O PALHAÇO E O MÉDICO
O PALHAÇO E O MÉDICO por José Plínio de Oliveira*
O NATAL avizinhava-se e a cidade
de Conceição do Coité ia recebendo um cabedal de novidades. Então veio o circo...
Bichos, lonas, jaulas, artistas,
mulheres lavando roupas coloridas e crianças despidas e despenteadas circulando
entre a parafernália de trens do cotidiano da vida circense; e aquele mundo de
gente e de coisas tão alheias à realidade do lugar instaurava uma perspectiva
de estranhamento e de encantamento vivo.

– Oxi! Mãinha, e deve ser sempre reza,
sisal, batedeira, palha, corda, trabalho, lavoura, axé, micareta, vaquejada,
banda, bunda, trio elétrico, arrocha, cachaça, cerveja, droga, sexo e forró? E
o lazer como fica? A alegria, o riso, a graça, a brincadeira... Ah! O circo. Só
o circo tem!
Com pouco saem o palhaço e uma mulher loura exibindo a parte superior
dos seios, tatuada de estrelinhas de azul muito descorado, marcando a meninada
da periferia com um toco de baton.
– Hoje tem espetáculo???
– Tem sim senhor...
– Oito horas da noite???
– Tem sim senhor...
– E o Palhaço o que é?
– Tem sim senhor...
O séquito cantarola pela Praça da
Igreja. A rua toda vem ver.
Assim os dias vão-se desenrolando
na enxurrada irreverente de risos, aplausos, gritos, abraços e algumas
lágrimas. E o Palhaço encanta como um rei das noites; e faz tanto dilacerar a
graça oculta nos corações ainda que mais estéreis, que os tempos rudes vão
descosendo o emaranhado torpe de agravos em simples impressões de um passado já
aniquilado em sim.
O circo escapa de sob a lona e
vai esparramando tantos feitos sutis de sua Arte nos bares, nas alcovas, nas
oficinas, nas salas, nas horas de Ações
de Graças, nos ócios e nos ofícios, no canto escuro do enfermo, no estar do
recém-nascido, nos campos de extensas várzeas e nos recônditos dos prostíbulos.
Ah! Quem me dera ainda...
Até que um dia chega à sala do
Dr. Fulgêncio um moço cerimonioso e de tristes feições:
– Agora é a vez do Senhor!
– Posso entrar?
– Esteja à vontade... Sente-se,
por favor.
– Doutor, eu sinto como que uma
grave estranheza... Algo que me corrói e me atormenta sem parar. Ainda esses
dias assim, eu desejei que uma composição de trem passasse por cima de mim lá em Salgadália. Ou
então que eu rolasse para o fundo daquele açude e que nunca pudesse ser encontrado.
– O Senhor toma algum medicamento
regularmente?
– Não, Senhor.
– O Senhor faz uso de bebidas
alcoólicas?
– Não! Jamais tomei uma dose de
bebida.
– O Senhor tem notícia de alguma
pessoa de vossa família que tenha tido algum tipo de doença dos nervos?
– Não, Doutor, que eu saiba,
não.
– Por favor, tire a camisa! ...
Respire o mais profundo que puder. Prenda a respiração um pouco. Agora deite-se
aqui nesta maca e estenda bem os braços ao longo do corpo. Pois bem!... Pode levantar-se,
vista a sua camisa e sente-se aqui nesta cadeira... Bem, de maneira mais geral, eu não percebo nenhuma gravidade
assim...
– Doutor, eu não suporto mais!...
O paciente explodiu em lágrimas.
– O Senhor tem negócios com algum
Banco!??
– Também não.
– Mas pode ser que o Senhor esteja sofrendo
de algum tipo de patologia de natureza dos nervos ou psicológica e que deve
merecer uma forma de acompanhamento especializado. Por enquanto, eu vou prescrever
para o Senhor uma medicação para os nervos, que será de grande alívio para o
vosso estado neste momento, enquanto o Senhor procura o início de um tratamento
mais adequado. Essas coisas dos nervos, de fato, costumam preocupar... Porém se
pode também buscar formas de lazer que ajudem a espairecer, a descontrair, a
relaxar mais! É do que o Senhor precisa
muito agora; além da medicação que o Senhor vai tomar inicialmente. Procure se
divertir! Veja, nestes dias há um bom circo aqui na cidade, e um Palhaço
espetacular! Ora, vá homem ao Circo, mergulhe na alegria oferecida por aquele
Palhaço magnífico. Divirta-se... Deixe o riso tomar asas, tanto quanto puder. E
procure salvar-se de tudo isso, pois é tempo propício! Ah! Sim. A cura que o Senhor está tentando
encontrar na ciência médica pode estar na Arte daquele Palhaço...
– Doutor, sou eu, o palhaço
daquele Circo.
para Calila, Renan e Elba.
(Esta narrativa é inspirada em um texto quase
assemelhado que circulou pelos sertões da
Ba-
hia na era de 1950,
publicado em almanaques oferecidos a clientes de farmácias e drogarias).
*PROFESSOR
DE LITERATURA BRASILEIRA NO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV DA
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA EM CONCEIÇÃO DO COITÉ.
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