. Daí Policarpo
veio a conhecer um armador europeu que passava longas temporadas no Rio de
Janeiro e passou a morar em sua rica cobertura na Avenida Bartolomeu Mitre, no
Leblon, ricamente sustentado pelo “amigo”, onde ficou por vinte e dois anos,
trabalhando meio expediente e fazendo carreira militar. Mas o milionário era
muito excêntrico e veio a falecer em Bariloche, a bordo de uma aeronave em
companhia de amigos, mantendo relações sexuais em pleno voo. Quando Batista deu
fé, havia herdado em testamento a cobertura em que morava, dois automóveis de
luxo, um jatinho de passeio e uma mansão frente a uma praia de Búzios. Vendeu
tudo, voltou para Cansanção, tirou os parentes da pobreza extrema e mandou
construir rico pé-de-meia em seu
torrão natal. Casando-se depois com Dona Angélica Pureza das Neves, antiga
paixão de infância. Deitou âncoras.
Agora o encontramos perante o
convite tentador formulado pelo amigo Alexandre:
– Topa?
– Eu topo!
– Fechado?
– Fechado!
Na manhã seguinte, Seu Batista
começou a se arrumar para pegar o São Matheus. A esposa o inquiriu:
– Aonde tu vai criatura?
– Eu vou em Coité resolver uns
negócios.
No comércio, Seu Batista
adquiriu preservativos. E foi taxativo:
– Eu quero é com lubrificantes.
Dos bons! Dos melhores!
Depois, bermudas, sungas,
camisetas, meias, tênis, maleta esportiva de grife, energéticos, estimulantes
sexuais e etc.
Três dias depois está Seu
Batista a arrumar-se de novo.
– Vai viajar?
– Eu vou ali em Euclides da
Cunha.
– Fazer o quê?
– Eu vou me matricular em uma
Academia de Ginástica, mas é por pouco tempo; uns quinze dias; no máximo.
– Batista, você tá ficando
doido? Que diabo tá acontecendo?
– Você sabe, eu fui de Marinha,
um militar, não posso ficar fora de forma, senão me faz mal.
Na tarde do dia vinte e três,
Alexandre Pacheco voltou à residência do velho amigo:
– Seu Batista, nós vamos hoje à
noite.
– A que horas?
– Umas sete e meia...
– Combinado!
Tudo certo! Para Dona Angélica, o marido
ia passear na Fazenda de amigos muito queridos.
Na manhã do dia seguinte, bem cedo,
a recepção começou a ser arrumada. Logo chegou o pessoal do buffet com todos os requintes. Muitas
bebidas finas, guloseimas, frutas, doces, salgados e etc.
Findo o café da manhã, os
convivas foram conduzidos para piscinas, quadras de esportes, espaços de laser,
sempre muito bem servidos. Seu Batista observava a todos, já cogitando seleção
de parceria; mas divertia-se a valer. Até quando foi chegando o meio dia em que
os convidados foram aconselhados a recolherem-se aos respectivos aposentos,
porque no início da tarde iriam “comer o veado”. Seu Batista achava-se radiante;
foi para a suíte, banhou-se, cuidou-se com esmero e, muito exausto, ferrou no sono. Acordou muito depois com
alguém batendo à porta:
– Seu Batista, vamos comer o
veado!
– Já vou! Espera aí!!!
Pulou da cama, ajeitou-se e
saiu.
– Onde é?
– É aqui!
Quando Seu Batista adentrou ao
salão, a imensa mesa estava posta, cercada de comensais. Ele ainda meio tonto
de sono, inquiriu ao amigo:
– Cadê o veado?
– Aqui!
– Onde?
– Na mesa...
Policarpo Batista arregalou bem
os olhos e vislumbrou no centro da mesa em uma grande bandeja, cercada de
guarnições e de garrafas de bebidas, uma peça assada ao ponto e ainda
fumegando.
– Porra! Alexandre, você tá a
fim de me sacanear, rapaz...
– Não senhor, de forma alguma...
– Porra cara! Você me convida para comer um veado e vem com este negócio
de almoço? Por acaso eu não tenho comida na minha casa, porra? Você tá ficando
doido?
– Ah! Seu Batista, já entendi.
Eu peço desculpas ao senhor, mas comer um veado aqui no sertão de Camandaroba é
somente almoçar uma caça com os amigos mais íntimos, em uma tarde de domingo.
Visivelmente transtornado, Seu
Batista passou a chutar móveis, dar bofetadas em paredes, quebrar garrafas de
bebidas, gritar, chorar, rir, dilacerar as próprias vestes. Até sair do salão
cambaleando em direção a uma das piscinas. Parando junto à mureta de uma delas,
sacou uma pistola automática e disparou contra o ouvido, precipitando-se na
água. Quando as pessoas ouviram o estampido do tiro e o baque do corpo,
correram em socorro, mas ele já estava morto, e do seu ouvido direito saía uma
longa faixa sanguínea, tortuosa e trêmula que atravessava a superfície, assemelhando-se
à travessia do povo hebreu pelo Mar Vermelho e pelo deserto no rumo da Diáspora
Mosaica.
Serrinha, 1/1/11.
*PROFESSOR
DE LITERATURA NO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV DA UNIVERSIDADE DO
ESTADO DA BAHIA – UNEB. EM CONCEIÇÃO DO COITÉ.
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