Canudos à Contraluz Na Cultura Literária

JACURICY DA LESTE

                                                            JACURICY DA LESTE por José Plínio de Oliveira*
                                                                                       
         
NAQUELA ERA DO NATAL DE 1928, em plena noite do semiárido sergipano, São Jorge apareceu apeado da montaria, visivelmente deprimido e consternado, ostentando um cabresto na mão direita e uma cela na esquerda, em plena Lua do Sertão de Propriá. A imagem lunar do santo de devoção comum abalou os ânimos da população rural daquelas plagas sertanejas, principalmente porque todos os cavalos de reconhecido valor haviam desaparecido das pastagens, dos estábulos e até dos espaços siderais naquela noite dos Sinos de Belém. Inicialmente cogitou-se da possibilidade de uma calvagrinação à Manjedoura, o que logo foi descartado em face de evidências mais convincentes, apontadas pelo Deus Menino. Aliás, um dos primeiros sussurros da Criança Divina ainda tenra nos braços acolhedores de Maria foi contra toda e qualquer espécie de delito em terras do Estado de Sergipe, por isso logo foi esclarecido que o desaparecimento dos animais foi obra do fazendeiro Salustiano Elesbão Cabral de Mello Gonzaga e Holanda, homem de notória avareza e exímio ladrão de cavalos. Então o Governador do Estado enviou um emissário ao promotor de justiça de Lagarto para que tomasse as providências cabíveis contra o seu parente recalcitrante.
        – O jeito é mandar pra Bahia!
        O Doutor Maurício de Holanda lembrou-se de um amigo juiz de direito em Itiúba, antigo colega do Curso de Direito na Faculdade de Olinda, e logo o assunto foi resolvido. Poucos dias depois, Salustiano achou-se estabelecido como abastado fazendeiro em terras de Jacuricy da Leste, cortadas pelos trilhos da linha férrea, e São Jorge voltou a emoldurar a Lua do Sertão de Sergipe, montado em um puro sangue de fazer inveja a Lineu de Paula Machado e a prostrar atônito o Jóquei Clube do Rio de Janeiro.
        Na antevéspera do Ano Bom de 1957, achava-se o velho fazendeiro com a família na imensa varanda da casa de onde se avistava o correr dos trens e a pequena estação em que no século XIX foi embarcado o Meteorito de Bendegó para o porto de Salvador e depois para a corte do Rio de Janeiro quando os seus olhos azuis, miúdos e perspicazes vislumbraram uma criatura abrindo a cancela e subindo pela estrada da fazenda.
        – Evém gente lá em riba!
        – Quem será?
        – É Ambrósio!
        – Não é... É Tertuliano Simões!
        – Apois não é. É Zezim de Alfredo...
        – Oxi! É bem Rufino da Lagoa do Meio. 
        O vulto foi se tornando mais nítido e alguém gritou com entusiasmo:
        – É o menino de Zulmira!!!...
        – Bença Vô Salu, bença Vó Donana, bença Tia Gracinha, bença Tonho Parrudo, bença Mãe Ricarda, bença Sinhá Gertrudes, bença Seu Libório, bença Tio Gerôncio, bença João Calado, bença Madrinha Filó.
        – Ave Maria, tá um home... Louvado seja o Santo Nome de Jesus! Meu fio, cadê os outro?
        – Veio não, Vó. Só veio eu, mas mãinha mandou uma carta.
        – E Zulmira? E teu pai? E as crianças?
        – Tá tudo em paz, Vó. Só eu vim passar uns dias, mas tá tudo em paz.
         – Oh! Glória a Deus, meu Pai... (as lágrimas correram como as águas do Itapicuru). Passe a carta pra Gracinha, meu fio!
        O jovem estendeu as mãos com a missiva e, sem querer, exibiu um elegante relógio de pulso tão reluzente quanto a lua cheia de Sergipe. Então o velho Salustiano cravou os olhinhos na joia como dois diamantes agudos projetados para o Sol; assentou-se na rede em que estava deitado e fascinado com o relógio mal conseguia atentar para a leitura da carta iniciada por Maria das Graças.

                                                        “Cidade da Bahia, 29 de dezembro de 1957.

               Querida Mana Gracinha,

                    Deus Esteja com Todos!                               

                    Desculpe estar eu escrevendo tão às pressas, pois o motivo desta é para dizer que o Roberto está indo para aí passar uns dias com vocês, porque houve um problema com ele em uma joalheiria da Rua Chile e o Michel se encontra muito chateado. Aborrecido mesmo.
                    Nestes tempos do pós-guerra, a Europa passou a despejar muitas novidades no comércio desta cidade, e os jovens ficam desesperados com tantos produtos atraentes. Querem as coisas de qualquer maneira. A cidade da Bahia está sob uma atmosfera de consumismo avassaladora. Tudo é moda! Tudo tem que ser acompanhado para não se ficar fora do mundo. As pessoas não querem trabalhar, é uma preguiça endêmica, uma inércia descabida, mas consumir novidades todos querem. Só não sabem onde achar dinheiro para consumir. A Rua Chile parece mais um formigueiro. É terrível isso! Então, deu-se esse caso lamentável com o Roberto que para entender só a gente conversando pessoalmente.
                    Com as férias das crianças, estávamos indo passar uns tempos aí com vocês, mas este acontecimento alterou os nossos planos. Além disso, o Michel vai fazer o acompanhamento de umas obras que se acham em andamento no ramal de Monte Azul durante quatro meses. Há uma casa à nossa disposição e estou indo para lá com as crianças. Depois que passar uns dias aí enquanto as coisas esfriam um pouco, vamos mandar o Roberto para a casa dos pais do Michel em Viena.
                  Diga a papai que os remédios do reumatismo seguem pelo trem noturno de hoje, para ele mandar pegar na estação amanhã.
                  Fale com Mamãe Ricarda que o enxoval da criança de Lurdinha está seguindo na próxima sexta-feira, pelas mãos do turco Ibrahim que vai mascatear por aí. E que ela deite bênçãos em Roberto, e se ela mandar torrar café com fedegoso na próxima Quaresma mande uma lata para mim por seu Felisberto.
                  Peça a mamãe para botar a benção em todos nós.
                  Lembranças a todos.

                  Sem mais, com muitas saudades,

                                                         Zulmira”.
                    Zulmira Maria Gonzaga Lévi-Strauss, filha mais velha de Salustiano e Donana, foi educada em regime de internato no Colégio do Convento de Nossa Senhora do Desterro em Salvador. Depois de formada voltou para a casa da família e foi nomeada para uma cadeira na Escola Estadual de Jacuricy. Por aquele tempo, a Viação Férrea Federal Leste Brasileiro iniciou um trabalho de adequação da bitola e deslocou uma equipe da Subdiretoria da Leste, sediada em Senhor do Bonfim, chefiada pelo jovem engenheiro euro-baiano Michel Marie de Andrade Lévi-Strauss, para a execução dos serviços da Estação de Santa Luzia à de Itiúba. Por essas idas e vindas ao longo dos trilhos, estabeleceu acampamento no pequeno povoado onde conheceu e passou a namorar a jovem professora. Casaram-se dois anos depois e ficaram morando na casa dos pais de Zulmira, por força do trabalho de coordenação exercido por Michel que então se estendia de Alagoinhas a Juazeiro, ponto final da via férrea.
                    Quando Michel foi elevado a um cargo mais alto na diretoria da empresa, o casal já contava com dois filhos, sendo Roberto o primogênito, e tinha que mudar para a capital em razão do exercício do novo cargo. O anúncio da mudança foi um duro golpe para Mãe Ricarda, uma preta velha celibatária que descendia dos Cabral de Mello. Mulher de grandes leituras, sábia, serena, prudente, conselheira e venerada matriarca espiritual do clã, a quem todos obedeciam cegamente, antiga professora da geração mais jovem e que havia adotado Zulmira desde os primeiros dias de nascida “muito fraquinha”; quando Donana adoeceu gravemente por cerca de dez meses. Mãe Ricarda costumava dizer, referindo-se a Zulmira:
                   – Essa criança escapou pela imensa Misericórdia de Deus!
                   – Minha Menina é o meu milagre!
       Mas, ainda assim, inicialmente ela não queria acompanha-los para morar na Capital. Então Zulmira bateu pé firme: só se mudaria para a Bahia se Mãe Ricarda fosse junto. O esposo a inquiriu:
                  – E quando ficavas no internato?
                  – O internato não era a minha casa, a minha casa é aqui!
                  Michel, que já havia sido adotado como filho, conseguiu sensibilizar a Mãe Preta e a família foi morar na cidade da Bahia onde nasceram duas meninas e mais um menino, todos os partos assistidos pela velha Mãe.
                  Passados alguns anos, já com os netos bem crescidos e na escola, Mãe Ricarda passou a sentir muitas saudades do Sertão e decidiu voltar. Michel lançou mão de todos os meios possíveis e quando descobriu que um dos problemas da cidade grande para ela era a “zoada” do bonde, comprou uma chácara em Santo Amaro de Ipitanga, lugar bucólico, muito sossegado, distante da cidade, e lá foram morar. Entretanto, com o passar do tempo, Mãe Ricarda voltou a insistir: queria voltar para o Sertão.
                  – Bate uma saudade tão grande que estou a ponto de não suportar...
                  – Oxi! Mas por que assim?
                  – E eu sei? A saudade é um sentimento interior que do ponto de vista racional não tem nenhuma explicação lógica. A saudade foi feita para se sentir e não para se explicar. Ela tem os seus caprichos...
                 – Mas ela que vá com os seus caprichos pra lá, e trate de deixar a Senhora em paz.
               – E você não os têm? Você é minha outra saudade. Quando eu não queria vir, você bateu o pé que queria e queria que eu viesse. Agora quem bate o pé sou eu e você vai ter que me levar de volta!
                  Zulmira chorou, esperneou, resmungou, mas a velha Mamãe não cedeu.
                  – Oxente! Já fiz concessões demasiadas. Todo esse tempo...
                  – E a Senhora vai me deixar sozinha?
                  – E o Michel? E as minhas netas? E os meus netos? E esse povo todo, o que faz aqui?
                 Nesse ponto Michel entrou em cena e através de uma negociação muito serena e prolongada conseguiu adiar a volta para as férias escolares de fim-de-ano que coincidiam com o período das suas. Assim toda a família retornaria para Jacuricy e ficaria um longo período. Exceto ele que teria que voltar para o trabalho. Quando do reinício das aluas, Zulmira iria para a capital com as crianças, fazendo de conta que era somente por causa da educação escolar delas e do trabalho do marido. Deu certo.     
                   Naquele dezembro de 1957, a família foi abalada pelo fato de Roberto haver subtraído um elegante relógio de pulso de uma requintada joalheiria no centro da cidade. Logo que tomou conhecimento do roubo, o Doutor Michel de Andrade ressarciu o valor do objeto, mas ficou coberto de vergonha.


                 Logo na tarde da chegada do neto, o velho Salustiano pôs-se a admirá-lo como se jamais o tivesse conhecido. E na noite de Ano Bom a cada instante perguntava:
                 – Que hora ele tá marcano agora? (e assim foi até perto de meia noite).
                 – Agora é oito e quinze.
                 – Êta relojo bom! Foi teu pai que te deu?
                 – Mais ou menos.
                 – No mais ou no menos?
                 – As duas coisas.
                 – Tu tem é sorte!
                 No início da manhã seguinte, Roberto levantou-se, pegou uma tigela, pôs farinha com açúcar, caminhou para o curral, tirou uma folha de gravatá da cerca, recortou uma colher e estendeu a tigela para um dos vaqueiros deitar leite, tirado do peito da vaca. A mão estendida foi a do relógio. Logo percebeu o avô aproximando-se sorrateiramente de dentro do curral e ouviu alguém sussurrar:
                 – É oméga ferradura legítimo!
                 – Ié?
                 – Zequinha Barreto trouxe um de São Paulo esses dias.
                 O velho começou a premeditar a roubar do neto o relógio elegante, mas o pior é que o moço não o tirava do pulso. Então ele passou a vir por altas horas ao pé do leito do “menino” com o intuito de consumar a premeditação. Em uma dessas tentativas, quando procurava abrir a pulseira no escuro, tropeçou no urinol, posto aos pés da cama, despertando e fazendo erguer-se o jovem.
                 – Vô!
                 – Vim vê se ocê tava gazaiadin. De madrugada faz um bando de frio!
                Aí Roberto passou a desconfiar: “Vô Salu quer roubar meu relógio”... E ao longo do dia passou a observar mais atentamente os movimentos do avô e foi assim que percebeu que ele estava andando meio inclinado para um lado.
                No fim da tarde, ia o moço caminhando para o açude quando ouviu alguém chamando-o. Olhou, era Mãe Ricarda sentada à sombra do seu umbuzeiro, o Umbuzeiro de Mãe Ricarda, em cuja sombra passava ela as tardes lendo, meditando e pitando o seu cachimbo de fumo cheiroso, misturado com alecrim silvestre.
                – Aonde você vai?
                – Vou ao açude ver Tonho Parrudo dar banho nos cavalos.
                – Sente aqui!... Eu assuntei a leitura da carta de tua mãe ontem. Fale para mim sobre essa história da Rua Chile.
                – Mãe Ricarda, não vou mentir para a senhora. Eu tirei este relógio da loja de um gringo. Aqueles gringos são todos ladrões!
               – Mas tu tens sangue de gringo! O povo do teu pai, de onde é? E se eles são assim, pensas que fizeste diferente?
               – Não! Mas quando eu era pequeno a senhora me disse que “ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão”. Agora eu quero é duzentos.
               – Não eras pequeno, continuas pequeno. Fizeste algo tão minúsculo, tão ridículo que a tua pequenez se torna assaz evidente. Oxi! Onde já se viu... Meu filho, parece que herdaste a sina dos Cabral. Desde o primeiro. E carregas agora um fardo maior do que os teus próprios ombros.
               A Mãe Preta silenciou, deitou o livro no colo, guardou o cachimbo e tirou o rosário de coco do pescoço para rezar.
              – Então só tem um jeito, Minha Mãe, Cabral que rouba Cabral é libertado do mal!  
              – Vá sua viagem!
              – Bença Mãe.
              – Deus te guarde.
              No açude, Tonho Parrudo tratava dos animais.
              – Tonho, vô Salu tá rendido?
              – Não, rapaz, por quê?
              – Porque ele tá andando assim de lado, como se tivesse um mal nas virilhas.
              O vaqueiro caiu na gargalhada...
              – Vem cá! (olhando para todos os lados, todas as moitas, todas as ribanceiras). Não, rapaz, ali é dinheiro que ele carrega amarrado dentro das ceroulas. Vendeu um gado a Tião Fagundes por mais de oito mil contos de réis, botou o dinheiro dentro de uma carteira de pano e amarrou no cós das ceroulas. Só tira à noite quando vai dormir e bota embaixo do travesseiro.
              – Êta porra!!!
             Salustiano Cabral dormia sozinho em um aposento próximo da cozinha. O quarto tinha uma porta que dava para o interior da casa e outra para o quintal, por onde ele saía à noite para as suas “precisões” e de madrugada para a ordenha no curral, sem incomodar a casa. O neto ocupava um aposento próximo da dispensa, não muito longe do avô. Portanto, dada a proximidade dos aposentos, um podia vigiar o outro sem despertar as atenções dos demais membros da família e nem do próprio vigiado. Logo, mediante a cobiça pelo relógio do neto, o velho passou a não fechar a tramela da porta que dava para dentro de casa, a fim de evitar o ruído estridente que ela fazia, podendo acordar os outros e o próprio rapaz, mas este, aproveitando-se do buraco deixado pelo fecho da porta, passou a vigiar discretamente os movimentos do avô e o pilhou guardando o pacote de dinheiro sob o travesseiro. Assim planejou a operação. Uma noite em plena treva chocaram-se no meio da cozinha. O menino alegou que ia beber água no porrão, e o velho que ia ver se estava tudo bem com ele. Estavam passando a noite quase em estado de vigília. A guerra sutil estava travada.
             No curso de uma vigília, o rapaz pressentiu que o avô estava saindo para o quintal; apurou bem os ouvidos e constatou que ela gemia de prazer aliviando-se de uma “precisão”, bem atrás de uma touceira de macambiras. Avançou para o quarto, subtraiu o pacote de dinheiro, pôs um livro no lugar dele e voltou rápido para os seus aposentos. Quando percebeu de madrugada que o avô já estava de pé, bateu levemente na porta, entrou e prostrou-se de joelhos aos pés do avô:
              – Vô! Eu tive um sonho agora com meu Padrinho Padre Cícero e ele me mandou oferecer este relógio para o senhor. Tome Vô, é seu!
              Foi a conta: o pobre velho explodiu em lágrimas; beijava e acariciava o presente com a bonomia ingênua de uma criança que recebe um desejado brinquedo de Natal. E enfeitiçado pelo objeto, esqueceu-se do dinheiro guardado.
             Saíram – avô e neto – para o quintal quando as galos e a passarada teciam os primeiros raios da manhã. A joia então admirada sob aquela atmosfera de retalhos de luzes embevecia. O velho ergueu o braço e o pousou sobre o rapaz.
             – Vai pro currá cumê leite mais nóis?
             – Agora não! Eu vou ver umas enxós que eu armei pra pegar uns preás no Roçado do Tanque.
             O ancião desceu para o estábulo sem esconder o contentamento e logo mandou pegar e selar um cavalo e, dali mesmo, partiu para Itiúba a fim de exibir a dádiva.      Mas na cidade lembrou-se do dinheiro guardado e voltou como um doido, entrou em casa foi ao quarto, verificou que a muchila de dinheiro havia desaparecido.
             – Gente! Cadê o minino de Zulmira?
             – Oxente! Ele não andava mais o senhor?
             – Acode gente! Que o minino de Zulmira me roubou... Avia, Antonho Parrudo!
             – Oxi! Há essa hora ele já pegou o Rápido e já vai pra baixo do Aramari.

 


                                                               Serrinha, 01/01/2012.



*PROFESSOR DE LITERATURA BASILEIRA NO CAMPUS XIV DA UNIVERSIDADE DA BAHIA – UNEB EM CONCEIÇÃO DO COITÉ.



           
              
             

  

                      

    

                                                                 

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